Os credores do governo são o público em geral, até mesmo o trabalhador mais humilde
30 jul 2018
"Que me persigam, mas somente com juros, este ano,
gastaram R$ 380 bilhões. É difícil explicar ao povo, mas a sociedade
brasileira está devendo R$ 5 trilhões ao baronato." Assim se expressou
Ciro Gomes, na cerimônia de oficialização de sua candidatura à
Presidência da República. Frase de efeito, sem dúvida. No entanto,
desprovida de conteúdo.
Não faz qualquer sentido tomar o valor nominal dos juros
apropriados à dívida pública como um indicador importante do desajuste
fiscal. Esse valor, bem como sua relação com o PIB, depende da taxa
nominal de juro, e esta, em grande medida, é determinada pela inflação. O
que importa para a dinâmica da relação dívida/PIB é a taxa real de
juros, além, é claro, do crescimento real do PIB e do resultado
primário. Um exemplo hipotético ajuda a deixar a ideia mais clara.
Suponha um país na seguinte situação: PIB = 100 unidades
monetárias (UM); dívida pública = 80 UM; taxa de inflação = 10% ao ano;
juro real = 0; taxa nominal de juro, portanto, igual à inflação, ou
seja, 10% ao ano; superávit primário e crescimento real do PIB = 0.
Nessas condições, a despesa de juro seria de 8 UM (10% sobre a dívida de
80 UM), o que corresponde a 8% do PIB. Uma enormidade, poderia dizer o
candidato, se analisasse as contas desse país. E muitos concluiriam que
não há economia que resista pagar 8% do PIB em juros.
Mesmo se não for economista, o leitor já percebeu que
tal conclusão seria uma tolice. Nesse exemplo, o valor do juro não passa
de mera atualização monetária do estoque da dívida pública. O credor
que o recebeu não poderá gastá-lo, pois se o fizesse estaria dilapidando
o valor real de seu crédito. Ele tenderia a deixar seu dinheiro
aplicado e isso possibilitaria ao governo "rolar" os juros colocando
novos títulos públicos no mercado. Se as condições explicitadas no
parágrafo anterior prevalecerem indefinidamente, a rolagem anual dos
juros manterá a relação dívida/PIB constante nos 80%, dado que dívida e
PIB seriam atualizados anualmente pela taxa de inflação de 10%. Não
haveria, portanto, qualquer aumento de endividamento. Do ponto de vista
econômico, a despesa de juros seria nula (o que vale é o juro real),
apesar de seu valor nominal corresponder a 8% do PIB. Se essa despesa é
nula, não compete com os recursos públicos a serem aplicados em outras
áreas, tais como educação, saúde, segurança, investimentos ou programas
sociais.
O exemplo, embora hipotético, nos ajuda a interpretar corretamente os dados das contas públicas.
Voltemos ao Brasil real. Em 2017, os juros incorridos
pelo governo federal (excluído o valor de R$ 46 bilhões relativos à
remuneração dos títulos que estão na carteira do Banco Central) foram de
R$ 340 bilhões, ou seja, 5,2% do PIB. Esse valor corresponde a uma taxa
nominal de juro sobre a dívida mobiliária federal em poder do público
(R$ 4,3 trilhões, na média do ano) de 7,9% ao ano. Se descontarmos a
inflação de 3,8% (medida pelo deflator do PIB, para manter a coerência
dos dados), chegamos a um juro real bruto de 3,9%, o que corresponde a
R$ 176 bilhões, ou 2,7% do PIB, bem menos do que o valor alardeado.
Esses cálculos ainda não consideram o Imposto de Renda incidente sobre
os juros nominais, cerca de R$ 68 bilhões (alíquota média de 20%) que
retornarão para o governo e ajudarão no resultado primário.
Sim, até mesmo esse valor ainda é alto, mas sua redução
não depende da vontade discricionária do governo, mas sim da melhora do
resultado primário.
Finalmente, a expressão "baronato", utilizada pelo
candidato para se referir aos credores da dívida pública, é pura
retórica eleitoral, distante da realidade. Os credores do governo são o
público em geral, até mesmo o trabalhador mais humilde, que tem grande
parte de seu FGTS aplicada, pelo gestor do fundo, em títulos públicos.
* ECONOMISTA E DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM
CONSULTORES. FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO
NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA
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