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Ex-ministra do Meio Ambiente se define como ‘sustentabilista progressista’ e comenta desmonte da política ambiental por Bolsonaro
Ex-senadora pelo Acre, a historiadora conversou com a reportagem por uma hora e meia na sede do partido que criou, a Rede Sustentabilidade, em Brasília. Quando soube que havia sido escolhida pelos leitores aliados da Agência Pública como entrevistada do mês, disse imaginar o motivo: as recentes tragédias ambientais que atingiram em cheio o Brasil, como a explosão das queimadas na Amazônia e o derramamento de óleo que atinge o Nordeste e o Sudeste. O meio ambiente foi tema, mas não só: ela falou sobre a situação na América Latina, sobretudo na Bolívia; se colocou a favor da prisão em segunda instância – com a ressalva de que a recente decisão do STF deve ser respeitada – e relembrou sua saída do governo Lula.
As críticas à atuação do presidente Bolsonaro e sua equipe não se restringiram à pauta ambiental – de acordo com Marina, o atual governo promove “um desmonte generalizado” nas agendas brasileiras. Ela não acredita, porém, que o país corra o risco de sofrer novas “aventuras autoritárias”, ainda que essas intenções apareçam no discurso da família presidencial. “Não há lugar para reeditar o autoritarismo no Brasil. Todavia, se não há lugar para reeditá-lo, é porque a nossa vigilância, desde que reconquistamos a democracia, nunca baixou. É ela que vai nos assegurar – o Congresso, as instituições do poder Executivo, Legislativo e Judiciário”, destaca. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Agência Pública – O único presidente indígena da história da Bolívia, Evo Morales, acaba de renunciar e partir para o México em exílio. É uma história com diversos aspectos: rompimento com parte do movimento indígena, eleições com suspeita de fraude, protestos de parte da população, pressão dos militares, saída de Evo. Na sua opinião, o que significam simbolicamente esses aspectos?
Marina Silva – Acho que temos que olhar o que está acontecendo na Bolívia no contexto da América Latina: partidos, movimentos e líderes com identidade popular e social que não foram capazes de valorizar, para além das contribuições efetivas que deram, a questão do fortalecimento da democracia e da alternância no poder.
Quando olhamos para todos esses acontecimentos, encontramos uma raiz: a necessidade caudilhesca de se perpetuar no poder, uma atitude bastante focada numa liderança forte e única que não prepara novas lideranças. Diferentemente do que aconteceu com o [Pepe] Mujica, que foi capaz de produzir um sucessor, na maioria dos outros casos isso não aconteceu, ou pelo menos houve uma tentativa de não permitir que acontecesse.
Em uma democracia não se pode sustentar uma postura – e eu já venho dizendo isso desde 2010 – de ter um projeto muito bom e justo, mas que só funciona com você. E você não prepara as bases do ponto de vista político, social e cultural para estabelecer um processo ou uma comunidade política, que se oriente por princípios e valores e estabeleça um termo de referência em que determinadas questões, como defesa dos direitos humanos, sustentabilidade, justiça social, desenvolvimento e prosperidade, aconteçam independentemente de quem vai ser o governo a estar de plantão.
Isso, para mim, é uma falha que leva a esses esgarçamentos com desdobramentos terríveis, como temos hoje no caso da Bolívia. Em 2015, a terceira eleição do Evo já foi uma mudança na Constituição. Essa quarta tentativa foi convocada por referendo, cujo resultado foi “não”, e foi feita uma manobra institucional via uma corte majoritariamente nomeada por ele, com identificação política e ideológica com ele, que, evocando a tese de que ele não poder concorrer seria um atentado aos direitos humanos, concede a possibilidade de uma quarta eleição.
É inegável que ele dá uma grande contribuição, inclusive de cidadania política para setores que eram excluídos, inclusão social, melhoria em termos econômicos – porque cresce uma média de 4% a Bolívia, depois de viver momentos bastante difíceis, ainda que seja um dos países mais pobres da América do Sul. Mas tudo isso agora foi comprometido em função da incompreensão de que, quando você assume o poder, não pode ser o único, o dono do destino das pessoas e do destino da nação.
Para além disso, é preciso que se tenha claro que um erro não justifica o outro: o uso da violência, os confrontos, o esgarçamento dos processos institucionais, uma atitude altamente antidemocrática e autoritária, beirando o fundamentalismo político e ideológico, misturando com o fundamentalismo religioso, em prejuízo da democracia, das instituições e da sociedade.
Qualquer saída tem que considerar os processos de soberania do povo boliviano, de uma eleição que seja convocada em processo soberano e democrático, para restabelecer a institucionalidade democrática na Bolívia. O que está acontecendo lá é muito preocupante, mas a Venezuela é um caso semelhante de uma cultura caudilhesca que não quis sair do poder, só que com forte controle militar, até por todas as benesses e pela cultura militar que tinha o Chávez, que conseguiu manter o seu estamento político militar sobre a vontade soberana da população.
No caso do Evo, que não vem dessa cultura militar, e sim de uma cultura de militância social, ainda bem que ele não apostou em uma situação de confrontar ainda mais para derramamento de sangue.
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AP – Na sua opinião, Evo Morales fez certo ao renunciar?MS – Se a renúncia tem a ver com o reconhecimento de que o povo não poderia pagar um preço tão alto por erros que foram sendo cometidos e pela busca de uma saída institucional de pacificação, de uma eleição democrática, com certeza sim.
Ainda é muito duvidoso, não sabemos quais são as estratégias que estão do lado, porque nesse momento, ao que tudo indica, forças de ultradireita estão se sobrepondo até mesmo aos candidatos que tiveram votações expressivas. O próprio candidato que iria para o segundo turno com o Evo [Carlos Mesa, ex-presidente] está dizendo que também se sente ameaçado.
AP – A Bolívia é a bola da vez e a senhora citou a Venezuela, mas o Chile, a Argentina e o Equador também enfrentaram grandes manifestações recentemente. Qual reflexo em nossa realidade do que acontece no continente?
MS – É que a nossa realidade não é uma ilha asséptica. Nós estamos afetando a América Latina. O Brasil, um país que teria a responsabilidade de mediação – inclusive, na Venezuela, de não ter permitido, em termos diplomáticos, que a situação fosse para onde foi –, não foi capaz de fazer isso em dois momentos por alinhamento ideológico. No governo do PT, por um alinhamento com o chavismo quase incondicional e acrítico – poderia ter ajudado a tentar construir e repor as coisas –; e no caso do Bolsonaro também por questões ideológicas, por negação extremada de qualquer possibilidade de agir de forma mediadora.
No caso do Chile, sempre foi visto como um país que tinha alcançado ganhos nos últimos 30 anos – conseguiu ter um crescimento econômico e diminuir a pobreza –, mas as pessoas não podem viver tendo como patamar da sua expectativa de vida o que acontecia há 30 anos. O que acontecia há 30 anos não pode ser usado para dizer “olhe, fiquem com o pouco que ganharam e está tudo bem”, porque a concentração de renda foi ficando cada vez mais abissal, simbolicamente falando, entre o 1% mais rico e os demais da pirâmide social.
E agora temos uma situação também bastante difícil, o governo está tentando se manter, porque tem ali um presidencialismo que está conseguindo manejar essa situação, mas com sérias dificuldades, inicialmente lançando mão da violência, da repressão à sociedade. Só depois é que vai reconhecer que havia necessidade de reformas e de concessões.
AP – Em relação à Argentina, a falta de mediação do governo foi ainda mais escancarada.
MS – Temos uma situação extrema, em que democraticamente o povo da Argentina escolhe um presidente e o governo [brasileiro] imediatamente dá uma declaração desrespeitando essa decisão. Quando o próprio perdedor diz que quem decidiu foi o povo, nós temos que ter um papel de mediação e reconhecer a autonomia e soberania, o veredito popular, mas tem situações em que esse veredito vai ficando completamente adulterado.
O Brasil mesmo viveu uma situação difícil, em 2014. Digo sem medo que, em 2014, tivemos uma fraude eleitoral com dinheiro da corrupção da Petrobras, Banco do Brasil, Fundos de Pensão e Caixa Econômica, de Belo Monte. A vontade soberana do povo foi fraudada pela mentira e pelo dinheiro da corrupção.
AP – Há pouco mais de uma semana, o ex-presidente Lula foi solto em decorrência da decisão do STF contrária à prisão após segunda instância. Na opinião da senhora, o que muda no cenário político com esse novo fato?
MS – Houve uma decisão da Suprema Corte que deu base para que o presidente usufruísse dessa decisão. Numa democracia, podemos até discordar das decisões tomadas pela Justiça, mas a gente respeita o locus de cada poder e o veredito da Justiça, senão entramos num caos institucional.
Agora o que pode ser feito – é o entendimento até mesmo do Toffoli no seu relatório – é o Congresso mudar a Constituição. Eu defendi e defendo a prisão em segunda instância porque, quando você chega à segunda instância, todos os elementos comprobatórios da acusação e da defesa já estão devidamente analisados.
Ao subir para instâncias superiores, o que vai ser discutido é apenas a formalidade, a processualística. E geralmente quem consegue isso são aqueles que pagam fortunas com bancas de advogados, os poderosos do poder econômico ou político. Há todo o discurso feito em nome dos pobres, mas esses não vão usufruir dessa interpretação da lei.
Espero que, no Brasil, a gente não aprofunde cada vez mais a polarização. O Brasil já é hoje um país dividido, e ninguém que ama o Brasil pode contribuir para que vire um país cindido. Temos um país se cindindo novamente na Bolívia, em que já houve momentos sangrentos. A saída, para mim, não é no campo da polarização, é o que a gente constrói com a sociedade, sem a ansiedade de quem vai ser o herdeiro dessa construção, mas com o legado para reequilibrar os rumos da nossa nação.
Não é uma questão de se o que está acontecendo no Chile, na Bolívia e no Peru prejudica o Brasil, é o Brasil que está se prejudicando com a cisão, com a corrupção, com um governo que não respeita o meio ambiente, os povos indígenas, os direitos humanos, a liberdade de expressão e aquilo que é a natureza de uma democracia ocidental.
AP – Há dois pontos no conflito, o bolsonarismo e o lulismo. Como é que se administra isso? Temos gente qualificada para evitar que a temperatura aumente e a radicalização cresça?
MS – Não gosto do narcisismo político, de você achar que pode fazer alguma coisa que evite isso ou aquilo. Prefiro esperar e acreditar que coletivamente lideranças políticas, formadores de opinião e instituições ajudem o povo brasileiro a não permitir que se aprofunde essa polarização a ponto de chegar numa cisão. Atores têm responsabilidade, uns têm mais alcance e outros menos, mas cada um com seu pequeno alcance que dê a contribuição para que a sociedade faça o interdito dessa cisão política, e só a sociedade pode fazer isso.
A nossa democracia tem amadurecido, não podemos achar que existem barreiras infalíveis. Se você ficar atirando num muro no mesmo lugar todo dia com um canhão, por mais forte que ele seja, vai chegar um momento em que você derruba. Temos uma democracia com suas fragilidades e suas fortalezas – ela tem atravessado muitas situações –, mas também não podemos abusar do fato de que reconquistamos a democracia há tão pouco tempo.
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AP – Em entrevista recente à Pública, Lula disse que a
senhora saiu do governo porque quis. Em sua carta de demissão, a senhora
escreveu que deixava o cargo por dificuldades em “dar prosseguimento à
agenda ambiental federal” e que era necessária a “reconstrução da
assistência política para a agenda ambiental”. Quais eram essas
dificuldades e que reconstrução a senhora tinha em mente naquela época?MS – Quando falei em reconstrução de sustentabilidade para a agenda política, eu me referia ao próprio governo. Era uma observação política generosa ao governo que permanecia na minha saída, que a sustentação fosse restabelecida. O que aconteceu agora, que levou à demissão do presidente do Inpe, Ricardo Galvão, só não aconteceu na época que em saí porque a minha saída não foi letra morta como alguns acharam que seria.
AP – A senhora evitou que isso acontecesse?
MS – Eu não, mas a sociedade brasileira e a opinião pública nacional e internacional. Não ficaram calados, achando que eu era mais um que saía e que não teria nenhum prejuízo para a agenda ambiental, que conseguiu fazer um plano que por dez anos reduziu o desmatamento em 80%; jogou 725 criminosos na cadeia; implodiu 86 pistas na Amazônia; inibiu 60 mil propriedades de grilagem, regularizadas depois da minha saída, em 2009, com medida provisória [MP 458, que formalizou propriedades na Amazônia Legal]; vedou crédito para os ilegais; aplicou R$ 4 milhões em multas; criou 20 milhões de hectares de unidades de conservação; criou um sistema de detecção de desmatamento em tempo real, aberto de forma transparente para a opinião pública ver.
Aliás, foi a coisa mais acertada, porque quando eu saí as pessoas sabiam o que estava sendo feito e o que estava em risco; se não tivesse tido uma comoção, o plano não teria continuado.
AP – Em que circunstâncias exatamente se deu sua saída?
MS – Eu saí porque os mesmos que dizem que não existem mudanças climáticas também iam dizer na época. Os mesmos que diziam que os dados do desmatamento estavam errados foram lá dizer na época, e da mesma forma, as pessoas começaram a achar que as medidas estavam exageradas – inclusive, o presidente Lula, orientado pelo Mangabeira Unger [à época, ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos], que era contra o plano, achava que era um exagero. Percebendo que o presidente estava sendo induzido ao erro, fiz aquela carta de demissão em caráter irrevogável.
Claro, foi porque eu quis, porque eu não queria ficar esquentando o banco. Quis sair criando um fato político para que o presidente visse na opinião pública brasileira se ela concordava ou não com as medidas que ele tinha assinado. Como a opinião pública disse que as medidas estavam corretas, ele nomeou o Carlos Minc, que é um ambientalista e deu continuidade às medidas.
Aliás, no Brasil, sempre tivemos ministros ambientalistas: uns fizeram mais, outros menos, mas todos queriam fazer o máximo. Seus governos e as conjunturas os impediram, mas lutavam para fazer o máximo sempre, desde a ditadura, com o professor Paulo Nogueira Neto – o maior ambientalista do Brasil junto com o Chico Mendes. Foi ele que criou o Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente], o único conselho deliberativo desta República. É a primeira vez na história do Brasil que temos um ministro antiambientalista.
Eu saí porque não ia permitir que desmoralizassem o Inpe, tanto não permiti que peguei um avião, peguei o técnico do Blairo Maggi [à época, governador do Mato Grosso], e diferentemente de agora, tinha o apoio do ministro de Ciência e Tecnologia, fomos lá e desmascaramos o que estavam dizendo sobre os dados do Inpe. É assim que se faz quando se tem compromisso. Quando não se tem, se fica baixando a cabeça e prejudicando o próprio governante. O presidente da República tem que ser bem assessorado, a melhor forma de assessorá-lo é sendo leal, e a melhor forma de ser leal é dizendo a verdade.
AP – Em entrevista em 2010, a senhora afirmou que Mangabeira Unger “fez um grande mal para a Amazônia” – meses antes, uma reportagem havia revelado que propostas de mudanças de Mangabeira à MP da Amazônia beneficiavam Daniel Dantas, dono de terras na região. Temer continuou a favorecer o agronegócio e agora o governo Bolsonaro quer a titulação de propriedades rurais por autodeclaração. A senhora vê uma linha direta entre o prestígio do agronegócio desde aquele momento do governo Lula e o que está acontecendo hoje?
MS – Vou preferir dizer que o que vejo é um aprofundamento do desprestígio da agenda socioambiental. No primeiro governo do presidente Lula, muita coisa foi feita na economia, nas políticas sociais, ambientais, de direitos humanos. No segundo governo do Lula, as coisas foram arrefecendo, e pessoas que tinham titularidades com proeminência nas pastas que ocupavam foram sendo substituídas, exceto no meu caso, porque o Minc é um ambientalista – depois veio a Izabella [Teixeira], uma técnica de carreira [nos órgãos ambientais], uma pessoa da agenda ambiental.
Quando você chega no governo da Dilma, não por acaso o desmatamento começa a subir em 2012. Se pegar a quantidade de terras indígenas criadas nos governos Collor até Dilma, é incomparavelmente maior [o número de TIs criadas no governo Collor], passando por Fernando Henrique, Itamar. Se você for verificar a criação de assentamentos da reforma agrária, incomparavelmente maior. Se for olhar a criação de unidades de conservação, também.
Não é por acaso que a Dilma é quem abre, digamos assim, as comportas de diminuir áreas de unidades de conservação que já haviam sido criadas, inclusive ali na Reserva do Jamanxim [no Pará]. É um processo, costumo dizer que essa agenda envolvendo o agronegócio vai numa crescente, e na agenda do desmatamento, a Dilma juntou o cal, o Temer botou a pá de cal e o Bolsonaro deu o tiro de misericórdia.
É um tiro de misericórdia na agenda ambiental brasileira o desmonte do Ministério do Meio Ambiente, o corte dos orçamentos, o enfraquecimento da gestão da governança ambiental, a sinalização política e concreta de que agora é o tempo de uma economia do século 20 e de uma relação com o meio ambiente quase pré-Relatório Nosso Futuro Comum [elaborado em 1987 pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento].
É como os diques da Holanda: se começam a ser furados, chega um momento em que arrebentam, e arrebentaram. Quando eu disse “fortalecer as bases”, era para que o governo assumisse o legado que produziu – e foi um grande legado, reconhecido no mundo inteiro. Sempre lutei para que fosse apropriado como uma ação de governo, mas era algo que ficava sempre no Ministério do Meio Ambiente, como se fosse uma coisa isolada e que não era importante, porque perdia voto. Quantas vezes as pessoas me disseram que não era bom que eu aparecesse nos programas eleitorais porque iria perder voto? Perder voto de quem, de grileiro, de madeireiro?
AP – Que futuro ao ambientalismo e indigenismo oferece esse governo? Esse legado todo se perdeu e vem aí uma nova visão em relação a isso?
MS – Nova visão, impossível. Esse paradigma é velhíssimo: de que os recursos naturais são finitos, de que os índios não têm direitos e devem ser civilizados, assimilados – dá até vergonha de falar essas coisas em pleno século 21. Essa é a visão mais tacanha e inaceitável que existe. O que tem aí é um cenário de muita resistência, feita pelos índios, ambientalistas, movimentos sociais. É uma situação bastante delicada, porque você tem um governo que não se importa com a opinião pública internacional, e o pouco que o faz ter ainda alguma nuance é quando o agronegócio o desautoriza, de forma estratégica.
Quando o governo disse que acabaria com o Ministério do Meio Ambiente, uma parte do agronegócio o desautorizou e ele, como é obediente ao agronegócio, não acabou com o ministério legalmente, mas acabou na prática. E assim vai ser: não cumpriremos as metas do Acordo de Paris, só não saiu dele porque uma parte do agronegócio o desautorizou. Sabe aqueles desenhos animados em que a panela fura de um lado, fura do outro, e o personagem vai botando um dedo num canto, em outro, e daqui a pouco estão o dedo do pé, o nariz, as orelhas, tudo tentando tapar buraco e não consegue? É isso que está acontecendo com as agendas brasileiras: educação, meio ambiente, cultura, todo canto. É um desmonte generalizado.
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AP – O que a senhora vê de mais grave?MS – Na agenda ambiental, o que há de mais grave é tudo. É ter um governo antiambientalista, majoritariamente negacionista. É ter um ministro que competente e conscientemente opera contra a agenda da preservação e da governança ambiental. É uma ação deliberada de desmonte.
AP – É um programa de governo?
MS – Ele ganhou sem programa de governo. Um presidente que ganha a eleição e manda para o Congresso projetos para liberar desmatamento sem precisar de licença, que quer regularizar mineração em terra indígena, que quer alugar terra indígena.
Um governo que quis tirar a Funai do Ministério da Justiça e só não conseguiu por decisão da mais alta corte; que coloca o Serviço Florestal no Ministério da Agricultura; que corta os orçamentos; que põe a Agência Nacional de Águas no Ministério do Desenvolvimento Regional; que diz que agora não tem mais indústria da multa e fala com sua própria voz, na Arábia Saudita, que ele de certa forma estimulou as queimadas porque discordava da agenda ambiental – o presidente confessou, é gravíssimo.
AP – O último capítulo da crise ambiental é o vazamento de óleo que começou atingindo a costa do Nordeste e já afeta o Sudeste. Qual é a sua análise sobre a forma com que o governo tem agido para mitigar os efeitos desse desastre?
MS – Quando a gente fala que há um desmonte das estruturas de governança ambiental, não é um discurso político, isso se refletiu na incapacidade de atuar nas queimadas na Amazônia: mesmo com a pressão interna e externa, o governo não conseguiu fazê-lo, então mandou as Forças Armadas, mas esse não é o papel delas. E quem apagou o fogo foi a chuva. Levou 50 dias para poder agir, e no caso do derramamento de óleo, levou 41.
Não agia porque não tem estrutura em condições de operar, desarticulou as equipes, sequer nomeou a diretoria de emergência ambiental ou acionou o plano de contingência. O presidente não foi visitar o Nordeste, sequer se solidarizou com o povo nordestino, que enfrenta um enorme prejuízo ambiental, social e até humanitário, para os que vivem da pesca.
É importante investigar para saber como aconteceu, mas isso não isenta o governo de tomar as medidas no tempo certo para resolver o problema – eu não posso ver alguém que levou um tiro na esquina, dizer “não, agora tenho que prender o bandido” e deixar a pessoa morrendo na frente do hospital, porque não tem uma UTI para operar. Tem que fazer as duas coisas.
Essa situação de impotência do governo fez com que a sociedade é quem fosse espontaneamente, pagando o preço da saúde, e os governos estaduais e municipais, por causa do prejuízo que estão sentindo, começassem a agir – só depois é que o governo fez alguma coisa. Se somos um país que explora petróleo em águas profundas e não temos a eficiência mínima para lidar com um acontecimento como esse, isso é uma fragilidade diante de todos esses leilões que vêm sendo feitos.
Outra coisa é o monitoramento e controle das águas de nosso domínio, é uma fragilidade, ainda que levantamentos estejam sendo feitos, mas é de uma demora e de uma falta de transparência – ainda bem que as universidades estão fazendo um acompanhamento conjunto. As tragédias envolvendo comunidades, pescadores, marisqueiros, comerciantes, pessoas que vivem na informalidade e que dependem do turismo, é algo aterrador.
Tem o desmonte, o despreparo, a falta de compromisso e o preconceito com o Nordeste. Por que o presidente não vai lá, não se solidariza? Por que o ministro vai e não conversa com os governadores de oposição? Eu, quando ministra do Meio Ambiente, não tinha esse negócio de governador de oposição, eu era ministra do Meio Ambiente do Brasil.
AP – Há uma discussão sobre o perigo do discurso que prega equivalência entre os governos do PT e de Bolsonaro, como se fossem extremos à esquerda e à direita, com as mesmas características, mas em campos opostos. O que a senhora pensa sobre isso? O discurso de não se associar “nem à cruz da corrupção nem à espada da violência”, que a senhora fez nas eleições, não segue um pouco essa lógica?
MS – Se alguém acha que, entre violência e corrupção, temos que dizer que um é melhor que o outro, não posso fazer nada por quem pensa assim. Só posso dizer que não concordo nem com a espada da violência nem com a cruz da corrupção.
Quando digo isso, não tem nenhuma equivalência – não sei se o endereçamento é a mim. Um governo com uma série de nuances, como eram os do PT, é claro que é diferente do governo Bolsonaro. Nem todas as pessoas do PT são corruptas, há pessoas honestas e genuinamente comprometidas com a justiça social no PT.
Agora, tem um núcleo que, do mesmo jeito que faz a direita, quis se perpetuar no poder usando o dinheiro da corrupção. Ao menos que alguém consiga assumir que foi extremamente incompetente para não ver, ou totalmente conivente com a corrupção que acontecia. Nos dois casos, é grave.
AP – A senhora pensa em candidatura à Presidência em 2022?
MS – Nas últimas eleições, exatamente por não ter ido pelo caminho da polarização tóxica, de não ter ficado nem do lado da cruz da violência nem da espada da corrupção, de não ter feito discurso de ódio – foi uma campanha muito difícil, inclusive ainda colho o ônus da desconstrução da campanha de 2014 –, saí com 1 milhão de votos, 1%. Diante dessa situação, me sinto mais tranquila para fazer meu trabalho sem ter que ficar respondendo essa pergunta o tempo todo.
Quando tive 22 milhões de votos, seria até uma espécie de irresponsabilidade não ter que ficar dialogando com essa possibilidade real, já que apresentamos, em 2010, um programa que eu compreendia ser o melhor para o Brasil – a mesma coisa em 2014 e 2018. Melhor na educação, saúde, meio ambiente, infraestrutura, proteção aos direitos humanos, aos povos indígenas, no respeito à cultura, à infância, em tudo.
Agora não preciso ficar respondendo o tempo todo se vou ser ou não candidata, a única coisa que posso dizer é que as propostas que nortearam esse programa vou continuar defendendo pelos meios de que disponho.
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AP – Qual o modelo de desenvolvimento que a senhora considera não só adequado, mas possível para a Amazônia?MS – A Amazônia é um lugar em que é possível realizar um modelo sustentável de desenvolvimento, capaz de criar prosperidade econômica, justiça social, respeito à diversidade cultural, mantendo a floresta em pé, preservando seus rios, seus povos originários, mantendo uma densidade demográfica compatível à capacidade de suporte da Amazônia, com uma infraestrutura para o desenvolvimento sustentável, agregando valor aos produtos da biodiversidade, criando novos arranjos produtivos a partir de coisas que já dão certo, é só dar escala.
Podemos ter bioindústria, agroindústria, sistemas agroflorestais que já vêm sendo testados, investimentos altíssimos em tecnologia. Aquilo que o professor Carlos Nobre chama de Amazônia 4.0 é uma alternativa, também o programa Amazônia Sustentável, feito durante a minha gestão, envolvendo dezoito ministérios e conversando com pesquisadores, governos locais, empresários, agentes públicos.
Defendo que se faça uma espécie de Plano Marshall para a América Latina se desenvolver com base sustentável, sobretudo para os países que compartilham a Amazônia, e que esses investimentos nos levem à transição para uma economia de baixo carbono. É possível implementar a cultura de baixo carbono na Amazônia, fazer manejo florestal sustentável, valorizar as comunidades extrativistas – ribeirinhos, quebradeiras de coco, seringueiros, pescadores, babaçueiros – e as comunidades indígenas.
A crise é de quem quer implantar o passado no presente. Se fizermos a atualização do debate para o desenvolvimento da Amazônia à luz de tudo que a ciência já aportou, que as boas experiências já realizaram, e que o bom senso e a ética exigem, temos um caminho de prosperidade.
A Amazônia é mais de 60% do nosso território, com 25 milhões de pessoas, respondendo por 8,9% do nosso PIB, mas a maior contribuição que a Amazônia dá é ser uma floresta em pé. É continuar sendo um estoque de carbono, produzindo 20 bilhões de toneladas de água por dia que fazem chover em São Paulo, que está de novo com racionamento – o que pode ser em função dos 20% já destruídos.
O desenvolvimento da Amazônia não é um problema técnico, é um problema político e ético. Respostas técnicas nós já temos, é colocar essa transição em marcha e esperar o tempo de maturação – ninguém espera que a nova economia nasça com a mesma força da economia que tem mais de 400 anos.
AP– O Brasil é um país agroexportador. Se chegasse à Presidência, como a senhora faria essa transição que propõe? Seria possível conciliá-la com os interesses do agronegócio ou seria necessário efetivamente priorizar um modelo sustentável em detrimento do agronegócio?
MS – Eu não iria conciliar, iria integrar economia e ecologia numa mesma equação. Essa ideia de conciliar é o máximo que os desenvolvimentistas conseguem. Não tem economia no século 21 sem ecologia. A Amazônia produz 20 bilhões de toneladas de água por dia. Segundo estudo que apresentaram para o papa, 75% do PIB da América Latina são em função das chuvas da Amazônia. Quem é que defende que alguém acabe com 75% do seu PIB? É isso que está se propondo fazer no médio e longo prazo.
Eu iria integrar, fazer a transição. E já tem resposta técnica. A Embrapa já desenvolveu tecnologia e criou um programa chamado Agricultura de Baixo Carbono, que permite dobrar e até triplicar a nossa agricultura sem precisar derrubar mais uma árvore. Eu jogaria todas as fichas para termos o agronegócio mais sustentável do mundo. Fui para um debate com o setor do agronegócio durante a campanha e disse que eu era a melhor candidata para eles – todo mundo riu na sala. Mas eu seria mesmo, porque os colocaria no século 21. Eu os ajudaria a ser economicamente prósperos, mas também ambientalmente sustentáveis.
Quando fui ministra, o Brasil crescia 3%, 4%, o agronegócio subia e o desmatamento caía. Eu iria entregar as duas coisas. A Amazônia tem mais de 17 milhões de hectares já abertos, abandonados ou semiabandonados. Tem áreas sendo usadas para produzir uma cabeça de gado por hectare, é uma pobreza isso. As pessoas estão querendo ser a potência agrícola que nós somos usando tecnologia dos índios, das coivaras – tenha a santa paciência. Vamos atualizar a tecnologia ao invés de ficar destruindo floresta, queimando árvore para garimpar nutriente, para ficar oito anos com uma terra e depois queimar mais floresta, garimpar nutriente e criar quatro, cinco vacas magras dentro de não sei quantos hectares de terra.
AP – E a senhora acha que há abertura do agronegócio brasileiro para isso, com esses setores tão retrógrados que estão no governo?
MS – Muitas das pessoas deixam de fazer não porque são contraventores contumazes – para esses a lei, certo? E existem aqueles que não fazem porque não é apresentada outra alternativa. E eu te digo: a maioria das pessoas gostaria de ter boas alternativas. É uma transição. Acontece da noite pro dia? Não. Vamos certificar a nossa produção. A certificação vai cumprindo etapas, e chega um momento em que você está inteiramente certificado. Vamos desenvolver novas cadeias de valor e arranjos produtivos, vamos combinar turismo de massa e científico, turismo social e cultural, e vamos fazer dessa Amazônia um lugar bom de se viver. Mas com a quantidade de gente adequada. Não é o que o Bolsonaro está propondo: adensamento de população, grandes projetos de hidrelétricas, grandes carreteiras. Ou seja, ele quer entregar a Amazônia à destruição.
AP – A crise ambiental de 2019 serviu como alerta para esse governo ou corremos o risco de situações parecidas se repetirem?
MS – A floresta, cuja destruição eles estimularam, e as queimadas produziram a chuva que apagou o fogo. E as razões pelas quais tivemos queimadas e desmatamento não estão sendo atacadas. Pelo contrário, estão sendo potencializadas.
Quando o governo diz que pode fazer regularização fundiária por autodeclaração – uma aberração jurídica, ética e ambiental –, pode ter certeza, nesse momento tem um faroeste tomando conta de área para poder tentar regularizar. Se em 2009, com aquela medida provisória, foram regularizados 47 milhões de hectares de áreas que já estavam sendo degradadas, agora com essa sinalização de “ocupa que o Bolsonaro regulariza”, meu Deus.
O cenário de 2020 é incomparavelmente mais preocupante, porque as pessoas estão se movimentando. Não é à toa que a maior quantidade de área derrubada é área pública, e os incêndios foram em cima de derrubadas. Não foi a floresta que saiu num processo de combustão natural, como acontece em algumas situações de cerrado e outras florestas. Foi em cima de derrubada, remoção de cobertura vegetal, ou degradação, que é o corte seletivo de madeira para fins madeireiros.
Ali você tem uma grande quantidade de matéria orgânica e a floresta: ao ficar com cada vez menos umidade e mais incidência do sol, sofre esses incêndios. O que nós temos pela frente, pelo meu entendimento, é um cenário incomparavelmente pior. Até porque a governança foi desmontada, o Ibama e o ICMBio estão enfraquecidos. Todas as formas de atuação estão enfraquecidas. Os governos estaduais que concordam com Bolsonaro são coniventes com ele, e os que querem fazer alguma coisa estão impotentes.
AP – Por que a proposta de regularização autodeclarada apareceu agora?
MS – O Nabhan Garcia, quando propôs isso, queria que aqueles que grilaram terras se transformem em proprietários legais das terras que grilaram. O que está sendo proposto não é só para quem tem posse mansa e pacífica – num processo de regularização, você vai verificar quais são as posses mansas e pacíficas, quais são as sobreposições de propriedade. E, na verificação, você tem que fazer, em alguns casos, toda uma cadeia dominial, porque a sobreposição não é só de quem está reivindicando uma terra pública. Você pode entrar inclusive em uma fazenda legal e outro chegar e dizer que agora é dele.
AP – As igrejas evangélicas têm entrado com força em terras indígenas pelo Brasil. Não se pode generalizá-las, mas gostaria de saber como a senhora vê essa questão.
MS – Como você mesma respondeu, não se pode generalizar. E o mais importante é que a relação desenvolvida – seja por evangélicos, católicos, judeus, espíritas ou ateus – seja de respeito às culturas indígenas. Isso com os que querem algum tipo de cooperação, porque os índios isolados não devem ter contato com ninguém, só um acompanhamento controlado por parte da Funai e das pessoas especializadas, para que possam ficar na escolha que fizeram.
Em relação aos que têm contato com os brancos, entendendo brancos como ocidentais, é preciso que esse contato seja respeitoso. Existem muitas pessoas que têm a fé cristã evangélica, ou católica, que são índios e mantêm as suas tradições culturais. Existem pessoas brancas que acabam se tornando xamãs, e vão para o xamanismo, que tem uma relação muito grande com povos tradicionais e ninguém pode criminalizar essas pessoas por isso. Mas elas continuam sendo ocidentais e brancas, do mesmo modo que algumas pessoas que passam a ser católicas, ou passam a ser evangélicas, podem manter a sua cultura, as suas tradições, o respeito à sua comunidade.
É um processo muito complexo, muito delicado. Agora o que não pode é qualquer tipo de proselitismo, discriminação cultural ou desagregação cultural. Isso é algo que a própria fé cristã, se olhar para o evangelho como de fato foi deixado a nós por Jesus, seria mais interessado em preservar. Jesus não dialogou com as outras nações pedindo que se tornassem judeus.
AP – O cacique Raoni afirmou, em entrevista recente, que, antes de Lula, todos os presidentes o “apoiaram muito para que pudesse ajudar seu povo”, e que com Lula a relação se deteriorou por conta da construção da usina de Belo Monte. Ele disse ainda que “nossa luta contra Bolsonaro é a mesma que fizemos contra Lula e Dilma”. O que a senhora pensa sobre esse posicionamento?
MS – Durante a minha gestão, não permiti que fosse dada a licença de Belo Monte, eu fui a que teve coragem de mandar devolver para estudos. Fui a que tive coragem de não dar a licença para a Tijuco Alto, em São Paulo [projeto de hidrelétrica no Vale do Ribeira]. O que o Raoni está dizendo é o seguinte: em todos os governos, com Belo Monte, fomos nós que perdemos.
E olhando para o universo dele, para o povo dele, para os impactos irreversíveis, quem somos nós para julgar o que ele está relativizando? Ou dizer “não, Raoni, o seu povo vai sofrer todas as consequências de Belo Monte, que deixou rastros de destruição, mas é diferente, veja outros aspectos”. Eu não cobraria isso do ancião Raoni.
AP – Tendo em vista esse primeiro ano de governo Bolsonaro, o que ele tem dito, acenado e falado concretamente, a senhora acha que há o risco de ele enveredar para uma aventura autoritária?
MS – A sociedade brasileira não dará espaço para aventuras autoritárias, e sinto que as Forças Armadas aprenderam a respeitar os governos civis. Se tiver alguma intenção autoritária, ela aparece com espasmos, inclusive nas falas do filho do presidente, mas imagino que ele [presidente] como indivíduo não tenha força para tanto. Não há lugar para reeditar o autoritarismo no Brasil.
Todavia, se não há lugar para reeditá-lo, é porque a nossa vigilância, desde que reconquistamos a democracia, nunca baixou. É ela que vai nos assegurar – o Congresso, as instituições do poder Executivo, Legislativo e Judiciário. Todos temos que ficar atentos. Ainda mais que vivemos uma situação em que existem saudosistas da ditadura militar, os negacionistas não só da mudança climática, mas inclusive das atrocidades que foram cometidas durante a ditadura militar. Estamos aqui para fazer o relato, para não permitir que a memória, ao ser esmaecida, possa levar à repetição da história.
AP – Ao lado de Chico Mendes, a senhora militou no movimento sindical e ajudou a criar a CUT no Acre. Participou também do Partido Revolucionário Comunista e pregava a Teologia da Libertação quando católica. O que mudou entre a Marina “primeira vereadora de esquerda de Rio Branco, em 1988”, como definiam os jornais, e a candidata a presidenta, em 2010, que declarou não ser “nem de direita nem de esquerda” durante a campanha?
MS – Eu terminei minha graduação em 1984 e sou muito grata aos professores que me apresentaram a obra do Edgar Morin [filósofo francês], porque foi ela que me salvou de uma visão dogmática do marxismo e do leninismo, com a qual inicialmente tive contato. Desde que conheci Morin, a obra da Hannah Arendt e principalmente a psicanálise, passei a ficar com muito medo dos salvadores da pátria.
Fiquei com muito medo de projetos totalitários que, ao invés de oferecerem para as pessoas a possibilidade de errar e ter um mundo que seja melhor para seus acertos e erros, começam a oferecer um destino. Fiquei com muito medo dos benfeitores segundo os quais a benfeitoria só funciona com eles.
Quando ganhei como vereadora, já tinha esses pressupostos e foi com eles que fiz o meu mandato. E posso te dizer: a mesma Marina que tinha um compromisso profundo com a justiça social, a defesa dos direitos humanos, a ética na política, a sustentabilidade econômica, social, ambiental, cultural, política, ética e estética é a que concorreu à Presidência da República em 2010, 2014 e 2018.
E foram esses valores, inclusive aprendidos com a Teologia da Libertação, que permanecem até hoje – não é porque hoje sou cristã evangélica que o Sermão da Montanha mudou, ele é o mesmo para os católicos. E a ideia de que a gente deve ir pela porta estreita, de que a gente deve oferecer a outra face e de não fazemos acepção de pessoas não mudou.
Se tem alguém que interpreta de outro jeito, paciência. Eu continuo interpretando do mesmo jeito. E foi isso que me ajudou muito na campanha de 2014. Tinha uma frase que eu repetia sempre, inspirada no apóstolo Paulo: “Eu prefiro sofrer injustiça do que praticá-la”. Consigo conviver muito bem com todas as mentiras e calúnias que foram ditas pela Dilma e pelo João Santana. Eu não conseguiria viver se eu tivesse dito contra ela o que ela disse a meu respeito.
AP – No Brasil do jeito que se encontra hoje, com o governo atual e ainda mais polarizado do que em 2014, a senhora não se considera uma pessoa de esquerda?
MS – Acho que esses rótulos viraram verdadeiros territórios para as pessoas se sentirem protegidas. Quando me perguntam “e aí, você é o quê?”, digo que sou sustentabilista progressista. Existem os sustentabilistas conservadores, que se importam com a natureza e com a economia, e os sustentabilistas progressistas, que se importam com a natureza, com a economia, mas também com a justiça social. E eu sou sustentabilista progressista. É assim que consigo me perceber, entendendo que a sustentabilidade não é uma forma de fazer, é uma visão de mundo, é um ideal de vida.
Por isso que esse debate não alcança os desafios do século 21, o que está colocado é uma nova forma de ser e estar no mundo. Não existe nenhum grupo que, sozinho, possa tirar a humanidade da crise civilizatória que nós estamos vivendo, sendo que um dos pontos dessa crise é o problema das mudanças climáticas – tem que ser um esforço de todo mundo. E a grande contribuição dos socialistas para o meio ambiente é perversa, do mesmo jeito que é a dos capitalistas.
Os desenvolvimentistas também se dividem: existem os conservadores, que se importam muito com a economia, e existem os progressistas, que se importam muito com as questões sociais. Mas a base deles é que são desenvolvimentistas, não tem uma preocupação com a sustentabilidade dentro dessas estruturas de pensamento e categorias. E eu tenho respeito por pessoas de esquerda com pensamento democrático. Pessoas que defendem a ditadura, eu não defendo, nem do proletariado e nem de ninguém. Eu defendo a democracia.
AP – Na sua opinião, o governo Bolsonaro termina?
MS – Ele foi eleito democraticamente pelo povo brasileiro, que deve se responsabilizar pela escolha que fez, já que tinha tantas opções, um espectro tão amplo. No rito constitucional da democracia, temos que respeitar a escolha do povo, desde que se respeite os aspectos legais em todos os níveis.
Esse governo faz uma escolha de tensionar, como se fosse de apenas uma parte, e não do todo. É assim que ele dialoga com os artistas, com os educadores, com os cientistas que mostram dados e avaliações com as quais não concorda – ele já os destitui da condição de cientistas, os rotula de ideológicos. Essa é a pior forma de governar, por isso eu repito: esse governo vai se aproximando de uma linha muito tênue do que é uma democracia ocidental.
AP – Isso inclui um certo risco para ele próprio, não?
MS – Acho que ele aposta nessa forma como uma estratégia de consolidar base. O governo Bolsonaro dialoga com fragmentos, faz um discurso pulverizado para determinados nichos. Nos Estados Unidos, os democratas conseguiram ganhar eleições dialogando com várias frentes, de vários grupos de interesse, para formar um todo, e que depois não funcionou nas eleições contra Trump. O Bolsonaro faz isso para o lado da direita, dialogando com a visão atrasada em cultura e educação, a visão de terra arrasada em meio ambiente. Assim ele quer consolidar uma base, um lastro. É um governo que aposta no conflito.
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