Deixe a política de fora. Entenda, em números, o que poderíamos ganhar - e perder - se todas as armas de repente fossem extintas da face da Terra.
29 jul 2018
Em 24 de março de 2018, mais de 2 milhões de pessoas tomaram as ruas dos Estados Unidos em protestos contra a violência.
A solução para isso varia de acordo com a pessoa com quem você está
falando. Algumas querem revogar os direitos dos cidadãos americanos de
portar armas, enquanto outros defendem armar ainda mais a população. A
maioria dos americanos tem opiniões que se situam entre esses dois
extremos.
Mas o que poderia acontecer se o debate fosse de repente e
irrevogavelmente resolvido pelo desaparecimento repentino de todas as
armas de fogo do mundo, sem uma forma de trazê-las de volta?
Isso não pode simplesmente acontecer como por um passe de mágica. Mas
essa experiência mental nos permite tirar a política da equação e
considerar racionalmente o que poderíamos ganhar - e perder - se
pudéssemos decidir ter menos armas por perto.
O efeito mais óbvio é simples: não haveria mortes por armas de fogo.
Aproximadamente 500 mil pessoas ao redor do mundo são assassinadas por
essas armas a cada ano.
Em países desenvolvidos, mais vidas são perdidas nos Estados Unidos,
onde cidadãos têm de 300 a 350 milhões de armas. Por lá, a taxa de
homicídio por arma de fogo é 25 vezes maior do que as taxas de outras
nações de alta renda combinadas.
"Cerca de cem pessoas morrem no país diariamente por causa de um tiro",
diz Jeffrey Swanson, professor de Psiquiatria e Ciência Comportamental
da Escola de Medicina da Universidade de Duke, nos Estados Unidos.
"Se acabássemos com as armas, muitas e muitas dessas vidas seriam salvas."
No topo da lista, estariam as vidas perdidas para o suicídio. Cerca de
60% das 175,7 mil mortes por armas de fogo nos Estados Unidos entre 2012
e 2016 foram casos de suicídio. Em 2015, metade dos 44 mil americanos
que se suicidaram usaram uma arma.
Mais de 80% das tentativas de suicídio com arma terminam em morte.
"Infelizmente, as chances de sobrevivência são muito baixas", diz o
criminologista e sociologista Tom Gabor, autor de Confronting Gun Violence in America (Confrontando a Violência Armada na América, em tradução livre).
E mais: a maioria dos sobreviventes das tentativas de suicídio não chega a tentar tirar a própria vida novamente.
"Algumas pessoas estão decididas a morrer e vão encontrar outra forma
de fazer isso. Mas outras são impulsivas uma única vez e, após o
episódio, passam a ter vidas felizes e produtivas", afirma Ted Miller,
pesquisador-chefe do Instituto do Pacífico para Pesquisa e Avaliação.
"Isto acontece principalmente com crianças".
Desarmento na Austrália levou a menos mortes
A Austrália fornece evidências reais e convincentes de que ter menos
armas disponíveis está relacionado a uma redução significativa em mortes
- por suicídio e violência.
Em 1996, Martin Bryant abriu fogo contra visitantes do ponto histórico
de Port Arthur, na Tasmânia, matando 35 pessoas e ferindo 23. Para os
australianos, aquela tragédia foi um ponto de virada.
Pessoas de todas as inclinações políticas apoiaram o banimento das
armas semiautomáticas e rifles. Em questão de dias, uma nova legislação
foi promulgada.
O governo comprou armas recém-banidas a um valor justo de mercado e,
então, as destruiu, reduzindo o estoque de armas de civis australianos
em 30%.
Philip Alpers, professor da Escola de Saúde Pública de Sydney,
argumenta que foi significativo o impacto dessa legislação sobre o
número de mortes, mesmo levando-se em conta outras possíveis explicações
e declínios pré-existentes em taxas de suicídio e homicídio.
"O resultado foi que o risco de morrer por tiros na Austrália caiu mais
de 50%, e não houve nenhum sinal de aumento nos últimos 22 anos",
afirma.
Suicídios responderam por uma grande parte dessa queda: até 80% deste
tipo de mortes com armas não acontecem mais. "Isso nos surpreendeu
bastante", diz Alpers.
"Estamos mais felizes ainda de perceber que não houve aumento do uso de
outros métodos letais. Em outras palavras, não há evidências de que
aqueles que pretendiam cometer suicídio ou homicídio simplesmente
passaram a usar outra arma."
Não foi só com suicídios. A taxa de homicídios por armas de fogo na
Austrália caiu mais da metade. Além disso, embora críticos americanos
geralmente argumentem que os assassinos simplesmente encontrariam outra
maneira de matar as vítimas, isto não aconteceu na Austrália.
Em vez disso, homicídios sem armas permaneceram quase no mesmo patamar - o que mostra uma queda geral no número de homicídios.
Casos de abusos domésticos tornam-se menos fatais
Isso também se aplica aos casos de abuso doméstico. Um homem violento
com acesso a uma arma tem de cinco a oito vezes mais chances de usá-la
contra a mulher.
Se a arma desaparece, parceiros que atacam em momentos de raiva têm
menos chances de provocar danos fatais - e talvez sejam até menos
propensos a agir de forma violenta.
Embora polêmicas, algumas pesquisas indicam que a mera presença de uma
arma torna o comportamento do homem mais agressivo, um fenômeno chamado
"efeito das armas".
Se as armas desaparecessem, os Estados Unidos - onde 50 mulheres são
mortas por seus parceiros por mês - provavelmente teriam uma experiência
parecida de redução de mortes como na Austrália.
Os Estados Unidos não são diferentes com relação à maioria dos tipos de
crime: suas médias são comparáveis às do Reino Unido, da Europa
Ocidental, do Japão e de outras nações desenvolvidas.
Quando se trata de homicídio, no entanto, os Estados Unidos têm uma
taxa até quatro vezes maior. Isso porque é muito mais provável que uma
arma de fogo - em vez de qualquer outra - seja usada em um ataque, o que
aumenta o risco de morte em sete vezes.
"Imagine dois homens jovens imaturos, raivosos, impulsivos e bêbados no
Reino Unido que saem de um bar e começam a brigar", diz Swanson.
"Alguém vai ficar com um olho roxo ou o nariz sangrando".
"Mas nos Estados Unidos é mais provável que um deles tenha uma arma, e isso resultará em morte".
A diferença se resume ao que especialistas classificam como "efeito de
instrumentalidade de armas": o fato de haver uma arma em uso provoca um
efeito no resultado final, diz Robert Spitzer, professor de Ciência
Política da Universidade do Estado de Nova York. "Não há método mais
eficiente para matar alguém que uma arma de fogo".
Como na Austrália, evidências nos Estados Unidos também mostram que menos armas resultam em menos mortes e ferimentos.
Um estudo de 2017 revelou que as taxas de homicídio por arma de fogo
são menores nos Estados americanos com leis mais rígidas sobre armas,
enquanto que uma análise de 2014 com menores internados por trauma
mostrou que o controle de armas aumentava a segurança de crianças.
Armas também têm relação com uma polícia mais mortal. Embora as chances
de uma detenção causar lesões seja a mesma nos Estados Unidos, na
Província canadense de British Columbia e na Austrália Ocidental,
pesquisas mostram que "quase ninguém morre durante uma prisão na
Austrália ou no Canadá", diz Miller - mesmo que a polícia desses três
países portem armas.
Nos Estados Unidos, entretanto, quase 1 mil cidadãos são mortos
anualmente pela polícia. Claro, as razões para a violência policial são
complexas e envolvem preconceito racial contra cidadãos não-brancos,
incluindo contra os próprios policiais afro-americanos. Ainda assim,
muitas mortes seriam prevenidas se armas não estivessem envolvidas.
"Muito da brutalidade policial acontece apenas porque os próprios
agentes têm medo de serem alvejados", diz Miller. "Se a polícia precisa
se resguardar contra uma arma a todo momento, as interações se tornam
mais letais".
O banimento das armas provavelmente geraria condições mais seguras para
a polícia, ele acrescenta. Mais da metade das pessoas mortas pela
polícia em 2016 estava armada, e muitas estavam trocando tiros com
agentes quando foram atingidas.
Ataques em massa cometidos por terroristas do próprio país também
seriam reduzidos. Um estudo de 2017 com mais de 2,8 ataques nos Estados
Unidos, Canadá, Europa Ocidental, Austrália e Nova Zelândia revelaram
que armas são de longe a forma mais letal de matar o maior número
possível de pessoas - até mais do que explosivos e atropelamentos com
veículos.
Armas foram usadas em apenas 10% dos ataques, mas representaram 55% das
mortes. Nos Estados Unidos, terroristas preferem as armas: de cada 16
ataques terroristas letais desde o 11/09, com exceção de dois, todos os
outros envolveram armas de fogo.
"É difícil construir uma bomba, mesmo uma simples", diz Risa Brooks,
professora de ciência política da Universidade de Marquette, nos Estados
Unidos.
"Ao dificultar o acesso a armas letais, também se está dificultando a violência praticada por terroristas".
A violência da natureza humana torna a paz improvável
Mas a história mostra que a violência está entranhada na natureza
humana, e armas não são, de forma alguma, um pré-requisito para o
conflito.
"Pense no genocídio de Ruanda (em 1994)", exemplifica David Yamane,
professor de Sociologia da Universidade Wake Forest, nos Estados Unids.
"Houve uma violência tremenda, grande parte sem armas".
Mesmo quando levamos esse experimento mental ao extremo, se todas as
armas desaparecessem da face da Terra, guerras e conflitos civis
continuariam a acontecer.
Mas em vez de olhar para armamentos mais primitivos como lanças,
espadas ou arco e flecha, as nações modernas provavelmente se voltariam
para outras formas de matar, incluindo explosivos, tanques, mísseis,
substâncias químicas e outras armas biológicas.
A guerra nuclear, entretanto, continuaria com pouco apelo dado sua destrutividade extrema, acrescenta Gabor.
As nações também devem inventar novos tipos de armas para preencher as
lacunas, argumenta Brooks, com os Estados mais ricos e poderosos
provavelmente sendo os mais rápidos em inovar nos meios mais eficientes
de matar.
Então, mesmo que a forma de guerra entre os Estados mudasse, "não
necessariamente isso mudaria o equilíbrio de poder", defende Brooks.
O mesmo provavelmente não se aplica a atores não estatais. Em lugares
como Somália, Sudão, Líbia, onde as armas de fogo estão facilmente
disponíveis, seu desaparecimento repentino reduziria a capacidade das
milícias de operar.
"Uma coisa que define atores não estatais é a falta de equipamentos que
requerem altos investimentos", diz ela. "Eles precisam de coisas que
são fáceis de conseguir, fáceis de transportar e fáceis de estocar e
esconder".
Uma redução no poder de várias milícias pode soar como algo bom. Mas,
em alguns casos, contramilícias são compostas de lutadores resistindo à
violência e a governos opressivos, defende Brooks.
Mundo natural
Se as armas desaparecessem, também haveria diferentes resultados para
os animais. De um lado, a caça de espécies ameaçadas cairia
drasticamente.
Por outro, o controle de animais problemáticos - seja guaxinins com
raiva, elefantes em debandada, cobras venenosas ou ursos polares em
ataque - seria mais difícil.
"Há muitas razões para a posse de armas, especialmente em um país como a
Austrália, que é baseado na agricultura e tem uma história de fronteira
semelhante à dos Estados Unidos", explica Alpers.
Armas também são necessárias para o gerenciamento de espécies invasoras, diz ele.
Milhares de gatos, porcos, cabras, gambás e outras espécies
prejudiciais não nativas são mortas a cada ano na tentativa de se
preservar ecossistemas delicados, especialmente ilhas.
Acabar com as armas tornaria a batalha ainda mais complicada - e mais
desumano. As mortes intencionais de gado ferido e outros animais em
situação similar seriam mais brutais sem as armas.
"Se você tem um animal grande e doente, um machado não é um bom substituto para uma morte rápida com uma arma", comenta Alpers.
Os ganhos e perdas econômicos do desaparecimento das armas
Armas são feitas para matar, mas sua influência se estende a outras facetas da vida e da sociedade, e todas sofreriam mudanças.
Em termos econômicos, os Estados Unidos são os que mais têm a perder se as armas desaparecerem.
A Associação de Comércio da Indústria de Armas calcula que esse mercado
gera US$ 20 bilhões (R$ 75 bilhões) em contribuições diretas, além de
US$ 30 bilhões (R$ 113 bilhões) em outras contribuições.
Para a economia americana, perder US$ 50 bilhões (R$ 188 bilhões) não
seria muito significativo, diz Spitzer. "Não é zero, mas não é muito
alto se comparado com a economia como um todo".
Provavelmente, haveria um modesto ganho econômico com o banimento das
armas. Mortes e ferimentos por armas provocam gastos de US$ 10,7 bilhões
(R$ 45 bilhões) por ano, e mais de US$ 200 bilhões (R$ 754 bilhões)
quando outros fatores são levados em conta.
"Temos de levar em conta todos os custos financeiros da violência
armada, não são apenas os custos médicos e de reabilitação das pessoas,
mas também os custos do sistema judiciário e a perda de renda das
vítimas, e até os custos com qualidade de vida", sugere Gabor.
De fato, embora os impactos gerais sobre a economia sejam
insignificantes, Miller aponta que os ganhos menos tangíveis seriam
significativos.
Por um lado, muitas pessoas se sentiriam mais seguras. "Nós veríamos
novas gerações que não foram traumatizadas pelo som do disparo ouvido do
quarto", diz. "Isto poderia fazer uma enorme diferença na saúde mental
das crianças".
Os americanos de todas as idades estão cada vez mais com medo de serem
atacados em espaços públicos, acrescenta Gabor, seja na escola, no
cinema, na boate ou na rua.
Mesmo que tais eventos sejam relativamente raros, "esses tiroteios em
massa corroem o tecido social", afirma. "A sensação de segurança e
confiança nos demais é erodida, causando profundos efeitos sociais e
psicológicos."
Muitos poderiam respirar mais tranquilos com as armas longe da vista,
mas alguns donos de armas iriam ter a reação contrária e se sentir mais
vulneráveis.
"Há pessoas que se armam defensivamente - sejam contra pessoas maiores,
ou as que portam facas e armas - para equalizar a situação", diz Yaman.
Acabar com as armas "certamente deixaria pessoas que são potenciais
vítimas de violência incapazes de se defender contra agressores",
completa.
Se as armas realmente ajudam pessoas a ficar seguras e a se defender é
algo polêmico. Mas as poucas pesquisas disponíveis sobre o tema tendem a
indicar que as armas têm o efeito oposto.
Um estudo de 1993 com base em 1.860 homicídios descobriu que a presença
de armas em casa aumenta significativamente o risco de homicídio por um
membro da família ou um conhecido próximo, por exemplo.
Outro meta-estudo de 2014 corroborou que o acesso a armas de fogo está associado a homicídios e tentativas de suicídio.
Então, embora alguns donos de armas possam perder a sensação de
segurança se as armas sumirem, "dados mostram que isto é uma falsa
sensação de segurança", diz Miller.
A cultura em torno das armas também seria algo que muitos donos desses
artefatos sentiriam falta. Mas Miller ressalta que caçadores
recreacionais poderiam trocar o rifle por outros métodos, como o arco e
flecha.
O mesmo serve para aqueles que visitam campos de tiro por hobby - eles
simplesmente poderiam encontrar uma nova atividade. Mas, para muitos
daqueles que têm as armas como uma paixão, isso não traria muito
conforto.
"Eles perderiam um pouco o prazer, porque preferem comprar uma arma a
uma televisão ou qualquer outra coisa. Mas, por outro lado, muitas
pessoas ainda estariam vivas. E acho que isso supera a perda de prazer".
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