Com método e objetivo, Governo Bolsonaro reforça política de Estado de destruição do consensos históricos do país para desenhar identidade que fragiliza ainda mais a democracia
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Não
há mais espaço para rir. Nem tempo a perder repassando absurdos de um
governo de demagogos como se Brasília tivesse sido tomada por incultos.
Quem está hoje no poder no Brasil tem método e objetivo. E um projeto
claro: destruir o que existe para, em seu lugar, reconstruir um modelo
desejado por essas pessoas no comando para a sociedade. Nesta semana, o
novo secretário da Cultura, Roberto Alvim, derrubou um dos ativos mais
poderosos do Brasil no exterior: sua diversidade artística. Ao discursar
na sede da Unesco,
em Paris, ele deixou governos estrangeiros pasmos ao anunciar que teria
como função, entre outras coisas, o resgate dos clássicos. E, assim
como outros líderes já fizeram no passado, atacou a cultura e a arte que não sejam de sua ideologia.
Mas seu discurso também tinha outra lógica: a da destruição dos padrões estéticos do Brasil. Para ele, até Bolsonaro
chegar, tais ramos da atividade humana no país eram uma “propagação de
uma agenda progressista avessa às bases de nossa civilização e às
aspirações da maioria do nosso povo”. A arte, segundo o secretário,
fazia parte durante 20 anos de um “projeto absolutista” e “instrumentos
centrais de doutrinação” por governos de centro e de esquerda no Brasil.
Alvim
insiste que tudo isso acabou. Com a eleição de Bolsonaro, “os valores
ancestrais de elegância, beleza, transcendência e complexidade
encontraram uma nova atmosfera”. Em seu texto, porém, uma frase revela
que a preocupação não é estética. “Estamos comprometidos com a
redefinição da identidade e da sensibilidade nacionais, em consonância
com os valores e os mitos fundantes de nossa nação”, disse.
A
redefinição da identidade, portanto, passa por apagar traços de uma
certa cultura indesejada, ignorar uma periferia historicamente
abandonada, silenciar a rebeldia. Em seu lugar, Alvim foi explícito:
“vamos promover uma cultura alinhada às grandes realizações de nossa
civilização judaico-cristã”. Essa sim, a base da “edificação de nossa
civilização brasileira”.
Loucura para alguns, delírio
para outros. Mas, entre membros do Governo, não há nada de irracional em
sua fala. O que existe claramente é uma estratégia de destruição e da
substituição de uma realidade por uma ideologia com fortes traços de
intolerância. O termo “Judaico-cristão” para um país miscigenado não
surge por um deslize num discurso da sede da Unesco. No Itamaraty, o
chefe da diplomacia também passou a usá-lo. E, não por acaso, entrou no
novo dicionário alucinógeno de Brasília inspirado pelo projeto de poder
de Steve Bannon. O termo faz parte de um dos pilares da estratégia do ex-conselheiro de Donald Trump.
Mas ele não vem sozinho e nem acontece no vácuo. Para que essa cultura
seja “resgatada”, é preciso que um governo limite o fluxo de pessoas que
entram no país.
E é nesse contexto que se introduz a
obstinação pelo nacionalismo, pela soberania e pelas fronteiras. “Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos” é simplesmente uma tradução dessa
estratégia que, para existir, precisa atacar diariamente o pluralismo,
igualitarismo e secularismo. Não é por acaso que, ao longo de meses, o
Itamaraty também vem promovendo uma destruição dos parâmetros de direitos humanos
e do pluralismo na família ou no ser humano. Existe, para a diplomacia
nacional, apenas homens e mulheres. Família é no singular e não há
espaço para a criação de novos direitos. Para isso, o governo não mede
esforços para rever o posicionamento do Brasil no mundo e até questionar
o direito internacional.
Uma vez mais, o projeto é
claro: destruir o que existia antes, romper consensos históricos em
textos internacionais, abrir brechas, criar divisões para que conflitos
de percepções se instalem e, assim, reconstruir uma “nova sociedade”. Em
Brasília, sinais dessa destruição também podem ser vistos quando o
Palácio do Planalto opta por ignorar de forma consciente o Dia da Consciência Negra. Ou quando silencia diante de um ato de vandalismo deliberado por parte de um deputado.
Também
vimos a erupção de comentários monarquistas por membros do Governo, no
dia da República. Uma vez mais, nada ao acaso. A história, ao ser
revista, questionada, profanada e confundida, é a receita para a
transformação de um futuro manipulado.
Desmontar o
sistema também passa por romper até mesmo com os veículos que permitiram
a chegada ao poder de Bolsonaro, como o partido de aluguel conhecido
como PSL. Em seu lugar, surge uma formação que sequer se dá ao trabalho de incluir as palavras “democracia” e “república” em seu manifesto.
Sua milícia digital age exatamente da mesma forma, recriando de maneira virtual a “Polícia do Pensamento” (thinkpol) de George Orwell.
Não existem para propor políticas. Mas para, de forma consciente, criar
confusão, desinformação e polêmicas. A meta? Romper o tecido social,
enfraquecer uma democracia já fragilizada, romper laços familiares,
amizades e alianças.
E, em seu lugar, construir um novo
modelo distante das bases fundamentais do respeito ao diverso. Um
sistema em que ganha vida o “crime de pensamento” do mesmo Orwell. Em
março, em sua primeira visita aos EUA, Bolsonaro avisou: seu Governo
seria o da destruição. Um ano depois, o plano está sendo meticulosamente
implementado.
Também durante este ano, a resistência se mostrou viva e o projeto de civilização da extrema direita
sabe que conta com desafios. Mas, parafraseando Antonio Gramsci,
enquanto o velho mundo agoniza e um novo mundo tarda a ver a luz do dia,
“irrompem os monstros”. Conscientes, determinados, financiados e
altamente organizados.
Jamil Chade
é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações
internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra
e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
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