Climatologista Carlos Nobre, ex-presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, diz à BBC News Brasil que, em ritmo atual de deflorestamento, região pode chegar a ponto de se transformar gradualmente em savana.
19 nov 2019
O desmatamento pode estar levando a Floresta Amazônica
para uma situação na qual a floresta não consegue mais se regenerar
diante das agressões provocadas pelo homem. Se o ritmo atual de
devastação for mantido (ou aumentar), este "ponto de não retorno" pode
chegar já em algum momento entre 15 a 30 anos. O alerta é de um dos
principais estudiosos do tema no país, o climatologista Carlos Nobre.
Nobre conversou com a BBC News Brasil na tarde desta segunda-feira
(18), horas depois do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
revelar um aumento de 29,5% no ritmo do desmatamento da Amazônia entre
agosto de 2018 e julho de 2019.
Segundo o sistema Prodes, do Inpe, o país perdeu 9.762 km² de floresta
neste período — ante 7.536 km² desmatados na medição anterior. A taxa
divulgada nesta segunda é a maior desde 2008, quando quase 13 mil km² de
floresta foram destruídos.
Os dados do Prodes levam em conta o período de agosto a julho por conta do ciclo de chuvas da região.
Segundo Carlos Nobre, há evidências de que o "ponto de não retorno"
está prestes a ser atingido em alguns locais da , especialmente nas
regiões sul e leste da floresta — a estação seca do ano está ficando
mais longa nesses locais, e a temperatura está subindo.
"Nossos cálculos indicam que se o desmatamento continuar nesta taxa —
em toda a Amazônia, não estou falando apenas da (floresta) brasileira —
ou se subir, temos de 15 a 30 anos no máximo antes disso, antes de
ultrapassarmos irreversivelmente este ponto", disse ele na entrevista à
BBC News Brasil.
Os dados sobre o desmatamento na Amazônia tornaram-se fonte de desgaste
para o governo em julho e agosto deste ano, quando medições
preliminares de outro sistema do Inpe, o Deter, apontaram para um
crescimento do desmatamento.
Em 19 de julho, num café da manhã com jornalistas, o presidente da
República, Jair Bolsonaro, disse que os dados preliminares do Inpe não
eram corretos — e que o então presidente do Instituto, o físico Ricardo
Galvão, estaria "a serviço de alguma ONG (organização
não-governamental)". A crise resultou na demissão de Ricardo Galvão do
comando do Inpe, no começo de agosto.
Agora, diz Carlos Nobre, as informações do Prodes (que tem nível de
confiança superior a 95%) confirmam as suspeitas levantadas pelo Deter
sobre o aumento no desmatamento.
"Era muito correto afirmar que haveria um aumento muito significativo
do desmatamento, e o Prodes confirmou. Não há dúvida disso", disse.
Os dados divulgados na segunda-feira não dizem respeito somente à
gestão de Jair Bolsonaro, iniciada em janeiro de 2019. Mesmo assim, o
ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, admitiu em entrevista a
jornalistas na segunda-feira que será preciso "adotar uma estratégia
diferente", articulada com os governos estaduais, para combater o
aumento no desmatamento.
Jair Bolsonaro tem criado polêmicas com ambientalistas desde a campanha
eleitoral de 2018. Durante a campanha, disse repetidas vezes que não
faria a demarcação de novas terras para indígenas e quilombolas, além de
criticar o trabalho da fiscalização ambiental.
Depois de eleito, enviou ao Congresso medida para fundir a pasta do
Meio Ambiente com a Agricultura — mas a proposta foi rejeitada. Mesmo
assim, alterações na estrutura do órgão fizeram com que o Meio Ambiente
perdesse quase 20% de seus analistas. Já no Ibama, os sinais emitidos
por Brasília e a falta de dirigentes nas unidades do órgão fizeram com
que o número de multas caísse apesar do aumento do desmatamento.
Carlos Nobre é doutor em meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), e já presidiu o Painel
Brasileiro de Mudanças Climáticas, além de ter integrado o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, o IPCC.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Quão graves são os dados do Prodes publicados pelo Inpe nesta segunda-feira? Deveríamos estar preocupados?
Carlos Nobre - Devemos sim ficar bem preocupados. Os
dados mostram um aumento considerável do desmatamento, na verdade uma
continuidade no aumento que é observado desde 2015. (O desmatamento) deu
um salto. Chegando perto de 10 mil quilômetros quadrados (desmatados), e
um crescimento de quase 30% em relação a 2018. Logicamente que isso é
bastante preocupante, e eu acho que não dá mais para continuar na
inação. É preciso uma ação muito rigorosa agora para reduzir o
desmatamento e as queimadas na Amazônia, que em grande parte são
ilegais.
BBC News Brasil - Ao longo deste ano, falou-se muito sobre um
estudo do senhor a respeito de um "ponto de não retorno" da Amazônia,
isto é, um certo limite do desmatamento a partir do qual a floresta se
tornaria uma savana, parecida com o Cerrado. O quão perto estamos disso?
Carlos Nobre - Olha, nós temos uma série de sinais (de
problemas) vindos da região amazônica, (especialmente) do sul e do leste
da Amazônia. A estação seca (nestes locais) está ficando mais longa. Se
ela passar de quatro meses, atingimos esse ponto de não retorno. Está
ficando mais quente também. Então são vários sinais de que o sul e o
leste da Amazônia estão chegando perto desse ponto de não retorno.
Nossos cálculos indicam que se o desmatamento continuar nesta taxa — em
toda a Amazônia, não estou falando apenas da (floresta) brasileira — ou
se subir, temos de 15 a 30 anos no máximo antes disso, antes de
ultrapassarmos irreversivelmente este ponto.
BBC News Brasil - E nesse caso, as consequências não seriam sentidas apenas naquela região.
Carlos Nobre - Impacta o clima da Amazônia, (mas
também) impacta o clima de outros lugares da América Latina. Por
exemplo, a floresta esfria o ambiente, mantém as temperaturas mais
baixas. Se você desmata, as temperaturas aumentam aí qualquer coisa
entre 2 e 3 graus (Celsius). Esse ar mais frio que passa pela Amazônia
ele chega ao Cerrado, então você já teria um aumento de temperatura no
Cerrado, que já é quente. Então prejudicaria a produtividade agrícola e a
vegetação do Cerrado.
Há muitos estudos que indicam também que o vapor d'água que passa pela
Amazônia alimenta as chuvas no sul da bacia do (Rio da) Prata (na
Argentina).
E pode ter influência também nas chuvas em outras partes do Brasil,
ainda que os estudos científicos ainda não tenham descrito todos os
mecanismos em detalhe, mas pode ter impacto em outras regiões também.
BBC News Brasil - É possível estimar quantos desses 9.762 km²
quadrados de desmatamento apurados pelo Prodes são fruto da derrubada
ilegal?
Carlos Nobre - Olha, não dá para dizer em área. Mas o
que é possível dizer, de forma qualitativa, é que aproximadamente 90% do
desmatamento detectado pelo sistema Deter (do Inpe) são ilegais.
São de dois tipos. 40% disso é roubo de terra, grilagem. E o restante é
desmatamento em propriedade privada, mas sem autorização legal para
este desmatamento. Para você desmatar em propriedade privada, é preciso
permissão (do órgão ambiental). Na maioria dos casos são desmatamentos
que excedem o limite da reserva legal, ou invade uma área de proteção
permanente, como uma nascente ou a margem de um rio.
BBC News Brasil - Algumas pessoas insistem em uma oposição entre
preservação da Amazônia e a realização de atividades produtivas naquela
região. Como é a dinâmica do desmatamento naquele bioma?
Carlos Nobre - Algo acima de 80%, ou perto de 90% do
desmatamento na região é ilegal, como já dissemos. Então (o
desmatamento) é muito controlado pelo crime organizado, pela grilagem,
pelo roubo de terra. Então não tem uma verificação muito robusta,
científica, que dê sustentação à ideia de que o desmatamento está
reduzindo a pobreza (da população da Amazônia). De que está havendo um
grande aumento da produção agropecuária, de que as famílias estão se
beneficiando. Isso não existe.
Não existe relação entre o aumento do desmatamento e a redução da
pobreza, a redução da desigualdade (na região). E eu não estou falando
sobre o ano de 2019. Eu estou falando dos últimos 50 anos nos quais
existe essa prática. Na Amazônia, o desmatamento está muito associado
com o crime.
Alguns criminosos ganham (com o desmatamento). Alguns criminosos ganham
muito. Mas grande parte da população não tem qualquer benefício. Você
pega, por exemplo, uma grande fazenda de pecuária: ela contrata
pouquíssimos empregados, que quando ganham um salário mínimo estão
ganhando bem. Então não é um modelo que reduz a pobreza ou que traz
bem-estar à população amazônica.
BBC News Brasil - O número de 2019, mesmo sendo muito alto, está
abaixo das taxas que ocorriam até 2008. O que é que foi feito para
baixar o desmatamento de lá para cá?
Carlos Nobre - O que aconteceu foi um plano chamado
PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na
Amazônia Legal). Foi muito efetivo entre 2005 e 2014. Reduziu o
desmatamento em 75%. Foi uma soma de três ações principais, mas a mais
efetiva foi (o aumento da) fiscalização, com uma articulação importante
entre Polícia Federal, Ibama, órgãos estaduais de meio ambiente,
polícias militares, Ministério Público.
Essas ações de fiscalização de campo foram devidamente financiadas e
começou a aumentar muito o risco do criminoso ambiental, reduzindo o
desmatamento.
Não podemos esquecer que de 2005 a 2014 a produção agropecuária da
Amazônia dobrou. Dobrou. Então produção não tem nada a ver com o
desmatamento.
A outra política foi de incentivo aos municípios que reduziram o
desmatamento, e punição aos que aumentaram. Isso teve um efeito muito
bom. Prefeituras, câmaras de vereadores, todos passaram a se empenhar,
porque tinha muitos benefícios vindo do governo federal.
E por fim, uma política de demarcação de áreas protegidas e de terras
indígenas muito efetiva, que barrou o avanço dessa fronteira do
desmatamento ilegal.
Essas eram as três "pernas" principais desta política. Se você
perguntar o que o governo deve fazer se estiver falando sério a respeito
de frear o desmatamento? Deve voltar a aplicar as coisas que deram
certo. Principalmente a fiscalização. Tem que arrumar (dinheiro), tem
que mandar o ministro da Economia (Paulo Guedes) abrir um pouco o cofre
para financiar todas as ações necessárias à redução da ilegalidade.
BBC News Brasil - Em meados do ano, os veículos de imprensa
estavam citando dados de um outro sistema do Inpe, o Deter, que já
indicava um aumento no desmatamento. À época, o governo dizia que
aqueles dados não eram suficientes para atestar um aumento no
desmatamento.
Carlos Nobre - A informação estava correta. A gente
sabe que o Deter captura entre 60 e 70% do que o Prodes, que foi lançado
hoje, mostra. Portanto o Deter, pegando seis meses do Deter antes do
lançamento do Prodes, ele mostrava 40, 50% de aumento. Era muito correto
afirmar que haveria um aumento muito significativo do desmatamento, e o
Prodes confirmou. Não há dúvida disso. O que foi feito lá atrás, que
foi divulgado uma tendência de aumento em junho, julho, agosto, está
absolutamente correto.
O Deter capturou a tendência de aumento.
BBC News Brasil - O dado que foi divulgado nesta segunda-feira
(18) é um dado ainda preliminar. Os dados consolidados do Prodes só
sairão no 1º semestre de 2020. Por que isto ocorre?
Carlos Nobre - A Amazônia, por ser coberta por vários
satélites, possui centenas e centenas de imagens diferentes, a depender
da resolução do satélite. E aí, para poder lançar isso logo agora em
outubro, novembro, o Inpe pré-seleciona as áreas onde está sendo
observado o mais intenso desmatamento. Aí ele mede toda aquela área e
faz um cálculo estatístico e diz 'olha, quando eu olhar todas as
imagens, provavelmente vai ter este valor'.
E aí, às vezes, quando o Inpe processa todas as imagens, lá por abril
ou maio, que ele lança o dado anual, esse dado às vezes é um pouquinho
maior ou um pouquinho menor. O número de hoje é uma estimativa do que
será o número final, quando analisadas todas as imagens. (A variação em
anos anteriores foi de 2% a 7% para mais ou para menos, acrescenta o
pesquisador).
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