Estudo global revela que o Brasil é um dos países com situação preocupante no monitoramento e resistência a antibióticos em alimentos de origem animal.
18 nov 2019
Há quatro anos, em uma fazenda de criação intensiva em
Xangai, na China, um exame feito em um porco prestes a ser abatido
encontrou uma bactéria resistente ao antibiótico colistina. O achado
acendeu um alerta que ecoou pelo mundo — cada vez mais temeroso com a
capacidade que microrganismos têm demonstrado em driblar tratamentos à
base de antibióticos.
A bactéria resistente encontrada no suíno, uma Escherichia coli,
levou os cientistas da China a aprofundar os exames — agora, também em
frangos de fazendas de quatro províncias chinesas, nas carnes cruas
desses animais à venda em mercados de Guangzhou, e em amostras de
pessoas hospitalizadas com infecções nas províncias de Guangdong e
Zhejiang.
Eles encontraram uma "alta prevalência" do Escherichia coli
com o gene MCR-1, que dá às bactérias uma alta resistência à colistina e
tem potencial de se alastrar para outras bactérias, como a Klebsiella pneumoniae e Pseudomonas aeruginosa. O MCR-1 foi encontrado em 166 de 804 animais analisados, e em 78 de 523 amostras de carne crua.
Já nos humanos, a incidência foi menor, mas se mostrou presente — em 16 amostras de 1.322 pacientes hospitalizados.
"Por causa da proporção relativamente baixa de amostras
positivas coletadas em humanos na comparação com animais, é provável que
a resistência à colistina mediada pelo MCR-1 tenha se originado em
animais e posteriormente se alastrado para os humanos", explicou em 2015
Jianzhong Shen, da Universidade de Agricultura em Pequim, um dos
autores do estudo, cujos resultados foram publicados no periódico The Lancet Infectious Diseases.
Mas como esse material genético resistente pode ter
passado dos animais para os humanos? O caminho de "transmissão" de
microrganismos (bactérias, parasitas, fungos e etc) resistentes é uma
incógnita não só para o caso dos porcos, frangos e pacientes na China,
mas para o uso veterinário e médico de antibióticos como um todo.
Pode ser que esses microrganismos ou resquícios de
antibióticos (restos dos medicamentos que, em contato com os micróbios,
podem estimular sua resistência) possam estar se alastrando pelos
alimentos, ou ainda através do lixo hospitalar, lençóis freáticos, rios e
canais de esgoto — e a investigação para desvendar as rotas de
bactérias tem motivado inúmeras pesquisas no Brasil e no mundo (veja detalhes sobre esses estudos abaixo).
"As bactérias não têm fronteiras: a resistência pode
passar de um lugar a outro sem passaporte e de várias formas", explica
Flávia Rossi, doutora em patologia pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Grupo Consultivo da OMS
para a Vigilância Integrada da Resistência Antimicrobiana (WHO-Agisar).
"Com a globalização, não só o transporte de pessoas é rápido, como os
alimentos da China chegam ao Brasil e vice-versa. Essa cadeia mimetiza o
que acontece com o clima: estamos todos interligados. Por isso, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) vem trabalhando com o enfoque de 'One
Health' ('Saúde única' em português, a perspectiva de que a saúde das
pessoas, dos animais e o ambiente estão conectados)."
Agora, a dimensão global do problema ganhou um
mapeamento inédito juntando pesquisas já feitas medindo a presença de
microrganismos resistentes em alimentos de origem animal em países de
baixa e média renda — e o Brasil aparece no grupo de lugares com
situação preocupante. Não quer dizer que o estudo considere o país como
um todo, mas pontos que já foram submetidos a pesquisas, como
abatedouros de bois em cidades gaúchas ou em uma fazenda produtora de
leite e queijo em Goiás.
Sul brasileiro: foco de resistência microbiana
China
e Índia foram, segundo os autores do estudo, publicado na revista
Science, "claramente" os lugares em que os maiores níveis de resistência
foram encontrados.
Mas o Sul do Brasil, leste da Turquia, os arredores da
Cidade do México e Johanesburgo (África do Sul), entre outros, se
destacaram também como hotspots, ou focos de resistência
microbiana em animais destinados à alimentação, principalmente bovinos,
porcos e frangos (com níveis elevados de P50, percentual acima de 50% de
amostras de microrganismos resistentes a determinados antibióticos).
As maiores resistências observadas foram relacionadas a
alguns dos antibióticos mais usados na produção animal, como as
tetraciclinas, sulfonamidas e penicilinas. Entre aqueles importantes
para tratamento também em humanos, destacaram-se a resistência à
ciprofloxacina e eritromicina.
Os autores reuniram ainda dados que apontam para focos
de resistência emergentes, ou seja, em que a resistência dos
microrganismos a antibióticos está crescendo. Aí, o Brasil também
aparece, tanto o Sul quanto o Centro-Oeste.
Após ler o estudo, a pesquisadora brasileira Silvana
Lima Gorniak, professora titular da Faculdade de Medicina Veterinária da
USP, liga o destaque ao Sul justamente a uma maior criação de aves e
suínos na região, animais para os quais há maior uso de antimicrobianos
com a finalidade de promover o crescimento (entenda os diferentes usos de antibióticos veterinários e seus impactos abaixo).
A situação da América do Sul é particularmente
preocupante por causa da carência de dados, diz o estudo: "Considerando
que Uruguai, Paraguai, Argentina e Brasil são exportadores de carne, é
preocupante que haja pouca vigilância epidemiológica da resistência
microbiana disponível publicamente para esses países. Muitos países
africanos de baixa renda têm mais pesquisas desse tipo do que os países
de renda média na América do Sul. Globalmente, o número de pesquisas per
capita não se correlacionou com o PIB per capita, sugerindo que a
capacidade de vigilância não é impulsionada apenas por recursos
financeiros."
Buscando ampliar, em partes, o acesso a esse tipo de
informação, os autores do estudo lançaram um banco de dados colaborativo
para cadastro de pesquisas sobre o tema em todo o mundo, o "Resistance
Bank".
"O Brasil precisa urgentemente de dados de vigilância
disponíveis publicamente sobre a resistência microbiana. É um grande
exportador de carne, todos comemos frango brasileiro, seria bom saber o
que há nele", escreveu por e-mail à BBC News Brasil Thomas Van Boeckel,
um dos autores do estudo e pesquisador do Instituto Federal de
Tecnologia de Zurique (ETH Zurich), na Suíça.
Em nota enviada à BBC News Brasil, o Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) afirmou que, "em relação ao
estudo da revista Science", está "ciente sobre a importância da
resistência aos antimicrobianos". "Trata-se de um dos maiores desafios
globais de saúde pública e que deve ser abordado pelos países atendendo
ao conceito de Saúde Única, exigindo ações imediatas de todos os
envolvidos".
A pasta garante que o país está correndo atrás para ter
um sistema de vigilância, por meio do Plano de Ação Nacional de
Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no âmbito da
Agropecuária (PAN-BR AGRO), cujo prazo previsto para implementação vai
de 2018 a 2022.
Segundo fontes consultadas pela reportagem, o cronograma do plano tem sido cumprido.
Um de seus pontos-chave, e já o colocado em prática, é a
realização de testes oficiais de rotina para detecção de micróbios
resistentes em animais e alimentos com essa origem.
São amostragens aleatórias de ovos, leite, mel e de
animais encaminhados para abate sob inspeção federal, mas o que se busca
são resquícios de antibióticos, e não microrganismos resistentes.
Em 2018, o relatório apresentado pelo ministério mostra
que o percentual de amostras com resquícios de antibióticos em
conformidade ficou na casa dos 99%.
"Para ser seguro para consumo alimentar, a presença de
determinadas bactérias tem que estar dentro de limites estabelecidos
pelas agências de saúde de cada país, o que já é feito. Mas mais do que
saber, por exemplo, a presença de Salmonella (gênero de
bactérias) em galinhas ou porcos, é possível testar sistematicamente a
suscetibilidade dela aos antibióticos — que é realmente o que nos
permite saber se as bactérias são ou não resistentes", aponta João Pedro
do Couto Pires, também coautor do estudo e pesquisador do ETH Zurich.
Frangos com Salmonella resistente em Estados brasileiros
Ainda que não tenha hoje um levantamento sistematizado, o
Brasil já teve experiências pontuais na medição da resistência
microbiana em alimentos de origem animal.
Uma análise feita entre 2004 e 2006 pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em amostras de frangos
congelados vendidos em 14 Estados brasileiros, detectou bactérias Salmonella e Enterococcus resistentes a vários antimicrobianos. Das 250 cepas de Salmonella analisadas, por exemplo, 77% foram consideradas multirresistentes (resistentes a duas ou mais classes de antibióticos).
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
destacou ainda que vem progressivamente proibindo medicamentos
veterinários usados com o objetivo principal de fazer os animais
engordarem, os chamados melhoradores de desempenho. Já foram proibidas
substâncias do tipo como os anfenicóis, as tetraciclinas e as
quinolonas.
"Na criação animal, há basicamente três tipos de uso de
antimicrobianos. O primeiro é o terapêutico, como ocorre com o ser
humano. A segunda maneira é a preventiva, como no desmame dos suínos —
esse animal provavelmente vai passar por estresse, vai ter uma
imunossupressão (redução da atividade do sistema imunológico), e ela
pode levar à infecção por várias bactérias, então se faz preventivamente
o tratamento", explica Silvana Lima Gorniak, da USP.
"A terceira maneira é a mais polêmica, a mais discutida
na ciência, que é a administração (de antimicrobianos) como melhorador
de desempenho. Nesse caso, o animal não tem nenhuma doença,
provavelmente não vai ficar doente, e o antimicrobiano é empregado com a
finalidade de promover o crescimento. Não se sabe exatamente como, mas o
animal de fato cresce."
A colistina, aquela a que bactérias em porcos na China mostraram resistência no estudo publicado no The Lancet Infectious Diseases em
2015, foi uma das substâncias proibidas para uso como melhorador de
desempenho em rações no Brasil, em 2016. Seu uso para o tratamento de
doenças, como diarreias, continua, no entanto, permitido por aqui.
Proibições foram impostas também em outros países, como a própria China,
Índia e Argentina.
Ao mesmo tempo, esta substância é colocada pela OMS no
grupo mais crítico entre os antibióticos que precisam urgentemente de
substitutos — já que são o último recurso para o tratamento de algumas
doenças para as quais outros antibióticos não funcionam mais, são
amplamente usados na medicina humana e já se mostraram altamente
vulneráveis à resistência microbiana.
Antimicrobianos passaram a ser mais significativamente
usados na criação de animais para consumo nos anos 1950 em países de
alta renda, algo que foi se estendendo para países de baixa e média
renda — onde hoje, inclusive, projeções mostram que o uso desses
medicamentos aumentará, já que a produção e consumo de carne nesses
países tem crescido.
O elo entre precariedade e uso de antibióticos
Thomas Van Boeckel destaca que, no mundo, o uso
excessivo de antibióticos está associado à criação intensiva de animais,
a produção industrial, "mas não em todos os países, algumas exceções
existem, como a Holanda e a Dinamarca", aponta.
Sandra Lopes, diretora da organização Mercy for Animals
no Brasil, vê o uso de antibióticos como uma das práticas degradantes
impostas aos animais.
"O uso de antibióticos força esses animais a seguirem
produzindo em um sistema completamente cruel, onde os animais não podem
exercer nenhum de seus comportamentos naturais", aponta a representante
da ONG, dedicada ao bem estar de animais ditos de produção, aqueles
destinados ao consumo alimentício.
Como exemplos, ela menciona criações com confinamento intensivo em gaiolas.
As galinhas poedeiras, confinadas em uma área análoga ao
que seria passar a vida inteira dividindo um elevador com outras 12
pessoas, segundo a ONG, não têm espaço para exercer comportamentos
naturais como abrir as asas ou ciscar. Sem forças nas pernas por não
movimentá-las, essas galinhas podem sofrer fraturas com o peso do
próprio corpo. Isso leva a um ciclo em que o uso de antibióticos se faz
necessário.
Há ainda a debicagem, quando os bicos dessas aves são
retirados para evitar, entre outros, o canibalismo — intensificado pelo
estresse vivido pelos animais. É algo que leva também ao corte dos rabos
dos porcos, procedimentos esses que muitas vezes exigem também o
emprego de antibióticos.
Lopes menciona ainda a falta de ventilação, a lotação de
animais ou ainda o contato com excrementos como características da
realidade da produção em escala que podem debilitar a saúde dos animais.
Por isso, a ONG defende, entre outras medidas, a melhor regulamentação
de várias etapas da criação de animais, a certificação de produtos
gerados em práticas consideradas satisfatórias (como existe no caso das
galinhas poedeiras criadas fora de gaiolas) e, como recomendação aos
clientes, a redução do consumo de produtos de origem animal.
Silvana Lima Gorniak destaca que a ligação entre
precariedade na produção e uso excessivo de antibióticos fica mais
evidente, uma vez mais, no caso dos melhoradores de desempenho.
"As condições sanitárias impactam diretamente no uso de
antimicrobianos. Os melhoradores de desempenho têm um efeito muito
benéfico naqueles lugares onde as condições sanitárias não são tão
adequadas. Em locais com higiene adequada, é claro que há benefícios,
mas ele é diluído", explica a pesquisadora.
Já os autores do artigo publicado na Science destacam
que o cenário de precariedade e consequente uso de antibióticos pode ser
uma faca de dois gumes para os produtores: "Uma consequência
fundamental desta tendência é um esgotamento do portfólio de tratamento
para animais doentes. Essa perda tem consequências econômicas para os
agricultores, porque os antimicrobianos acessíveis são usados como
tratamento de primeira linha, e isso pode eventualmente se refletir em
alimentos com preços mais altos."
Entidade veterinária pede maior controle de vendas de medicamentos no setor
"É como para a gente, humanos: os antibióticos
resolveram muitas questões, mas se a gente abusa, vai chegar uma hora
que eles não serão mais eficazes", resume Fernando Zacchi, assessor
técnico da presidência do Conselho Federal de Medicina Veterinária
(CFMV).
Zacchi diz que a entidade está empenhada em educar a
categoria para um uso mais racional de antibióticos e tornar mais
rigoroso o acesso a antimicrobianos veterinários — hoje, ele explica ser
necessária a apresentação, mas não retenção, da receita.
"Aí está uma fragilidade: estamos trabalhando com outros
órgãos para a obrigatoriedade da retenção e escrituração", aponta,
lembrando que entra na questão ainda o uso de antimicrobianos em animais
domésticos.
Outro ponto é o cumprimento da exigência de um
responsável técnico nos pontos de venda destes medicamentos, algo que é
fiscalizado pelo próprio CFMV — a BBC News Brasil pediu dados sobre
multas e autuações relacionadas a essas regras, mas não teve a
solicitação atendida.
"Embora o conselho e o Mapa entendam que deve haver um
responsável técnico nesses estabelecimentos, o Judiciário está
eventualmente dispensando este profissional, cuja presença garante mais
controle e rastreabilidade."
Segundo dados do Sindicato Nacional da Indústria de
Produtos para Saúde Animal (Sindan), nos últimos cinco anos, os
antimicrobianos abocanharam cerca de 16% das vendas de tratamentos
veterinários (que incluem ainda as categorias antiparasitários;
biológicos; suplementos e aditivos; terapêuticos). A reportagem pediu
valores — e não apenas percentuais — por categoria, mas não teve a
demanda atendida.
Em
nota enviada à BBC News Brasil, a Aliança para Uso Responsável de
Antimicrobianos, que representa várias entidades do setor produtivo,
afirmou também que no ramo a questão "é tratada com responsabilidade por
todos os elos da cadeia produtiva". "Contra achismos, a Aliança busca
construir um debate pautado pelo pensamento científico e pela
transparência. É formada por organizações nacionais da bovinocultura de
corte e leite, avicultura, suinocultura, aquicultura e pescado."
A Aliança defende que há controle interno, com análises
diárias feitas pelas próprias empresas sobre a questão e que o "Brasil
cumpre rigorosamente as determinações técnicas de todas as nações
importadoras".
Em relação à produção em escala, a entidade aponta que o
país "segue as diretrizes estabelecidas pela Organização Mundial de
Saúde Animal (OIE) para o alojamento dos animais".
"Na produção industrial, o sistema produtivo é isolado
em controles restritivos de acesso, o que evita a circulação de doenças.
Em situações de produção precária, sem as devidas salvaguardas
técnico-veterinárias, os riscos de enfermidades e o uso inadequado de
antibióticos são maiores", acrescentou.
E agora, o que fazemos em casa?
"Sou um cavaleiro do apocalipse", brinca Victor Augustus
Marin, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio).
À frente do Laboratório de Controle Microbiológico de
Alimentos da Escola de Nutrição (Lacomen), ele e seus alunos e
orientandos têm desenvolvido uma metodologia própria para encontrar
bactérias resistentes em alimentos minimamente processados, aqueles
prontos para consumo, como frutas e queijos. Um resumo do que eles têm
encontrado até aqui: muitas bactérias resistentes.
Em sua dissertação de mestrado orientada por Marin,
Cristiane Rodrigues Silva, por exemplo, buscou bactérias resistentes em
amostras de queijo minas frescal. Todos exemplares estudados
apresentaram algum conjunto de bactérias resistentes — em 13%, a
resistência foi constatada para todos os antibióticos testados e em 80%,
para 8 a 10 diferentes antibióticos. Foi constatada ainda resistência
em 87% dos queijos aos carbapanêmicos, tipo de antibiótico potente que é
considerado uma das últimas alternativas na luta contra microrganismos
muito resistentes.
Agora, Silva, Marin e o resto da equipe estão estudando
outros tipos de queijo, como minas padrão, parmesão, ricota e cottage;
além de frutas compradas no comércio comum, como manga, laranja e caju.
Eles também querem verificar se outras formas de produção, como a
orgânica, podem alterar a presença de microrganismos resistentes.
"Comprovamos não só que as bactérias nos alimentos
estudados até agora têm alguma resistência, como genes de resistência",
aponta Marin, acrescentando que, embora em escala muito menor do que na
pecuária ou entre humanos, antibióticos são usados também na
agricultura.
"Como essa bactéria chegou ao queijo? Tem que voltar ao
campo: a vaca come capim, que tem dentro dela bactérias endofíticas, que
vivem dentro das plantas. A vaca ingere a planta, produz leite e o
leite vai para o queijo. Mas é difícil falar quem originou a bactéria
primeiro — elas evoluem junto com os humanos e animais. Também são
promíscuas: trocam material genético."
As diversas variáveis que influenciam a resistência dos
micróbios são justamente o que representa um desafio para as pesquisas:
para traçar o caminho dos microrganismos através dos animais, humanos e
do ambiente, seriam necessários grandes volumes de amostras desses
elementos.
E em tempo real, lembra João Pedro do Couto Pires, já
que muitas vezes é diagnosticada alguma infecção em uma ponta, mas sua
origem muitas vezes já se perdeu no tempo.
Por isso, o alarme tocado pelo artigo na Science traz um
porém: "Está além do escopo deste estudo tirar conclusões sobre a
intensidade e a direcionalidade da transferência de resistência
microbiana entre animais e humanos — aspectos que devem ser investigados
com métodos genômicos robustos".
Enquanto a ciência busca decifrar o caminho percorrido
pelas bactérias, o que nós, humanos e consumidores de alimentos podemos
fazer?
Flávia Rossi, patologista da USP, lembra de
procedimentos básicos de saneamento e higiene que cortam a circulação de
microrganismos, como lavar as mãos; o uso de água potável na cozinha; e
o armazenamento adequado de alimentos.
O cuidado deve ser redobrado com pessoas mais
vulneráveis, como hospitalizados, imunossuprimidos ou transplantados.
"As bactérias também nos protegem, estão no nosso intestino, na nossa
pele... Mas elas nos atacam quando há um desequilíbrio", diz.
João Pedro do Couto Pires brinca que, hoje, nossas casas
são mais perigosas do que restaurantes por haver menos cuidado com
questões sanitárias. Ele destaca ações a serem evitadas: misturar
alimentos crus e cozidos; ou carnes e vegetais, como, por exemplo, no
refrigerador ou no uso de uma mesma faca ou tábua para esses dois tipos
de alimentos. Essas misturas levam a fluxos de microrganismos que, no
caso de alimentos crus, como vegetais em uma salada, acabam sendo
ingeridos pela pessoa que está comendo.
Marin garante que não se trata de parar de comer
alimentos como os estudados por sua equipe, como queijos e frutas, mas
de aprofundar investigações sobre como a resistência microbiana se
expressa neles — para, aí sim, fazer-se uma escolha entre custos e
benefícios. Por exemplo, algo a ser levado em conta, segundo descobriu
sua equipe, é que queijos mais úmidos exigem maior cuidado no assunto.
"O queijo, além de ter bactérias com resistência, também
tem outra microbiota — outras bactérias — que combatem as que têm
resistência. Ninguém é demônio e ninguém é anjo, inclusive entre as
bactérias. Por isso a visão holística (multifatorial) é tão importante",
diz.
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