Brasil
Em entrevista à DW Brasil, pesquisador da USP diz que a
pobreza extrema no Brasil, que atingiu seu nível mais alto em seis
anos, está mais ligada ao aumento da concentração de renda do que ao
fraco desempenho econômico.
O crescimento da pobreza extrema no Brasil, que atingiu no ano passado seu nível mais alto desde 2012,
com cerca de 13,5 milhões de pessoas com renda mensal de até 145 reais,
decorre mais do aumento da concentração de renda do que do fraco
desempenho econômico no período.
A conclusão é de um estudo em
elaboração por Rogério Barbosa, pesquisador do Centro de Estudos da
Metrópole da USP, em parceria com Pedro de Souza e Sergei Soares, do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a partir de dados
divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
no início do mês.
A pesquisa separou e calculou o efeito da
evolução da renda total e o efeito da desigualdade sobre a pobreza
extrema, no período de 2015 a 2018. A evolução da renda sozinha, se
tivesse beneficiado toda a população, teria reduzido o percentual dos
brasileiros em pobreza extrema em 0,25 ponto percentual. Porém, o
aumento da desigualdade de renda, isolado, foi responsável por aumentar a
taxa de pobreza extrema na população em 1,98 ponto percentual.
Somados
os dois efeitos, o percentual de brasileiros em extrema pobreza
aumentou 1,72 ponto percentual de 2015 a 2018, ou cerca de 3,6 milhões
de pessoas a mais vivendo na miséria. "Apesar de o bolo ter crescido, as
pessoas que extraíam dali uma menor quantidade extraem agora ainda
menos", diz Barbosa à DW Brasil.
O pesquisador explica que a
elevação da concentração de renda, nesse caso, não diz respeito ao 1%
mais rico contra o resto da população, mas entre a população com acesso
ao mercado formal de trabalho, que conseguiu se proteger dos efeitos da
crise econômica, em contraste com os que estavam fora do mercado ou que
trabalham por conta própria.
Para ele, o resultado mostra a
fragilidade da tese de que uma nova classe média teria surgido durante a
gestão dos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Segundo
Barbosa, as pessoas no meio da distribuição de renda, que em 2018
recebiam cerca de 800 reais per capita por mês, mantiveram um vínculo
frágil com o mercado de trabalho formal e não conseguiram se resguardar
dos efeitos da recessão. "Quem sobreviveu à crise foi a velha classe
média", diz.
Barbosa também chama atenção para o fato de que
houve redução do número de beneficiários do Bolsa Família, enquanto
aumentava o número de pessoas em pobreza extrema no país. "Seria
esperado que as políticas de proteção social funcionassem como um
alcochoamento […], mas isso não foi verificado."
DW Brasil: Por que a pobreza estava caindo até 2014 e depois voltou a subir?
Rogério Barbosa:
O mercado de trabalho formal estava crescendo, com carteira de trabalho
e benefícios como férias remuneradas e décimo terceiro salário,
incluindo parte das pessoas que antes se vinculavam de forma frágil ao
mercado e podiam ser demitidas sem qualquer justificativa ou que
prestavam serviços por conta própria.
No terceiro trimestre de
2014, a gente começa a sentir as consequências da crise econômica, e
isso afeta o mercado de trabalho. Empresas demitem pessoas, que passam a
não ter dinheiro para comprar, gerando um ciclo vicioso. No meio desse
processo, seria esperado que as políticas de proteção social
funcionassem como um alcochoamento dos que saíram do mercado de
trabalho, mas isso não foi verificado. Para aqueles que têm pouco tempo
na formalidade, ou que estão na informalidade, não há nenhum recurso se
não houver programas assistenciais.
Em 2014, cerca de 35% das
pessoas estavam no mercado de trabalho informal, e foram essas as que
mais se prejudicaram na crise. O avanço da formalidade ainda era
recente, ainda tinha muita gente desprotegida. Como era frágil, esse
processo foi desfeito de forma relativamente rápida.
Como isso afetou a classe média?
Existe
um mito de que estava surgindo uma nova classe média. Mas a ideia de
classe média não é simplesmente quem está no meio da distribuição de
renda. Quem estava no meio da distribuição em 2018 recebia mais ou menos
800 reais per capita, o que não é nada do ponto de vista do sonho da
classe média, não permite que você tenha carro, casa própria.
[Até
2014] existiu uma melhora de renda e de acesso a bens duráveis para
essas pessoas, mas como o vínculo era muito instável, nem todos
ascenderam ao mercado formal, e a maioria não conseguiu de fato fazer
grande gastos ou ter algum seguro, pessoal ou estatal, contra as crises.
Isso bota em xeque a ideia de uma nova classe média. Quem sobreviveu à
crise foi a velha classe média.
No seu estudo, vocês
concluíram que a evolução da renda apropriada pelas famílias de 2015 a
2018 isolada teria reduzido a pobreza, mas o aumento da desigualdade
teve um efeito mais relevante no sentido contrário. Por que isso
ocorreu?
A ideia do bolo é uma metáfora bem conhecida no
Brasil. Quando há crescimento, o bolo cresce. Se todas as fatias
continuam no mesmo lugar, elas também crescem proporcionalmente e tudo
mundo se apropria do crescimento. O problema é que as fatias estreitas
se tornaram ainda mais estreitas. Apesar de o bolo ter crescido, as
pessoas que extraíam dali uma menor quantidade extraem agora ainda
menos. Foi isso que aconteceu.
O que cresceu foi a renda dos mais
ricos, e esses não são exatamente os milionários. Os mais ricos são
pessoas que puderam se proteger contra a crise. Estamos falando de
famílias cuja renda domiciliar per capita é de 2.700 reais. Se você tem
duas pessoas, é uma renda de 5.400 reais, não é ninguém que possa
financiar uma casa em bairro de classe média em São Paulo.
O que
essas pessoas têm que as demais não tiveram? Em primeiro lugar, vínculo
formal, que garante acessar determinados benefícios, não poder ser
demitidas facilmente e não ter o salário reduzido. Não existem
mecanismos de proteção similares ou alternativos à metade inferior da
distribuição, que é muito mais frágil e sofreu perdas. E aqui não se
trata de culpar o 1% mais rico, o comportamento do topo da distribuição
durante a crise pode ter piorado as coisas ainda mais, mas há pontos
cegos que não estamos vendo.
Apesar de a extrema pobreza
ter crescido, o número de beneficiários do Bolsa Família caiu de 2015 a
2018, de 39,3 milhões para 38,6 milhões. Por que isso ocorreu?
Estou
pesquisando esse ponto agora. Há medidas políticas e administrativas
que podem modificar o comportamento do Bolsa Família. Não posso dizer
ainda o que aconteceu, mas isso depende de uma sequência de elos. Da
existência de centro de referência de assistência social nas
localidades, com assistentes sociais que fazem visitas presenciais a
domicílios, fazem um diagnóstico e eventualmente concedem benefícios.
Isso
envolve ação do estado tanto no âmbito federal, para induzir os centros
de referência locais, como no âmbito local, para coordenar e executar
essas políticas. Mesmo que inexista um problema de concessão de verbas –
suponha que não mudou o orçamento do Bolsa Família – é certo que algum
elo falhou ao longo dessa cadeia.
O ministério pode ou não mudar
as regras de acesso e induzir a ação local, e existe nas localidades a
necessidade de apoiar ações de busca ativa. São decisões de repercussão
politica, e era responsabilidade do Estado se preocupar em garantir
prioridade para os mais desfavorecidos.
A Câmara dos
Deputados discute aprovar uma "agenda social", elaborada pela deputada
Tábata Amaral (PDT-SP) com o apoio do presidente da Casa, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), que aumenta o orçamento do Bolsa Família e cria um benefício
adicional para crianças de até seis anos de idade. Como o senhor avalia
essa proposta?
Não posso dar uma opinião qualificada
porque não li a proposta, mas a princípio a ideia do benefício para as
crianças é interessante. Um dos problemas mais crônicos é a pobreza na
infância. Se fizermos qualquer recorte etário e calcularmos o percentual
de indivíduos em condições de pobreza, o ápice são sempre as crianças.
Isso é decorrência da fecundidade, que ainda é maior entre os pobres – a
classe mais alta já está abaixo da taxa de reposição de 2,05 filhos por
casal, e os mais pobres ainda um pouco acima.
A probabilidade de
nascer numa família pobre é maior, e as crianças não podem fazer nada
sobre isso. Se elas não completarem a escolarização, a probabilidade de
ter empregos piores e reproduzir a pobreza é ainda maior. Se você faz um
grande investimento na infância, você consegue precaver e evitar uma
série de problemas na vida adulta, tem um retorno muito grande.
O que o Brasil precisa fazer para acabar com a pobreza extrema?
Há
uma situação emergencial, e somente um programa de transferência de
renda pode resolver. Uma melhora no Bolsa Família, tanto na cobertura
como nos valores e critérios de condicionalidades. Isso é anterior a
qualquer outra medida, afeta a quantidade de calorias que você come, mas
não garante de fato a inclusão, que é participar dos âmbitos que a
sociedade valoriza, seja no mercado de trabalho ou os espaços políticos.
A
inserção produtiva é outros aspecto importante, porque não existem
simplesmente vagas que vão abrir independentemente de induções políticas
ou do mercado. Nos anos 1960 e 1970, o que se chamou de milagre
econômico foi basicamente uma continuação do processo de substituição de
importações em que o parque industrial cresceu muito com máquinas, e
não tanto com trabalho. O boom das commodities foi também basicamente
fundado em mecanização da agricultura.
Se você não cria
incentivos para contratação de mão de obra em setores variados, os que
dão lucro não são aqueles necessariamente que mais contratam. A inserção
produtiva para além do comércio e dos serviços imediatos pessoais
depende de uma política que envolva qualificação específica para o
trabalho e construção de parcerias entre mercado e Estado.
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