País destina 18,5% da riqueza a políticas e serviços de proteção social, mas gastos com programa de transferência de renda para a camada mais vulnerável são insuficientes para reduzir a desigualdade. Especialistas apontam a expansão do Bolsa Família como saída
postado em 25/11/2019
Nas últimas semanas, vários estudos divulgados revelaram o aumento e a extensão da pobreza no Brasil, que fomentaram discussões sobre a desigualdade estrutural no país. Na terça-feira passada, a Câmara dos Deputados entrou no debate quando o presidente Rodrigo Maia
(DEM-RJ) anunciou que vai começar a tramitar projetos para um pacote
social. No Brasil, os gastos com proteção social, incluindo serviços públicos, como proporção do Produto Interno Bruto (PIB),
aumentaram de 15.5% em 1995 para 18.5%, (último dado disponível), de
acordo com o Relatório Global de Proteção Mundial da Organização Mundial
do Trabalho (OIT). Mesmo assim, o país amarga a nona posição entre os
mais desiguais do mundo, de acordo com a Oxfam.
O dinheiro fica nos andares de cima da pirâmide social e quase não chega à base, afirmam especialistas ouvidos pelo Correio. Eles indicam a expansão do programa Bolsa Família
como o melhor caminho para enfrentar o problema; apontam o poder
público como promotor da desigualdade, ao alocar recursos de maneira
desigual; e veem espaço fiscal para mudar a realidade por meio do
remanejamento de gastos e tributos.
"O
Brasil transfere renda incrivelmente mal. O grosso está indo para a
metade de cima, especialmente para os 10% do topo. Do total de
transferências, o Bolsa Família representa apenas 0,44% do PIB e o BPC
(Benefício de Prestação Continuada), menos de 1%. Depois vem todo o
resto, mas esses dois são as transferências que chegam aos mais pobres",
explica Sergei Soares, pesquisador do Ipea.
De acordo
com estudo coordenado por Soares, em 2016 e 2017 a proteção social foi
fundamental para evitar que os efeitos negativos da crise econômica
aumentassem a desigualdade. A participação do salário na
renda total da população caiu de 75,3% em 2016 para 74,5% em 2017. No
entanto, os rendimentos oriundos de programas de proteção social – previdência, Bolsa Família, BPC e outras fontes, cresceram de 21,1% para 21,8% no período. O coeficiente de Gini apresentou uma queda marginal de 0,18 ponto entre 2016 e 2017: 0,541 para 0,539.
Soares
explica que a leve oscilação ocorreu devido às mudanças na composição
da renda total, que substituíram, em termos de participação, a do
trabalho por outras. "O sistema de proteção foi fundamental para que não
aumentasse ainda mais a profunda desigualdade, disse. Em outro estudo,
ele propõe a fusão dos orçamentos do Bolsa Família, do Abono Salarial, do Salário-Família e
da dedução por dependente para crianças no Imposto de Renda de Pessoa
Física (IRPF), que somam R$ 52 bilhões, recursos suficientes, para
Soares, para formar um único programa mais concentrado com potencial de
gerar maior impacto. Sem a pulverização dos programas, ele acredita que
os benefícios cheguem a quem realmente precisa por meio de uma eficiente
utilização do Cadastro Único para Programas Sociais.
Entusiasta do Bolsa Família, Pedro Ferreira Cavalcanti, da Fundação Getúlio Vargas,
considera os programas de transferência de renda eficientes e baratos e
defende gastar mais com eles do que com isenções fiscais. "O Bolsa
Família não chega a 0,5% do PIB, enquanto os incentivos tributários
somam 4% do PIB", compara
Ele explica que a compensação
da desigualdade pode ocorrer pela transferência direta de impostos
cobrados dos mais ricos para os mais pobres, via programas sociais, ou
gastando mais com serviços utilizados pela classe desfavorecida. "O
Brasil faz mal as duas coisas", avalia. Para ele, um exemplo de
desigualdade promovido pelo Estado é manter regimes tributários
diferentes para contribuintes com o mesmo potencial contributivo.
Robin Hood às avessas
Recentemente, ao anunciar o Programa Verde e Amarelo, para geração de empregos para jovens, o governo foi na direção contrária da apontada pelos especialistas ao tributar em 7,5% quem recebe o salário desemprego
como fonte de receita para oferecer desoneração ao empregador. "Não há
evidência internacional de que esse tipo de incentivo tem impacto
duradouro no emprego, e tirar de desempregado para transferir para o
empregador, me parece um Robin Hood às avessas. Deve haver outras fontes
menos regressivas", diz Cavalcanti.
"Temos outros exemplos, como a isenção tributária da Zona Franca de Manaus até
o absurdo de descontar do Imposto de Renda o valor pago a empregados
domésticos, subsidiando a vida boa da classe média. Aumentar o valor do
Bolsa Família tem um impacto brutal na redução da pobreza. Se dobrasse o
benefício, o impacto sobre as pessoas e a economia seria muito grande
com reflexo no consumo. Afinal, não é isso que a equipe econômica espera
ao liberar saques do FGTS? Por que não aumentar o Bolsa Família?".
Marcelo
Neri, economista da FGV-Social, mostra esse impacto com números. "O
Bolsa Família ajuda a girar as rodas da economia e não custa tanto.
Aumentar o programa causa impacto econômico, porque os pobres consomem
mais da renda do que outros setores da sociedade, portanto o efeito
multiplicador é maior. Para cada real gasto com o Bolsa Família, o PIB
cresce R$ 1,78. No caso do BPC, o efeito é de cerca de R$ 1,20, já com a
Previdência, é de R$ 0,53", explica.
Sem reajuste, o
valor unitário mensal pago pelo Bolsa Família, de R$ 89,00, está abaixo
da linha de extrema pobreza estabelecida pelo Banco Mundial, de R$ 145
per capita por mês. "A linha de extrema pobreza e de elegibilidade para o
Bolsa Família tem que ser compatível. Atualmente o programa não reflete
os indicadores de extrema pobreza, o que é prejudicial. É preciso
reajustar os parâmetros", afirma.
Do pacote com as
propostas de combate à desigualdade e à pobreza, anunciado por Maia na
terça-feira, consta incluir o Bolsa Família na Constituição e
garantir reajustes acima da inflação, além de uma modalidade específica
do programa para crianças. O grupo que elaborou a proposta promete
apresentar uma PEC na próxima semana com seis projetos de lei que
incluem ainda políticas para água e saneamento.
"Colocar
o Bolsa Família na Constituição é uma medida extrema, mas o Brasil tem
várias coisas na Carta que não beneficiam os mais pobres, então, é
importante proteger o Bolsa Família. Talvez fosse bom que nada estivesse
na Constituição e que houvesse uma política de Estado que mantivesse o
valor do programa", diz Neri. Para Soares, o foco tem que ser a
infância. "No Brasil, infância é igual a pobreza. Temos 53 milhões de
crianças, 17 milhões não recebem nenhum benefício e, dessas, dois terços
estão na metade de baixo da pirâmide e 50% são o público-alvo do Bolsa
Família, que é um superprograma", opina.
"Não tenho sonhos"
Aureliano
Vieira da Silva, 63 anos, está desempregado, e uma dor constante que
sente nas pernas dificulta que ele consiga trabalho. Morador da Estrutural,
recebe um benefício mensal de R$ 91,00. Ele não tem acesso ao Benefício
de Prestação Continuada (BPC), que transfere um salário mínimo a idosos
em situação de extrema pobreza, a partir de 65 anos, e a deficientes.
"Não consigo me manter com o benefício. Preciso de ajuda. Não tenho
muitos sonhos, mas, se pudesse, queria ter uma aposentadoria”, disse
Aureliano ao Correio, enquanto aguardava atendimento no Cras, unidade de
assistência social na Estrutural.
Ele conta que, às vezes, consegue fazer bicos. "Quando minha saúde permite, eu faço uns bicos de pedreiro. Mas nada muito pesado, pois não dou conta de carregar saco de cimento, areia e subir escadas", relata.
Mãe de quatro filhos e avó de três, Juciléia Alves de Jesus, de 42 anos, também usuária do Cras, recebe o Bolsa Família. "Não dá para o básico. Falta gás e, muitas vezes, o que comer", diz. Ela conta que o marido foi embora quando as crianças eram pequenas. Seu sonho: "morar em uma casa que não seja de madeira e que não alague".
"O arranjo de seguridade social está todo vinculado ao trabalho. Quando se pensou no BPC, foi para pessoas que são estruturalmente vulneráveis, como deficientes e idosos, excluídos do mundo do trabalho. Foi a grande conquista da Constituição de 1988. Nosso grau máximo de civilidade, o entendimento de que há um segmento que o mercado não vai absorver. E, com o aumento da longevidade e a tecnologia, esse contigente vai aumentar", diz Ieda Maria Nobre, doutora em política social e ex-secretária nacional de assistência social (2015- 2106).
Conferência da sociedade
Nesta segunda (25/11) e terça (26/11) será realizada a Conferência Democrática de Assistência Social.
O encontro, que acontece no auditório Nereu Ramos da Câmara dos
Deputados, vai discutir o impacto do teto dos gastos públicos no
financiamento da assistência social. Segundo a
presidente do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), Aldenora
González, pela primeira vez, desde 1995, o governo federal não convocou a
conferência. Por isso, o encontro vai acontecer pela iniciativa da
sociedade civil. Por meio de nota, o Ministério da Cidadania informou
que "os encontros da Assistência Social devem seguir o rito da
Conferência Ordinária e a deste ano seria extraordinária, por isso, não
foi convocada".
Segundo Alderina, as conferências ordinárias são realizadas a cada quatro anos e as extraordinárias, a cada dois, desde que o CNAS foi instituído pela Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) em 1993. "O CNAS convocou a conferência, mas um dia depois, o ministro Omar Terra baixou uma portaria desconvocando", disse. "Foi solicitado aprovação de dois terços da plenária do Conselho do CNAS para realizar a conferência. Isso é inédito. Nunca aconteceu. Todos os estados realizaram suas conferências este ano, além de mais de três mil municípios, mas o governo federal não quis realizar o encontro nacional", lamenta.
Segundo Alderina, as conferências ordinárias são realizadas a cada quatro anos e as extraordinárias, a cada dois, desde que o CNAS foi instituído pela Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) em 1993. "O CNAS convocou a conferência, mas um dia depois, o ministro Omar Terra baixou uma portaria desconvocando", disse. "Foi solicitado aprovação de dois terços da plenária do Conselho do CNAS para realizar a conferência. Isso é inédito. Nunca aconteceu. Todos os estados realizaram suas conferências este ano, além de mais de três mil municípios, mas o governo federal não quis realizar o encontro nacional", lamenta.
Crise na assistência
Para ela, o
governo cria dificuldade para o debate justamente quando a assistência
passa por uma crise. "Neste momento de aumento de pobreza, desemprego e
congelamento de recursos, é muito importante fazer o debate, ouvir sobre
o que está acontecendo no Brasil. É angustiante ver o sofrimento dos
municípios com a falta de recursos para a assistência", afirma. Ela
conta que, em Umuarama (PR), visitou um sopão, de iniciativa da
sociedade civil, que teve 80% de aumento da demanda. "Sem ajuda do
Estado, as pessoas recorrerem a esses centro comunitários, que estão
sobrecarregados".
A Loas regulamentou o artigo 204 da Constituição de 1988, que determina o direito à assistência social. Em 2005, foi criado o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) nos moldes do SUS , para organizar a assistência em todo o território em rede com estados e municípios, que recebem transferência da União de fundos constitucionais da seguridade social.
A Loas regulamentou o artigo 204 da Constituição de 1988, que determina o direito à assistência social. Em 2005, foi criado o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) nos moldes do SUS , para organizar a assistência em todo o território em rede com estados e municípios, que recebem transferência da União de fundos constitucionais da seguridade social.
Ainda em consolidação, o
SUAS é formado por 8.387 Cras (centro de acolhimento e abordagem a
pessoas vulneráveis), 2.720 Creas (especializado em vítimas de
violência), 229 centros pop (para população de rua) e 28 centros dias
(para idosos). Normalmente, esses centros oferecem café da manhã, alguns
oferecem almoço, orientação sobre acesso a políticas públicas e atenção
psicológica, alguns oferecem atividades. Segundo Aldenira, para 2020, o
orçamento da assistência social está 46,11% menor se comparado ao de
2018 e 46,43% menor do que 2019. Ela afirma que são necesários R$ 2,2
bilhões para complementar o orçamento deste ano e R$ 1,1 bilhão para o
do ano que vem.
*Contribuiu André Phelipe Vieira, estagiário sob supervisão de Cláudia Dianni
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