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Terra Indígena Arariboia no Maranhão, onde nasceram os Guardiões da Floresta, tem mais de 20 mortes de indígenas que seguem impunes
*Por Ciro Barros
Cerca de quatro horas de solavancos e 50 quilômetros de estrada de
chão ligam o povoado de Campo Formoso à aldeia indígena Lagoa Comprida,
no coração da Terra Indígena (TI) Arariboia, região centro-oeste do
Maranhão. No trajeto, não se passa da segunda marcha e a única
preocupação é o encaixe do carro por entre os buracos na estrada aberta
por madeireiros no início do boom da madeira na TI, na década de 1980.
A história desta aldeia é ponto central para compreender o quadro de
violência que os cerca de 16 mil indígenas Guajajara e Awá-Guajá estão
submetidos há décadas, crimes ainda à sombra da impunidade.
Quando a reportagem da Agência Pública chegou à aldeia Lagoa
Comprida, os Guajajara demoraram a aparecer. Quando o fizeram, reuniram
um grupo de caciques e outras lideranças — seis caciques estavam
presentes, assim como representantes dos Guardiões, professoras, agentes
de saúde e outras figuras de destaque da Lagoa Comprida e de aldeias
próximas (são mais de 150 aldeias na TI Arariboia). Fizeram duas
exigências antes de falar: serem ouvidos sob anonimato e falarem todos
juntos para que todos ouvissem a todos. Aceitas as condições, outros
indígenas começaram a chegar até formar um grupo de cerca de 30 pessoas.
Lagoa Comprida não é muito distante de onde morreu o guardião da
floresta Paulo Paulino Guajajara no mês passado. O entorno da aldeia é
alvo da cobiça dos madeireiros vindos de povoados rurais de municípios
vizinhos como Bom Jesus das Selvas e Buriticupu (MA) devido à grande
concentração do que restou de madeiras nobres.
➤ Leia também:
Cansados, os indígenas disseram estar passando as noites no meio da
mata, temendo possíveis ataques de madeireiros e moradores de povoados
próximos. Segundo eles, depois de a polícia ter entrado para buscar o
corpo de Paulino Guajajara, houve uma boataria de que haveria um ataque à
aldeia por não indígenas que estariam indignados com a chegada das
autoridades. Segundo lideranças indígenas e fontes da Funai, após a
chegada da polícia a Arariboia, cinco casas de indígenas foram queimadas
em um povoado fora da aldeia situado na região conhecida como Cerolzal.
É nessa região da Lagoa Comprida que também perambula um grupo de
indígenas isolados do povo Awá-Guajá, filmados pelo fotógrafo e
documentarista Flay Guajajara em julho deste ano, que os Guajajara
tentam proteger a qualquer custo dos constantes invasores — sobretudo
madeireiros e caçadores.
Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 43
indígenas Guajajara foram assassinados no Maranhão em decorrência de
conflitos com madeireiros entre 2000 e 2019 — 12 deles no interior da TI
Arariboia. Desde 1992, os relatórios do Cimi contabilizam 20
assassinatos na TI — conta que inclui também os chamados crimes
“comuns”, ou seja, que podem ou não ter relação com a disputa
territorial. São casos de atropelamentos, brigas de bar e afogamentos
ocorridas geralmente nas áreas urbanas próximas, mas com investigações
deficientes que não permitem esclarecer todas as circunstâncias.
Nas delegacias de municípios próximos, como Amarante do Norte e Bom
Jesus das Selvas, os policiais presentes disseram à reportagem não
possuir dados precisos das mortes de indígenas — em Amarante, não havia
sequer delegado. Levantamentos informais dos próprios indígenas indicam
mais de 60 mortes de Guajajara desde 1990 — três vezes mais do que
contabiliza o Cimi. A violência, até hoje, não foi totalmente aferida
por lá. “Há uma situação de impunidade muito grande. Essa é a grande
revolta dos indígenas. Eles estão sendo assassinados e ninguém vai
preso. Ninguém é responsabilizado ou mesmo identificado”, afirma
Gilderlan Rodrigues da Silva, coordenador do Cimi no Maranhão.
➤ Leia também:
A situação de impunidade vem marcando famílias como a do próprio
Paulo Paulino Guajajara. Um tombamento de um caminhão de madeira que
explorava ilegalmente a TI tirou a vida de Otacília Guajajara, tia de
Paulo Paulino, e deixou o primo dele Donizete sem uma das pernas. “Eles
matam a gente de todo jeito: atropelado, atiram na gente e nunca
acontece nada”, lamenta Ornil Paulino Guajajara, tio de Paulo Paulino,
que se emociona ao falar da morte do sobrinho.
Diante da ausência de investigação policial, crimes e suas motivações
ficam impunes. É o caso, por exemplo, do indígena José Ribamar Santana
da Silva, morto em janeiro de 2000, em Amarante do Norte, em uma festa
na cidade. “Foi sorteado um frango em uma seresta. Meu tio ganhou o
frango e isso incomodou os brancos que estavam lá. Ele foi morto ali
mesmo”, relata Suluene Santana da Silva, conselheira da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib), Guajajara moradora da TI Arariboia e
sobrinha de José Ribamar. “Até hoje, o responsável por este crime anda
solto pelo município de Amarante”, relata Gilderlan Silva, do Cimi.
Procurada, a Funai afirmou não possuir um levantamento a respeito das
mortes violentas dos indígenas na Arariboia, pois atua somente “como
parceira das instituições de Segurança Pública” do Maranhão. Até esta
publicação, a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão não respondeu
aos pedidos de informação de mortes de indígenas no Estado nem sobre a
abertura de investigações e identificação de autores de assassinatos de
indígenas.
Lembranças de um ataque
O cenário de invasões e violência motivou, no início dos anos 2000,
as discussões a respeito de um grupo de indígenas que assumisse para si o
monitoramento e a vigilância dos territórios tradicionais. À época, já
estava claro para eles que a atuação do Estado era insatisfatória na
proteção das áreas e que os próprios indígenas deveriam assumir esse
papel.
Mas foi em outubro de 2007 que um episódio ocorrido justamente na
aldeia Lagoa Comprida fez mudar a dinâmica de atuação dos guardiões na
TI Arariboia, segundo os relatos colhidos pela reportagem. Os indígenas
usam o termo “massacre” para definir a invasão de um grupo de pelo menos
dez madeireiros que vitimou duas pessoas (um cacique Guajajara e um não
indígena) e deixou dois indígenas gravemente feridos e outros tantos
Guajajara traumatizados.
Por volta das 6 horas da manhã do dia 15 de outubro de 2007, o grupo
de madeireiros invadiu a Lagoa Comprida fortemente armados. O motivo foi
a apreensão pelos indígenas da aldeia de um caminhão usado na
exploração ilegal de madeira nas matas próximas à Lagoa Comprida.
Segundo uma denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF)
em Imperatriz (MA), o caminhão pertencia ao madeireiro Geraldo Cândido
da Costa Filho, conhecido como “Geraldinho”.
O caminhão fora apreendido em setembro daquele ano. Duas semanas
antes do ataque, segundo depoimentos de indígenas e do antigo chefe de
posto da Funai na região, Marcos José de Sá, Geraldinho apareceu na
aldeia para tentar negociar o resgate do caminhão. Ofereceu R$ 15 mil
pelo veículo e prometeu parar com a exploração madeireira na região. Os
indígenas recusaram o acordo. Segundo o MPF e a Polícia Federal, a
invasão ocorreu após a recusa. No dia do ataque, diz a denúncia, o grupo
de madeireiros chegou atirando contra as casas da aldeia.
Além disso, invadiram as primeiras residências que encontraram e
tomaram os indígenas como reféns. Um deles, Eduardo Paulino Guajajara,
levou uma coronhada na nuca e foi amarrado. Outro indígena, que falou à Pública
sob anonimato, também foi pego como refém e relembrou o episódio à
beira das lágrimas. “Me algemaram lá e tudo, amarraram minhas mãos. Eles
me pegaram dentro da minha casa, me bateram muito e me deixaram
amarrado uns 40 minutos. Pegaram quatro índios junto comigo”, afirmou C.
G., testemunha na ação movida pelo MPF.
Há uma situação de impunidade muito grande. Essa é a grande revolta dos indígenas
Quando percebeu a invasão, o cacique da aldeia, Tomé Guajajara,
começou a trocar tiros com os madeireiros. Um de seus disparos atingiu o
madeireiro Josevan da Costa Gomes, que morreu. Mas os disparos dos
madeireiros também mataram Tomé Guajajara. Outros dois indígenas — Maria
Madalena Guajajara e Toninho Guajajara — ficaram gravemente feridos por
disparos de arma de fogo após o ataque.
Geraldinho e dois irmãos — Joane e Elias Rodrigues da Costa — foram
denunciados pelo MPF pelo homicídio de Tomé Guajajara, duas tentativas
de homicídio e por lesão corporal. Doze anos depois, ainda não houve uma
sentença para a denúncia em primeira instância. A reportagem contatou a
advogada Isaura Macedo Lima, responsável pela defesa de Geraldinho,
Joane e Elias na ação que tramita na Justiça Federal do Maranhão, mas
não obteve retorno.
Após a morte de Tomé, surgem os Guardiões
Ainda em 2007, depois do massacre e da morte de Tomé Guajajara, os
indígenas reuniram-se em uma assembleia da Cocalitia (Conselho de
Caciques e Lideranças da Terra Indígena Arariboia) e formalizaram o
grupo Guardiões da Floresta, formado por indígenas que assumiram para si
o monitoramento constante do território e a fiscalização ambiental. A
partir de então, começaram as ações de monitoramento na região.
“Houve o apoio das lideranças e caciques para essa criação. Alguns
indígenas se dispuseram a fazer esse trabalho e então a Funai entrou
nesse acompanhamento, em parceria com o BPA [Batalhão de Policiamento
Ambiental da Polícia Militar do Maranhão]”, relembra a liderança Fabiana
Guajajara. Acertou-se que os Guardiões atuariam em conjunto com a
Frente de Proteção Etnoambiental Awá-Guajá, criada também em 2007 para
realizar ações de proteção aos indígenas isolados da Arariboia, e que a
Polícia Militar daria apoio a operações específicas de repressão a
invasores.
“Até um certo período as ações foram feitas”, mas o que acontecia,
explica Fabiana, é que o trabalho não era permanente. Com isso,
criava-se o cenário de enxugar gelo: as autoridades entravam, reprimiam
invasores, por vezes prendiam alguns madeireiros e apreendiam caminhões
de madeira. Passavam-se alguns dias de calmaria e os invasores voltavam
sabendo que o Estado demoraria a mobilizar recursos para novas operações
de repressão.
“Tivemos esse embate com a Funai, a Polícia Federal e os órgãos
estaduais. A gente precisava de uma atuação permanente dentro do
território”, diz o indígena Silvio Guajajara, liderança da Arariboia e
hoje coordenador regional licenciado da Funai em Imperatriz (MA).
Após uma série de cobranças por essa atuação permanente, a posição
dos órgãos estatais foi que não haveria como promover uma atuação
permanente. Por lei, a Polícia Militar, responsável pelo policiamento
ostensivo no país, não pode atuar no interior das terras indígenas. À
Polícia Federal cabe um trabalho mais de inteligência e repressão
episódica de crimes federais. “Por essa falta de trabalho fixo, nós
tivemos um embate com a Funai e os órgãos de segurança. Os Guardiões
acabaram se desentendendo com os órgãos. Em uma reunião, eles disseram:
‘Pois então se vocês não ficam, a terra é nossa e nós vamos fazer esse
trabalho’. Aí acabaram os recursos e o esforço do governo em atuar
junto, mas os indígenas continuaram”, relata Fabiana Guajajara.
Divergências
Ao assumirem por conta própria o trabalho de monitoramento permanente
e não mais acompanhado das autoridades em operações específicas,
criaram-se atritos com as lideranças e caciques da reunião da Cocalitia,
sobretudo aqueles mais próximos à Funai. “Nós dissemos a eles que o
trabalho deles era importante, mas não poderia ser feito de qualquer
jeito, que tinha que ter acompanhamento”, relata Silvio Guajajara. Do
lado dos Guardiões, a argumentação era que, enquanto se esperava por uma
atuação mais firme do Estado, a floresta vinha sendo desmatada achacada
por grileiros, madeireiros e caçadores. “A gente não aguentava mais
esperar as autoridades”, resume um guardião Guajajara que não quis se
identificar.
A divergência de visões gerou, ainda, alguns embates entre os
Guardiões e os líderes da Cocalitia. Anos após a criação dos Guardiões,
eles passaram a receber apoio financeiro de organizações ligadas à pauta
ambiental. Membros da Cocalitia foram falar com os financiadores a
respeito dessa postura de independência que os indígenas vinham
assumindo em relação às autoridades estatais. “Dissemos que eles estavam
financiando a morte, que o trabalho dos Guardiões não poderia ser
realizado de qualquer jeito”, relembra Fabiana Guajajara. A postura da
Cocalitia incomodou alguns guardiões, que disseram que os caciques
estariam contra o trabalho deles.
A situação está complicada, nós estamos dormindo no mato. Estamos correndo risco de morte
Os Guardiões da Floresta foram assumindo a função de policiar a terra
e, por diversas vezes, apreenderam e incendiaram caminhões, enfrentando
diretamente os invasores para expulsá-los do território — inclusive com
episódios de trocas de tiros —, o que não é respaldado pela legislação.
Mesmo reconhecidos pela Funai, não cabe ao grupo de indígenas assumir a
função de repressão. Em 2015, em outra assembleia da Cocalitia, os
Guardiões levaram imagens de suas ações e foram criticados pelos
caciques e lideranças, que não concordavam com as ações, vistas como
“radicais”, e temiam represálias dos não indígenas. Em uma assembleia
posterior da Cocalitia, a extinção dos Guardiões chegou a ser discutida
entre os indígenas, sem chegar a uma definição.
A vingança dos invasores
Em 2016, a morte de indígenas explodiu na Arariboia — 25%
das mortes contabilizadas pelo Cimi na TI ocorreram só neste ano — e a
violência voltou-se principalmente contra os Guardiões da Floresta. O
ano terminou com seis assassinatos de indígenas — foram mortos
violentamente Aponuyre, Cantídio, Genésio, Isaías, Assis e Alfonso
Guajajara. Três deles eram guardiões. Alguns indígenas foram mortos a
tiros, outros a pauladas, outro jogado de uma ponte e outro atropelado
por um madeireiro, segundo os indígenas, intencionalmente. Em comum
entre os casos está a ausência de elucidação e identificação de autoria
dos crimes. “Como é comum aqui no Maranhão, em nenhum desses casos a
polícia identificou e puniu os autores”, relata Gilderlan Silva, do
Cimi, que acompanha os casos — que, registrados em delegacias locais,
não foram além dos boletins de ocorrência.
Em 2019, o clima de tensão vem se mantendo alto e a morte do guardião
da floresta Paulo Paulino Guajajara ainda não foi esclarecida. Além
disso, as invasões vêm se mantendo a todo vapor na Arariboia. De acordo
com dados do Instituto Socioambiental (ISA), entre setembro de 2018 e
outubro de 2019, foram abertos 1.248 quilômetros de ramais para
exploração ilegal de madeira no território.
O governo do Maranhão anunciou a criação da FTVida, uma força-tarefa
para enfrentamento da violência contra os indígenas. O secretário de
Segurança Pública do Maranhão, Jefferson Portela, promete construir um
plano conjunto de atuação e deve visitar a Arariboia ainda neste mês.
Mas os indígenas têm pressa. “Nós precisamos que a polícia venha aqui
hoje, amanhã. Não semana que vem, não no mês que vem. A situação está
complicada, nós estamos dormindo no mato. Estamos correndo risco de
morte e qualquer hora pode vir outra emboscada”, exigiu o cacique Osmar
Guajajara, da aldeia Guaruhu.
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