Burocracia gera corrupção, mas a ausência de burocracia também gera corrupção
Rosângela Bittar, O Estado de S.Paulo
Isolados
e influentes, dois grupos, com argumentos e propostas divergentes, já
produziram um efeito essencial no governo Bolsonaro: os princípios da
doutrina liberal perderam o papel de denominador comum e estão em
processo de revisão, sobretudo para incorporar nuances que desafiam a
imaginação do ministro Paulo Guedes.
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De um lado, estão os liberais exaltados do Ministério da Economia,
sempre distraídos e descompromissados da política. De outro, um grupo
de ministros, de diferentes áreas e formação, que têm em comum o fato de
não aceitarem, sem conhecimento prévio, mudanças radicais que afetem a
própria existência de sua função. O projeto de reforma do Estado foi a primeira vítima do teste de estresse. Com seu curso suspenso pelo presidente Jair Bolsonaro,
a razão, mencionada à época, foi o temor de que esta reforma pudesse
provocar a eclosão de manifestações de rua, a começar dos por ela
atingidos e terminar ninguém saberia dizer onde.
Esse
temor esteve mesmo presente lá atrás, quando Lula foi solto e clamou
por rebeliões contra o governo, exortação que caiu como uma bomba no
deserto. Diante da esterilidade, o governo, então, engavetou esta
preocupação e acabou deixando escapar sua real motivação.
As
razões são fortes, de princípios, e se fizeram notar só agora devido à
profundeza da reforma do Estado. Ministros que nunca contestaram o
liberalismo mas guardam uma visão diferente sobre a estrutura e o papel
do Estado, questionaram a forma superficial como o assunto foi tratado
no posto Ipiranga. A proposta de emenda constitucional foi elaborada por
um pequeno grupo do setor de desburocratização, liderado por Paulo Uebel,
todos especialistas nos meandros da iniciativa privada. Tomaram
decisões drásticas sobre função, papel, carreiras, instituições e
pessoas da esfera pública sem discutir suas ideias com os atingidos pela
transformação. Setores que, por sinal, sofreriam o impacto paralisante
pois, aí sim, a reação prevista seria dura e abrangente.
Já se
desconfiava que boa coisa não estava embrulhada naquele pacote, entregue
no Palácio do Planalto, numa tarde chuvosa, acompanhado de um aviso,
seco: o presidente tem que assinar e enviar no dia seguinte de manhã,
com urgência, ao Congresso.
Foram as questões denominadas
técnicas que, mesmo na pressa, chamaram a atenção de quem não
participara da elaboração do texto.
O grupo a favor de mais
discussão interna considerou que a reforma fragilizava o Estado em lugar
de fortalecê-lo. Uma vez fragilizado, o Estado ficaria vulnerável a
grupos políticos e econômicos que se revezassem no poder. O exemplo que
se destaca nos equívocos dos autores é a definição das carreiras de
Estado, sempre elas.
Deixaram fora do conceito atividades
consideradas cruciais, como as de Polícia, as da Receita e da Advocacia
da União. Nada é explícito mas, da forma como são anunciados os
critérios, estas carreiras não se enquadrariam jamais.
Alguns
ministros passaram a ver a um passo da privatização as atividades de
regulação de toda a arrecadação do País, do orçamento, da advocacia
pública, das licitações, das ações de improbidade, da função das Forças
Armadas, da diplomacia.
Subjetividade seria o fio condutor da
administração pública. A cada quatro anos, o Brasil daria uma volta
sobre si mesmo e poderia ser desfeito, pelo novo governo, tudo o que
tivesse sido feito nos quatro anos anteriores.
A burocracia gera
corrupção, mas a ausência de burocracia também gera corrupção, foi um
dos argumentos que convenceram o presidente. A nova proposta terá que
harmonizar os princípios da eficiência, da moralidade, da legalidade, e
ser discutida por todos. O que não dá para fazer nesses últimos 30 dias
do ano. Portanto, a reforma do Estado já ficou para 2020.
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