Mentalidade
de parte da população que vê com bons olhos crianças trabalhando, lacuna no
Código Penal e falta de cultura de denúncia estão entre os fatores que
dificultam o combate à prática no país.
Constituição
permite trabalho, em geral, a partir dos 16 anos de idade, e a partir dos 14 anos
na condição de aprendiz
Lugar de
criança é na escola. Infelizmente, tal frase ainda precisa ser repetida
com frequência no Brasil. A cultura popular, sobretudo nas áreas rurais, de que
certos tipos de trabalho ajudam na formação das crianças é um dos fatores que
contribuem para que o país ainda esteja longe de erradicar o trabalho
infantil. Mas definitivamente não é o único.
A ele se
somam fatores socieconômicos e a falta de uma legislação específica que
penalize criminalmente empresários que empregam crianças. A Constituição
brasileira permite o trabalho, em geral, a partir dos 16 anos de idade, e a
partir dos 14 anos somente na condição de aprendiz.
O
levantamento mais recente sobre o tema é a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad) Contínua de 2016, segundo a qual o país tem cerca
de 1 milhão de crianças de cinco a 15 anos de idade em situação de trabalho
infantil, não permitida pela legislação. Na Pnad anterior, de 2015, o número
era de 2,4 milhões.
Para
o Ministério Público do Trabalho (MPT), a aparente queda
milagrosa do número de crianças afetadas, no intervalo de um ano, foi
resultado de uma mudança na metodologia de pesquisa. A Pnad passou a
desconsiderar produção familiar como trabalho, entre outras alterações.
Além
disso, especialistas apontam que apenas levantamentos mais abrangentes, como o
Censo, podem dar um panorama preciso da situação do trabalho infantil no
Brasil. No último, de 2010, pesquisadores apontaram que mais de 3,4 milhões de
crianças e jovens de dez a 17 anos de idade trabalhavam no país.
"No
Brasil ainda persiste uma mentalidade de que é melhor uma criança trabalhando
do que roubando. É errado, criança precisa ser protegida e ter seu papel
respeitado. Criança não pode trabalhar para a sua subsistência, isso o Estado precisa
garantir", afirma Patrícia Mello Sanfelice, procuradora do Trabalho
e coordenadora Nacional do Programa da Infância e Juventude do MPT.
A
procuradora reforça que há uma subnotificação de casos de trabalho infantil no
Brasil, ou seja, muitos hesitam em denunciar. "Há uma cultura de
aceitação. Você não vê uma criança no sinal ou na praia e pensa em ligar para
denunciar", diz.
Sanfelice
vê um retrocesso nos avanços conquistados desde a década de 1990 no país,
quando surgiram as primeiras leis que protegem a criança e o adolescente.
Pesquisas
reforçam o cenário pouco animador. De acordo com os observatórios do Trabalho
Escravo e Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, de 2003 a 2017, foram
resgatadas 897 crianças e adolescentes em situação análoga à escravidão. Entre
2012 e 2017, 15.675 menores de 18 anos foram vítimas de acidentes de trabalho.
Neste
ano, as 24 procuradorias Regionais do Trabalho ajuizaram 83 ações sobre
trabalho infantil no país. Se continuar nesse ritmo, o MPT vai terminar o ano
com mais de 160 processos, número maior que os 137 registrados em 2017. O
resultado também representaria o primeiro aumento no histórico de ações
trabalhistas sobre o assunto envolvendo desde 2014, o que, segundo
Sanfelice, é algo negativo.
Promessa
de erradicação até 2025
Desde que
assumiu o cargo, em meados de 2016, o presidente Michel Temer fez pelo menos
dois grandes cortes no principal programa social do governo, o Bolsa Família,
retirando quase 1 milhão de famílias da lista de beneficiados. Segundo especialistas,
programas como esse fazem com que menos famílias tenham que recorrer
ao trabalho infantil.
"Os
casos de trabalho puramente por sobrevivência diminuíram nos últimos anos,
principalmente por causa da atuação de programas sociais como o Bolsa
Família", reconhece Mariana Neris, diretora do Departamento de
Proteção Social Especial da Secretaria Nacional de Assistência Social do
Ministério do Desenvolvimento Social.
Ela
reitera, no entanto, que o principal vilão do combate ao problema é a cultura
popular de que criança deve trabalhar. "Informação e mobilização estão
entre nosso principais eixos de atuação, justamente para acabar com esse
conceito de que a criança deve trabalhar. Isso concorre com atividades que
deveriam ser próprias da crianças, como educação e lazer", diz.
Ao
contrário de Sanfelice, Neris aponta avanços no combate ao trabalho
infantil no país nas últimas décadas. "Há uma evolução das ações contra o
trabalho infantil no Brasil há pelo menos 20 anos. "Desde 1996, mais
de 4 milhões de crianças foram retiradas da situação de trabalho infantil no
Brasil", afirma.
"Isso
é [o resultado de] um esforço de várias instituições e Poderes. A meta
ambiciosa que foi acordada com diversos setores é de erradicação do trabalho
infantil até 2025."
Penalização
de empregadores
Atualmente,
a atuação do MPT se resume à esfera cível, multando e investigando o dano
moral. Na prática, um empresário que tem hoje menores trabalhando ilegalmente
em seu estabelecimento só será punido penalmente se houver algum outro tipo de
prática envolvida, como cárcere privado e maus-tratos – crimes
previstos no Código Penal.
Um
projeto de lei aprovado pelo Senado no final de 2016 e que caminha lentamente
na Câmara pretende mudar isso. De autoria do senador Paulo Rocha (PT), do Pará,
um dos estados com mais casos registrados de trabalho infantil, o PL 6895/2017
adiciona ao Código Penal o crime de "exploração de trabalho
infantil".
A
proposta é que seja considerado crime explorar, de qualquer forma, ou
contratar, ainda que indiretamente, o trabalho de menor de 14 anos. A pena pode
variar de dois a oito anos de cadeia, além de multa. O projeto prevê que
trabalho no âmbito familiar não seja considerado crime.
Isa
Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e erradicação do
Trabalho Infantil (FNPETI), e ex-secretária-executiva do Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente, ressalta que muitos casos são
registrados por famílias de baixa renda, que não devem ser penalizadas.
"Não
concordamos com a criminalização do trabalho infantil sem critérios, pois
muitos casos de trabalho infantil são registrados no Brasil em casa de famílias
pobres do campo. Não seria correto prender esses pais, pois isso é um problema
social que o Estado deve trabalhar", afirma.
Se a legislação,
por outro lado, restringir a aplicação de punição a empresários
flagrados com trabalho infantil em suas empresas, sem punir os pais das
crianças afetadas, como prevê o PL 6895/2017, Oliveira concorda que deve
haver uma criminalização da prática.
"O
Brasil precisa fazer valer o que está na sua Constituição. As políticas
públicas não são universais e são de baixa qualidade. A responsabilidade
maior é do Estado", conclui.
É
possível denunciar casos de trabalho infantil por telefone, através do Disque
100. A ligação é gratuita e anônima. Pela internet, a denúncia pode ser feita
diretamente nos sites dos MPTs regionais. O denunciante também pode fazer o
registro pessoalmente na delegacia regional do Trabalho do seu Estado ou no
Conselho Tutelar do município.
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