A combinação de medidas econômicas desastrosas empurra o País para uma crise cambial e fragiliza proteção contra choques externos
Naquilo
que depender do ministro Paulo Guedes, a vulnerabilidade externa,
pesadelo da economia nos anos 1980 e 1990, talvez volte a abalar o País
antes do que se imagina, alertam vários economistas. Não satisfeito em
torrar empresas e outros bens e recursos nacionais para pagar juros da
dívida pública, o Ministério da Economia acelera, com a mesma
finalidade, a venda de reservas cambiais. Além disso, prepara a abertura
de contas bancárias em dólar no Brasil e pretende promover um
rebaixamento unilateral de tarifas de importação. Combinadas, essas
iniciativas têm força suficiente para encaminhar a médio ou longo prazo
uma crise cambial, principalmente em um contexto de crise externa,
advertem muitos analistas.
A queima de reservas por Guedes, que
criticou o seu “excesso” durante a campanha eleitoral, acelerou. “O
Banco Central vendeu mais de 25 bilhões de dólares em outubro e
novembro. A estratégia vai em linha com a redução do papel do Estado e
de seus instrumentos de atuação na economia. A continuidade dessa
política pode fragilizar as nossas proteções contra choques externos”,
alerta o economista Pedro Rossi, da Unicamp, especialista na área
cambial. Em agosto, quando o governo anunciou a primeira venda, as
reservas somavam 388 bilhões de dólares. A aceleração da queima de
divisas para pagar juros, diz Rossi, “representa uma sinalização
perigosa, dependendo de até onde vai essa política. A história ensina
que os países que fazem uma ampla abertura financeira devem ter
capacidade de enfrentar ataques especulativos e fuga de capitais. As
crises cambiais da globalização mostram isso, como no caso do México em
1994, da Ásia em 1997, da Rússia em 1998, do Brasil em 1999 e da
Argentina em 2001”.
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Há neste governo “total falta de
noção sobre como funcionam a economia brasileira e as economias
emergentes em geral. O Brasil tem um histórico de crises ligadas à
questão externa e, em todas elas, exceto na de 2015, a ausência de
reservas tornava o País mais vulnerável”, chama atenção a economista
Esther Dweck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Do
ponto de vista de uma economia que tem fluxo de capital, prossegue, “o
volume de reservas acaba sendo um colchão importante para fazer frente
quando há uma reversão, com saída de capital”, sublinha a professora.
Contas bancárias em dólar, modelo que aprofundou a crise argentina
Ao que tudo indica, o Ministério da
Economia não reconhece “uma diferença importante e qualitativa entre as
moedas centrais, que exercem as funções clássicas da moeda em âmbito
internacional, a exemplo do dólar, e as moedas periféricas, que não são
moedas em âmbito internacional, ou seja, não exercem as funções da moeda
nesse âmbito, como o real”, sublinha Bruno De Conti, professor da
Unicamp.
A vulnerabilidade externa da economia
brasileira diminuiu comparativamente à situação do início do século em
razão da redução da dívida externa e, assim, do descasamento de moeda,
destaca a economista Daniela Magalhães Prates, professora do Instituto
de Economia da Unicamp. “A maior redução ocorreu na dívida externa
pública, com a recompra dos títulos Brady no primeiro governo Lula. Tal
redução, ao lado do acúmulo de reservas internacionais, tornou o setor
público brasileiro credor em moeda estrangeira, o que possibilitou a
adoção de políticas contracíclicas em resposta ao efeito-contágio da
crise financeira global de 2008, pois a depreciação do real teve impacto
positivo sobre a situação fiscal. Mas a economia brasileira tem déficit
em conta corrente e, desse modo, continua dependente da absorção de
recursos externos”, chama atenção a professora da Unicamp.
Além disso, acrescenta, “a redução da
dívida externa foi acompanhada pelo aumento dos investimentos de
portfólio no País (em ações e títulos públicos), o que tornou nosso
mercado financeiro e de câmbio vulnerável às decisões de alocação de
portfólio dos investidores globais, guiados pela busca de ganhos
especulativos. Ou seja, houve uma metamorfose na vulnerabilidade externa
da economia brasileira, mas ela não desapareceu. Por isso, precisamos
manter um estoque elevado de reservas internacionais. Um fator positivo é
que agora, com a redução da taxa de juros doméstica, o custo de
manutenção das reservas é menor”.
Pouco abordada no Brasil, a
metamorfose na vulnerabilidade externa é, entretanto, um tema importante
no debate internacional. “Após uma série de crises com graves
consequências econômicas e sociais nos anos 1990 e início dos anos 2000,
as economias emergentes e em desenvolvimento tornaram-se ainda mais
intimamente integradas ao sistema financeiro internacional inerentemente
instável. Não apenas tiveram seus vínculos tradicionais aprofundados e
os balanços externos expandidos rapidamente como também a presença
estrangeira em seus mercados domésticos de crédito, títulos, ações e
propriedades atingiu níveis sem precedentes. Novos canais surgiram,
assim, para a transmissão de choques financeiros e quase todos os países
em desenvolvimento estão agora vulneráveis, independentemente de seu
balanço de pagamentos, dívida externa, ativos externos líquidos e
posições de reservas internacionais, embora estes desempenhem um papel
considerável na maneira como tais choques poderiam afetá-los. A
estabilidade dos mercados bancários e de ativos domésticos é suscetível a
abalos mesmo em países com fortes posições externas”, alerta Yilmaz
Akyüz, economista-chefe da organização intergovernamental South Centre e
ex-diretor da Conferência das Nações Unidas para Comércio e
Desenvolvimento.
O projeto de lei para autorização da
abertura de conta bancária em dólar no País, encaminhado pelo Banco
Central ao Congresso, “é risco de dolarização da economia, é uma
‘argentinização’ do Brasil”, dispara Rossi. A proposição visa instituir
as bases para uma liberalização plena do mercado de câmbio. “Imaginem
se, em um momento de incerteza, todos nós pudéssemos ligar para o
gerente do banco e transferir nossos recursos de uma conta em real para
uma conta em dólar. Cada um de nós se tornaria um potencial especulador
contra o real. A volatilidade cambial iria aumentar muito e o dólar se
tornaria cada vez mais a referência, como aconteceu na Argentina e no
Equador.”
A taxa de câmbio brasileira é uma das mais voláteis do mundo. Tende a piorar
O risco da proposta “é extremamente
elevado porque o governo e sua área econômica não têm nenhuma
preocupação com a questão externa, acha que o câmbio flexível resolve
tudo, então na cabeça deles o País não precisa ter nenhum tipo de
proteção se houver um regime de câmbio flexível. Só que a liberalização
cambial para permitir que os correntistas possam ter contas bancárias em
dólar no Brasil é o princípio da dolarização”, concorda Dweck.
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Esse projeto “intensificará
nossa vulnerabilidade externa, pois seu objetivo é completar o processo
de abertura financeira da economia brasileira”, estima Daniela Prates. O
risco a curto prazo, diz, é um aumento da volatilidade cambial com
vários perigos. “A taxa de câmbio brasileira é uma das mais voláteis do
mundo. Se os objetivos do projeto de aumento da internacionalização do
real e da conversibilidade interna (autorização de transações em moeda
estrangeira no País) se concretizarem, as compras/vendas da moeda
brasileira para obtenção de ganhos especulativos aumentarão, ampliando a
volatilidade, que tem efeitos adversos sobre as decisões de produção,
investimento, exportação e importação. O risco a médio e longo prazo é a
dolarização da economia brasileira, que resultará na redução da nossa
soberania monetária, que conseguimos manter mesmo no período de alta
inflação.”
A intenção do governo de rebaixar
unilateralmente as tarifas de importação só vai piorar a situação,
explica Dweck: “Em um muito provável ambiente de concorrência externa
gigantesca, isso significa que o País poderá sofrer uma inundação de
importações sem nenhuma garantia de abertura de mercado para as nossas
exportações. Depois haverá um problema mais grave na balança comercial,
com perda de dólares, porque ocorrerá um aumento de importações sem
aumento de exportações, com perda de reservas que nos deixará numa
situação muito grave externamente. Mas, na visão do governo, não tem
nenhum problema liberar, porque o câmbio ajusta. Só que o câmbio ajustar
significa uma fuga de capitais muito forte e tende a ocorrer uma
desvalorização cambial, com todos os impactos conhecidos sobre a
inflação, especialmente sobre a renda. Então é muito grave esta
proposta”, sublinha a economista.
A maior parte dos brasileiros até
agora não se deu conta da ameaça representada pela política
fundamentalista de livre-mercado de Guedes. “Não é por meio da
flexibilização do mercado cambial que o real se tornará uma moeda mais
forte, mais confiável aos olhos do investidor internacional. Ao
contrário, o tiro sairá pela culatra, pois com a flexibilização o real
se tornará ainda mais volátil e menos confiável fora e, no limite, para
os brasileiros também, pois passariam a preferir dólares. Talvez seja
isso mesmo que o governo queira: acabar com a moeda nacional,
forçando-nos a usar dólar”, dispara De Conti.
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