Eis aqui uma boa notícia da qual provavelmente você não ouviu falar. O pirarucu (Arapaima gigas), peixe
amazônico que muitas vezes alcança os 2 m de comprimento e algumas
centenas de quilos, chegou a ter sua pesca totalmente proibida no país
por causa do excesso de capturas. Nos últimos anos, porém, a população
do gigante conseguiu se recuperar de maneira excepcional, crescendo 425%
em 11 anos nos lagos em que passou a ser protegida no Brasil.
Como esse milagre aconteceu? Por uma combinação de conhecimento
científico de ponta e envolvimento direto das comunidades tradicionais
que incluem o bichão na sua dieta.
A interação de longa data de pescadores indígenas
e ribeirinhos com a espécie ajudou no desenvolvimento de técnicas de
contagem de indivíduos. Mais de mil comunidades da região se organizaram
para proteger áreas importantes para a reprodução do peixe da pesca
comercial de larga escala. E, por fim, foram estabelecidas cotas de
captura sustentáveis, que podiam chegar a 30% dos indivíduos adultos (o
que, convenhamos, ainda dá uma quantidade portentosa de filé de peixe).
Resultado: ao menos por enquanto, não há mais razão para temer o sumiço
do saboroso gigante.
A experiência bem-sucedida é um dos "hope spots" (literalmente "pontos de esperança") socioecológicos destacados num estudo que acaba de sair na revista especializada Nature Ecology & Evolution.
O trabalho é assinado por um timaço de biólogos, arqueólogos,
antropólogos e líderes indígenas (das etnias kuikuro e waujá, ambas do
Alto Xingu). Sintetizando uma massa gigantesca de informações, a
pesquisa mostra duas coisas um bocado importantes: 1) existe uma ligação
muito estreita entre biodiversidade e diversidade cultural no Brasil;
2) é preciso usar esse elo para olhar para o futuro e enfrentar a crise
ambiental que atravessamos de uma maneira que beneficie, ao mesmo tempo,
as pessoas e a biodiversidade.
Coordenado por Carolina Levis, ligada à UFSC e à Universidade de
Princeton (EUA), e assinado também por Maíra Padgurschi, da Unicamp e do
Laboratório Nacional de Biorrenováveis, entre outros colegas, o
trabalho começa destacando um fato crucial: a riqueza biológica dos
ecossistemas brasileiros tem uma raiz "cultural" e humana.
De fato, não se sustenta a ideia de que por aqui existiam vastíssimas
extensões de "natureza intocada" antes da chegada dos europeus. A
análise cuidadosa da distribuição de espécies vegetais e animais na
região amazônica, na mata atlântica e em outros biomas mostra o impacto
de longo prazo da atividade humana.
Isso vale no caso da domesticação e do cultivo de dezenas de espécies
de plantas, mas também para o próprio chão (com a criação do solo
artificialmente mais fértil conhecido como terra preta) e para espécies
"selvagens", mas importantes para o ser humano, que se tornaram bem mais
comuns do que o esperado. Trocando em miúdos, faz vários milênios que
as florestas brasileiras estão mais para quintais ou jardins.
As populações tradicionais, por meio do que os cientistas chamam de
níveis intermediários de perturbação (derrubadas, roças mistas, uso
controlado do fogo etc.), conseguiram "humanizar" esses ambientes
mantendo taxas relativamente altas de biodiversidade. É o caso dos
incêndios controlados de porções do cerrado feitos nos territórios dos
indígenas xavante, por exemplo –nesses locais, paradoxalmente, a
diversidade da vegetação nativa é mais bem preservada, já que o manejo
indígena leva em conta a adaptação natural do cerrado à presença do
fogo.
Os autores do estudo argumentam que um casamento entre essas
interações tradicionais entre pessoas e biodiversidade, de um lado, e o
conhecimento científico de ponta, do outro, é essencial se quisermos um
modelo de desenvolvimento que supere a velha mania brasileira de botar
árvore abaixo indiscriminadamente e jogar boi nos escombros. (Essa
última frase, claro, é minha: nada tão pouco polido iria parar num
artigo científico.) O exemplo do pirarucu, e vários outros, mostram que
não se trata de simples utopia.