A aprovação do texto-base do marco de saneamento pela Câmara deve ser aplaudido
Ana Carla Abrão*, O Estado de S.Paulo
É
inacreditável que um país como o Brasil ainda não tenha atingido a
universalização no acesso ao saneamento básico. Pior do que isso,
deveria ser inaceitável que apenas pouco mais da metade da população
brasileira tenha acesso à coleta e tratamento de esgoto ou que mais de
100 milhões de brasileiros não tenham o seu esgoto nem sequer coletado.
Mesmo em São Paulo, Estado mais rico do País, ainda não atingimos a
universalização. Os dados do Painel Saneamento Brasil, compilados pelo
Instituto Trata Brasil, mostram que, ainda hoje, mais de 10% de
paulistas vivem sem acesso à coleta e quase 40% não têm tratamento de
esgoto. Se olharmos os números de Roraima, que detém alguns dos piores
indicadores, estamos falando de 60% da população sem acesso nem sequer à
coleta de esgoto. Tratamento ainda é um sonho distante.
Há
que se aplaudir, portanto, a aprovação do texto-base do novo marco de
saneamento pela Câmara dos Deputados. O projeto foi aprovado com 276
votos a favor e injustificáveis 124 votos contrários. Ainda que de forma
tardia, avança-se na direção de atrair capital privado para os
investimentos que urgem no setor de saneamento no Brasil. Afinal, as
evidências mostram que o modelo predominantemente estatal está exaurido e
será incapaz de promover a necessária universalização. Além disso, a
falta de disponibilidade de recursos públicos, num país refém de gastos
obrigatórios não necessariamente bem alocados, afasta qualquer
perspectiva de se suprir, via investimentos públicos, as necessidades de
recursos nesse setor. Daí a importância de se estabelecer as bases
institucionais que gerem atratividade, acesso e estabilidade de regras
que vão alavancar os investimentos privados para o projeto de
universalização dos serviços de saneamento no Brasil.
O
ponto alto do projeto é a introdução da obrigatoriedade dos processos
de concorrência nas contratações de serviços na área por parte de
Estados e municípios. Até aqui, são as empresas estatais que dominam o
setor de saneamento, isentas que são de processos licitatórios
competitivos. São os chamados contratos de programa que ganharam um
último fôlego. Com a futura obrigatoriedade das licitações e a
consequente vedação dos contratos de programa, a tendência é que haja
aumento da participação de empresas privadas no mercado e,
consequentemente, dos volumes investidos. A expectativa do governo –
algo otimista – é de investimentos na casa dos R$ 700 bilhões até o fim
de 2033, ano em que deverão ser atingidas as metas de 90% de acesso à
coleta e tratamento de esgoto e 99% de acesso à água potável.
O
novo marco também prevê a regionalização na prestação dos serviços de
saneamento e possibilita que a oferta seja feita a blocos de cidades. A
regionalização e o emblocamento deverão gerar ganhos de eficiência e
aumentar a atratividade da prestação de serviços em municípios menores,
levando a uma expansão mais rápida da oferta não só dos serviços de
coleta e tratamento de esgoto, mas também do abastecimento de água
potável e dos programas de limpeza urbana e reciclagem de lixo.
O
projeto aprovado é um avanço, não restam dúvidas. Chama a atenção,
contudo, a expressiva votação contrária. Vários dos mais de cem que
foram contra o projeto usaram o argumento de que água não se privatiza.
Deixando de lado a falta de profundidade características dos clichês
ideológicos – ou de outros motivos não nomináveis – é no mínimo
questionável que mulheres e homens públicos, que foram eleitos para
defender os interesses da população, ajam ignorando a situação precária
que o atual modelo estatal nos legou. Junte-se a isso a realidade fiscal
corrente e os resultados das privatizações, em particular do Sistema
Telebrás no governo Fernando Henrique Cardoso, e não há como justificar
ser contrário a um marco legal que fomenta o investimento privado no
setor.
O Brasil prescinde de resultados. Os 124 deputados que
votaram contra a universalização dos serviços de saneamento deveriam, em
vez de defender a manutenção de uma situação desumana e indigna, usar
seus votos – e seu espaço – para defender o fortalecimento das agências
reguladoras. Se elas funcionarem de forma técnica, independente,
exercendo sua prerrogativa de garantir que os serviços sejam prestados
com foco em qualidade, acesso e preços justos, elas estarão, juntamente
com uma nova lei, reforçando os objetivos e as metas.
Afinal,
acesso a serviços de saneamento significa elevar os índices de
aprendizagem, reduzir os gastos com saúde pública e melhorar as
condições de vida de milhares de brasileiros. Até porque, saneamento
significa, acima de tudo, acesso à uma vida digna. Tão simples e básico
quanto isso.
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA
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