Efeito do bloqueio de Trump à nomeação de juízes para o órgão de apelação da organização será difícil de reverter
O Estado de S.Paulo
01 de dezembro de 2019 |
“O inverno está chegando”, alertou o representante norueguês em 22 de novembro durante reunião da Organização Mundial do Comercio (OMC).
O sistema de comércio multilateral que a organização supervisiona desde
1995 está prestes a congelar. No dia 19 deste mês, dois juízes do seu
órgão de apelação, que analisa os recursos em disputas comerciais e
determina sanções contra os contraventores, devem se aposentar, e um
bloqueio americano a novas nomeações indica que eles não serão
substituídos. Apenas um juiz ficará na função. E não terá mais
possibilidade de analisar novos casos.
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A
OMC é base de sustentação de 96% do comércio global. Segundo uma
estimativa recente, a afiliação dos países à organização, ou seu
predecessor, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt, na sigla em
inglês), impulsionou o comércio entre seus membros em 171%. Quando
iPhones mudam da China para os Estados Unidos ou as garrafas de uísque
da União Europeia vão para a Índia, é a OMC que decide se as tarifas e
barreiras não tarifárias têm de permanecer baixas e dá às empresas a
segurança que necessitam para planejar e investir.
A
ideia é que o sistema se imponha automaticamente. Muitos países cumprem
as regras da OMC. Mas se um deles entende que um outro as transgrediu,
lançará uma discussão comercial individual que poderá se transformar
numa disputa formal na organização. Se a decisão da OMC desagradar a uma
das partes, esta pode recorrer. Os julgamentos do órgão de apelação têm
grande impacto. Se o perdedor não cumprir as regras, o vencedor tem
direito a impor tarifas acima daquele valor que os juízes consideraram
ser o custo pela transgressão. É essa punição que constitui um freio, em
primeiro lugar, à violação de normas.
Não surpreende o fato de o
presidente Donald Trump ter descartado esses árbitros estrangeiros
diante do seu desagrado geral com regras estabelecidas
internacionalmente. Em 12 de novembro, ele disse estar “muito incerto”
em relação à OMC. Mas os problemas são mais profundos do que a aversão
às instituições multilaterais. Eles decorrem de uma quebra de confiança
na maneira como a lei internacional funciona e uma falência mais geral
da divisão de negociação da OMC.
Se os americanos sentissem que
conseguiriam resolver suas queixas, seus ressentimentos em relação ao
órgão de apelação poderiam não se intensificar. Mas com tantos membros
relutando a uma liberalização do comércio, incluindo países menores que
temem a abertura para a China, isso é impossível.
Os EUA tiveram
algumas vitórias na organização: contra a UE pelos subsídios concedidos à
Airbus; e contra a China pelos seus subsídios domésticos, roubo de
propriedade intelectual, controle das exportações de metais de terras
raras utilizados na fabricação de celulares e mesmo contra suas tarifas
sobre a carne de frango americana. Mas também foi levado várias vezes ao
órgão de apelação por países que se opuseram ao seu uso autocrático de
“remédios comerciais”, ou seja, tarifas adotadas supostamente para
defender seus produtores contra uma concorrência desleal.
Se
governos anteriores nos EUA resmungaram e ocasionalmente interferiram
nas nomeações dos juízes, desta vez a administração Trump foi mais
longe. Ele se queixa de que as disputas com frequência se arrastam por
muito mais tempo do que o prazo máximo de 90 e, mais sério, de que as
decisões do órgão de apelação vão além daquilo a que os membros se
comprometeram. E deixou claro que, salvo se essas questões não forem
solucionadas, nenhum novo juiz será confirmado.
O excesso
judicial está nos olhos de quem vê. Os perdedores sempre acharão que não
foram tratados de maneira justa, e os EUA são rápidos em comemorar
decisões da OMC quando saem vitoriosos. Mas, para muitos outros países, o
órgão extrapolou sua função. Uma pesquisa recente com pessoas
envolvidas com a OMC, incluindo representantes nacionais, concluiu que
58% concordam com esse veredicto.
Conseguir que um número tão
grande de países aderisse à OMC foi um êxito notável. Com 164 membros, a
OMC ficou mais inclusiva, mas incapaz de ter a concordância de todos.
Cada membro tem poder de veto sobre qualquer nova liberalização
comercial multilateral. E sem novas negociações, o ressentimento com
relação ao órgão de apelação aumentou.
Se o sistema multilateral
tivesse sido mais eficiente na condução da ascensão da China, talvez seu
maior problema atualmente, então os apelos para salvá-lo seriam mais
vigorosos em Washington. Embora vários governos americanos tenham
interposto e vencido vários casos, os EUA afirmam, com razão, que,
quando quiseram chamar a China à responsabilidade por suas violações,
não tiveram muito apoio. Agora que o governo Trump ignorou a OMC e
entrou em disputa direta com a China, não há nada que ele
particularmente deseje da organização. E assim, as chances de que ceda e
permita a nomeação de juízes no dia 10 são mínimas.
Tudo isso
significa que o comércio global está prestes a se tornar muito menos
previsível e muito mais contencioso. Sem o órgão de apelação para agir
como um intermediário de confiança, as disputas entre os membros de mais
peso devem se intensificar. De todas as políticas comerciais adotadas
por Trump esta talvez seja a mais difícil de reverter e terá os efeitos
mais duradouros. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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