
Encurralado. O pequeno agricultor perde renda e vira presa do grande. Foto Istockphoto
O País caminha agora, sob o comando do Palácio do Planalto e da bancada ruralista, para se transformar em uma imensa fazenda de exportação
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A ampliação de 4 para 15 módulos
fiscais da extensão dos imóveis passíveis de legalização por simples
autodeclaração dos requerentes significa que esse tipo de regularização,
antes limitada a pequenas propriedades de até 440 hectares, agora é
possível para áreas de até 1,5 mil hectares. O maior alcance das medidas
se dará no território da Amazônia Legal, onde, ao legitimar terras
ocupadas, tendem a prover segurança jurídica em relação à posse.A Medida Provisória da regularização fundiária tende a intensificar o conflito agrário no PaísE o que vai acontecer? “O proprietário pode dizer: esta terra é minha, e, como não há necessidade de comprovação de posse, ele pode se sobrepor a outras demandas no mesmo local, de áreas para demarcação indígena, de quilombolas, ou ainda de assentamentos. Ele, inclusive, pode declarar que é dele uma área com um acampamento de sem-terra. Imagine a situação explosiva no campo em relação à sobreposição, o conflito de interesses em uma mesma propriedade. Isso, somado à política de flexibilização do uso de armas no campo, nos faz temer que possa acontecer até um aumento de assassinatos no campo. É muito grave”, denuncia Kelli Mafort, da coordenação nacional do Movimento Sem Terra e doutora em Ciências Sociais pela Unesp. O MST reúne 450 mil das mais de 1 milhão de famílias assentadas no País e tem controle territorial de um total de 8 milhões de hectares de terras públicas.
A MP aumenta de maneira indevida e desmesurada o poder do latifúndio e isso asfixia as pequenas propriedades da agricultura familiar. “Eles utilizam uma prerrogativa do pequeno produtor e estendem, vão ampliando”, aponta Aristides Veras, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. “A ampliação do tamanho da propriedade passível de regularização só por autodeclaração é um problema. Fazer sem vistoria prévia é risco, inclusive, de deixar passar fazendas com situação análoga ao trabalho escravo, prática não encontrada nas pequenas propriedades. O Estado não pode abrir mão da vistoria, pois ninguém vai autodeclarar-se que escraviza alguém. Para piorar, suprimiram da lei o item que veta a regularização quando há a mencionada exploração de mão de obra em condição análoga ao trabalho escravo. A Contag apresentou ao Congresso emendas a essa Medida Provisória para corrigir esses e outros pontos”, afirma Veras.

Garcia, da UDR, não tem do que reclamar. Foto: Tânia Rêgo/ABR
“Menos de 1% dos proprietários têm 50% das terras cultiváveis. Além disso, 0,05% têm 15% do total, enquanto 50% reúnem apenas 2%. Dez anos atrás, trabalhavam nas pequenas propriedades da agricultura familiar 3 em cada 4 brasileiros empregados no campo. Hoje são 2 em cada 3. Os pequenos agricultores diminuíram em 20% nos últimos anos as culturas temporárias que produzem alimentos, enquanto o número de latifúndios que produzem grãos e outros itens para exportação aumentaram em 45%”, descreve Moreira.
A porteira aberta ao latifúndio foi tratada, entretanto, como um avanço civilizatório pelo presidente e auxiliares. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, garantiu que as medidas representam o acerto de uma dívida de cem anos do Estado. O ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, comparou o pacote a “um combo ambiental, fundiário e da libertação dos pequenos posseiros”.

Luta
desigual. O MST corre o risco de ser excluído de novos assentamentos,
enquanto o agronegócio terá maiores chances de acumular terras no
Brasil. Foto: Júlia Dolce
Kelli Mafort acrescenta: “As medidas são um plano de entrega de terras públicas para proprietários muito ricos. Está organizado para seguir a regra daquilo que o secretário especial de assuntos fundiários do Ministério da Economia, Luiz Antonio Nabhan Garcia, por ser mais tosco, disse em público, que a regularização será por autodeclaração. Depois, a ministra Tereza Cristina e o próprio Bolsonaro douraram a pílula, afirmando que não se trata disso”. A adjetivação de Nabhan Garcia não parece descabida, a julgar pelo noticiário abundante a respeito de seu engajamento na formação de milícias armadas para intimidar trabalhadores rurais, projeto iniciado quando ele assumiu a presidência da União Democrática Ruralista, criada em 1985 para combater o MST.
Menos de 1% dos proprietários controlam 50% das terras agricultáveis. A concentração vai aumentar“Essa MP demonstra que o governo não está preocupado em desapropriar nem 1 centímetro quadrado para fazer reforma agrária. Além disso, tentará capitalizar a possibilidade de obter titulação, um grande perigo para a reforma agrária, porque, sem as políticas de desapropriação e os programas de apoio aos assentamentos, essas terras podem voltar para o latifúndio. Com o abandono do programa de reforma agrária e a possibilidade de os posseiros receberem o título de propriedade, serão assediados pelo latifúndio. Esse é o significado, os territórios dos assentamentos poderão voltar ao mercado”, alerta o deputado petista Paulo Teixeira.
Segundo o deputado Ivan Valente, do PSOL, “essa é a MP da grilagem. Ao chegar ao poder, Bolsonaro e Ricardo Salles deram carta branca para o desmatamento de nossas florestas e para a escalada de grileiros sobre terras públicas. Após o avanço de sua horda de bárbaros, o presidente agora tenta legitimar a propriedade da terra ocupada a partir da derrubada de nossas florestas e do assassinato de lideranças indígenas. Com essa Medida Provisória, Bolsonaro legitima o desmatamento e a violência, impulsionando ainda mais a catástrofe ambiental empreendida por seu governo.”

Perspectiva.
Onde se instala a grilagem, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina,
enxerga um avanço civilizatório. Foto: Marcelo Camargo/ABR
Gerson Teixeira concorda: “A extensão da data de corte das ocupações habilitadas ao programa de regularização, anterior à posição de 22 de julho de 2008 para 5 de maio de 2014, representa um estímulo objetivo à continuidade da grilagem das terras da União. Bastará uma ‘forcinha’ por parte da bancada ruralista, o que nem é necessário no atual governo, para que em pouco tempo outro ato passe a reconhecer a ‘legitimidade’ das ocupações ainda mais recentes”.
“As medidas são um plano de entrega de terras públicas para proprietários muito ricos”, diz Kelli Mafort, do MSTA mudança que ocorre na reforma agrária é dramática, prossegue Teixeira. Primeiro, conta o especialista, o governo manda emancipar, sair da tutela do Estado, os assentamentos que completaram 15 anos em 2017. Com isso, milhões de hectares vão para o mercado, pois a maior parte jamais recebeu um crédito de instalação, não tem infraestrutura, os agricultores que lá estão não têm a menor condição de mantê-los. O objetivo seria atender a uma demanda dos ruralistas, de privatizar os domínios. Não só. Existem dois instrumentos na reforma agrária para ceder a terra, um deles é o título definitivo, o outro é a concessão do direito real de uso. Neste caso, ele usufrui da área pelo resto da vida, passa aos descendentes, tem acesso ao crédito, mas permanece como bem público e ele não pode vender. Essa alternativa o governo eliminou, transformou tudo em título definitivo. Com título definitivo é possível comercializar.
“É a contrarreforma agrária”, destaca o assessor parlamentar. “Quase todos os assentamentos têm 15 anos e mais de 90% deles irão agora para o mercado. Atende a uma grande demanda da bancada ruralista, desde muito tempo atrás, pelas áreas públicas da reforma agrária, por redução das terras indígenas e pelo fim das unidades de conservação. Eles querem terra, sempre mais terra.”
Além disso, o governo e os latifundiários tentam acertar um golpe fatal no MST com a mudança dos critérios de pontuação para selecionar os beneficiários da reforma agrária. O sistema de pontos corresponde a vários critérios, entre eles quem mora no assentamento e se tem família mais numerosa. Um dos requisitos que pontuavam era estar acampado no local. Os sem-terra nessa condição praticamente desapareceram nas novas regras de pontuação. Esta foi a forma encontrada para banir da reforma agrária aqueles que estão na luta pela terra organizada pelo MST e outros movimentos, que perderão pontos e não terão acesso a propriedades. Um sonho para os latifundiários.
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