STF já foi alvo de críticas por descumprir suas próprias resoluções colegiadas; diferenças em outros países incluem sessões fechadas, votos unificados e mais 'respeito à estabilidade'.
4 mai 2018
17h27
O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou aos holofotes ao decidir, nesta
quinta-feira, restringir o foro privilegiado no Brasil, em mais um caso
de grande impacto na vida política e social do país. A repercussão
dessas votações costuma gerar debates acalorados sobre a ação dos
magistrados, eventuais mudanças de votos destes e o modo como decidem
temas de grande interesse.
O cenário é semelhante em outras democracias? Como as cortes máximas
dos EUA e da Europa lidam com essas questões, e como tomam decisões
sobre temas delicados que moldam a vida de cidadãos e servem de base
para tribunais inferiores?
Cada país, incluindo o Brasil, tem uma corte superior de funcionamento
bastante específico, que segue não apenas sua Constituição, mas também
suas normas sociais, o que dificulta comparações. Mas é possível
refletir sobre pontos fortes e fracos dessas instituições, segundo
especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
As sessões, os votos e as decisões
Primeiro, é preciso entender o funcionamento desses tribunais. O STF
brasileiro acumula a tarefa de lidar com questões constitucionais (ou
seja, determinar se leis, normas, atos e decisões das diversas
instituições estão em acordo com a Constituição), de ser a última
instância da Justiça (fazer análise de recursos) e julgar casos
originários (o mensalão, por exemplo). Na prática, isso vinha levando o
STF a ser, também, um tribunal penal para políticos com foro
privilegiado - competência que a Corte americana, por exemplo, não tem.
A ampla gama de atribuições do STF é incomum às cortes máximas em
outros países, explica Nikolay Bispo, coordenador-executivo do Núcleo de
Justiça e Constituição da FGV Direito SP.
Nos EUA, a Suprema Corte é também a última instância da Justiça e
costuma aceitar julgar casos sobretudo relacionados a leis federais ou
tramitando em jurisdição federal (casos que acabam, como no Brasil,
tendo ampla repercussão na vida da população, em questões que vão desde
aborto até imigração ou saúde). Além disso, a Suprema Corte tem a
prerrogativa de escolher os casos que vai julgar - em geral, uma pequena
parcela das ações que chegam ao tribunal.
Na Europa, por sua vez, as cortes mais tradicionais são os tribunais
constitucionais, em geral limitando sua atuação a casos que digam
respeito a questões referentes à Constituição de cada país.
Outra questão é o acompanhamento das sessões. Enquanto, por aqui,
estamos acostumados a assistir ao vivo aos ministros lendo seus votos,
na Suprema Corte dos EUA "os juízes se reúnem a portas fechadas e
assessores não podem entrar nem mesmo para servir água", explica Diego
Werneck Arguelhes, professor-adjunto da FGV Direito Rio e especialista
em Direito Constitucional Comparado.
Werneck conta que os juízes discutem até que se alcance maioria, e o
"lado vencedor" na discussão fica incumbido de redigir um voto único, ou
seja, uma justificativa unificada para a decisão da Corte.
Depois que se designa um relator para redigir o voto unificado do lado
vencedor, este envia aos juízes que votaram com ele rascunhos de texto
(minutas) detalhando como cada aspecto da decisão será colocado em
prática.
"Essa é a maior diferença em relação ao sistema brasileiro: muitos
juízes discordam (dos argumentos) nas minutas, então, ocorre uma
negociação. 'Concordo com o voto se essa frase for retirada', pode dizer
um juiz. A ideia por trás disso é que cada palavra da decisão será
usada no futuro (para embasar decisões de Cortes inferiores)", diz
Werneck.
Pode até acontecer, continua Werneck, que o juiz relator americano
perca o apoio dos demais que votaram com ele se não conseguir redigir um
voto único que consolide o entendimento da maioria.
"É essa ameaça que força o juiz a negociar. E isso é uma diferença
decisiva: no Brasil, não há um momento de elaboração conjunta da
decisão, nem uma aprovação posterior do que o relator tiver feito",
explica o professor da FGV Direito Rio.
Aqui, dizem os especialistas, o acórdão publicado depois de uma decisão
colegiada do STF nem sempre traz uma visão unificada da decisão dos
ministros.
"Os 11 ministros podem chegar ao mesmo resultado mas por caminhos
distintos - um pode votar contra por achar que tal lei não tramitou
direito; o outro, por considerá-la inconstitucional. Nesse caso, como
saber qual será a jurisprudência?", questiona Luiz Guilherme Arcaro
Conci, professor de Direito Constitucional da PUC-SP.
Jurisprudência é justamente a orientação dada pela Corte Suprema para
os tribunais inferiores. Sem uma justificativa clara e unificada para a
decisão do STF, muitas vezes ela acaba sendo descumprida pelas demais
instâncias judiciais, prossegue Arcaro Conci.
Além disso, "existe o problema de que o próprio STF muda muito de
opinião", opina o professor, o que não incentiva as Cortes inferiores ao
seguir suas decisões.
Sessões secretas x abertas
E quanto às Cortes de países europeus? Segundo Arcaro Conci, as Cortes
Supremas de Itália e França se reúnem a portas fechadas. As de Alemanha e
Espanha têm parte de suas sessões abertas, mas não televisionadas, como
no Brasil.
A Corte alemã, por exemplo, só toma decisões em sessões secretas e, em
alguns casos, proíbe seus juízes de até mesmo publicarem eventuais votos
dissidentes (os que vão na contramão do que decidiu a maioria), em uma
tentativa de dar estabilidade ao processo e evitar que posições
individuais ofusquem a posição do tribunal, explica o Núcleo de Justiça e
Constituição da FGV Direito SP.
Para Werneck, as Cortes europeias em geral "se autolimitam", ou seja,
há menos mudanças de jurisprudência. "Não decidem cada caso como se
fosse único. Isso dá uma sinalização política e você consegue se
planejar a partir do que os tribunais disseram no passado."
Novamente, cada modelo tem pontos positivos e negativos: de um lado, a
maior visibilidade ao voto individual de cada ministro aumenta o que
especialistas chamam de
accountability
- a prestação de contas do juiz perante a sociedade. De outro, pode enfraquecer a posição conjunta da Corte.
Essa divisão de opiniões se estende à transmissão ao vivo das sessões
do STF. De um lado, muitos acham que traz transparência à Corte e
aproxima a população do trabalho dos ministros. Já críticos dizem que
gerou uma espetacularização do Poder Judiciário e aumentou a pressão
política e pública sobre os magistrados.
Outra diferença importante, segundo Arcaro Conci, é que o sistema
alemão, por exemplo, torna mais difícil que um caso chegue até a Corte
Constitucional - em comparação com o STF brasileiro, que acaba ficando
sobrecarregado.
Em palestras no Brasil em 2016, a juíza Sibylle Kessal-Wuf, integrante
da Corte alemã, afirmou que esta julga 7 mil processos ao ano, contra os
100 mil anuais do Supremo brasileiro. A juíza destacou ainda a
importância de o tribunal ficar em Karslruhe, a 750 km da capital
Berlim, para se distanciar das pressões políticas. "O órgão de controla
fica longe dos órgãos controlados. A distância só faz bem", disse
Kessal-Wuf, segundo o portal Conjur.
No Brasil, em contrapartida, "abriu-se espaço para que dezenas de
atores políticos possam levar casos ao Supremo, além do alto número de
pessoas com foro privilegiado (que são julgados por altas instâncias da
Justiça). Aqui, há uma tradição na advocacia de que 'em algum momento eu
conseguirei levar meu caso ao Supremo', o que é mais difícil de ocorrer
em outros países", diz Arcaro Conci.
Nesta quinta, porém, o Supremo decidiu por maioria que o foro
privilegiado se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e
em razão das funções desempenhadas, o que pode reduzir o volume de
processos do tipo.
Polêmicas
É importante destacar também que os EUA não estão livres de polêmicas e
debates acalorados com sua instância mais alta. Em janeiro de 2017, o
presidente Donald Trump mudou o equilíbrio da Suprema Corte - até então
com quatro juízes conservadores e quatro liberais - com a nomeação, para
um lugar vago desde o governo Obama, do juiz conservador Neil Gorsuch. O
tom mais conservador no tribunal gera agora especulações quanto à
possível reversão de decisões prévias e históricas da própria Corte,
como o direito ao aborto (autorizado em julgamento de 1973).
Aqui, parte dos ministros acabou conhecida por dar declarações de cunho
político ou por ter sua imagem associada, pelo público, a um ou outro
lado do espectro político. Nos EUA, isso também se manifesta: as
posições políticas dos juristas cotados para a Corte Suprema costumam
ser levadas em conta no momento da nomeação pelo presidente da República
(e, depois, na aprovação pelo Senado), justamente na tentativa de
influir no equilíbrio de forças do tribunal.
E, lá como cá, as nomeações de juízes costumam ser alvo de grande
polêmica. Muitos presidentes acabam sendo criticados por escolher juízes
que supostamente atendam seus interesses e preferências políticas. A
diferença é que, após serem nomeados, é muito raro que os juízes dos EUA
se manifestem em público sobre temas em julgamento.
Por fim, especialistas criticam o excesso de decisões monocráticas - de
um único ministro - tomadas pelo STF brasileiro. Mesmo havendo
deliberações coletivas da Corte sobre determinado tema, os ministros
depois muitas vezes acabam decidindo casos individuais sob a
interpretação que considerem adequada.
Cria-se, assim, o que críticos chamam de uma espécie de "loteria": o
destino do réu ou do processo pode depender do ministro sorteado para o
processo, causando insegurança para o processo jurídico como um todo.
Em março, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes concedeu habeas corpus a
quatro réus condenados em segunda instância. Já a ministra Rosa Weber,
por sua vez, negou habeas corpus à quase totalidade de casos do tipo que
analisou nos últimos dois anos.
"Um relator pode dar uma liminar ou pedir vista de um processo e mudar
completamente o jogo (do assunto em questão)", critica Werneck. "Nos EUA
e na Europa, decisões individuais não têm tanta proeminência, e em
geral os juízes têm de convencer seus pares. (...) E um caso não fica
dois ou três anos parado (por pedido de vista), porque existe uma
pressão para os ministros se manifestarem dentro de um prazo, ainda que
eles possam eventualmente pedir mais tempo."
Várias dessas questões foram respondidas pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso em artigo de 23 de fevereiro na
Folha de S. Paulo
.
"Diversas das críticas pontuais (...) correspondem a disfunções que eu e
outros colegas temos procurado combater. Muitas das críticas
institucionais, no entanto, são injustas. As instituições são como
autoestradas: passam por inúmeros lugares e tocam a vida de muitas
pessoas. Se alguém fotografar apenas os acidentes do percurso,
transmitirá uma imagem distorcida do que elas representam", afirmou
Barroso.
O ministro disse no texto que as decisões monocráticas são uma saída do
STF para lidar com o excesso de processos, e que o descumprimento da
Corte de suas próprias decisões prévias é "exceção, não regra". Ele
afirmou ainda que estão em curso debates internos no STF sobre alguns
desses temas e algumas propostas estão "em fase de amadurecimento".
O ministro defendeu, por exemplo, "um acordo de cavalheiros - que a
maioria já pratica - estabelecendo que nenhuma questão
institucionalmente relevante seria decidida por algum ministro
individualmente".
É possível mudar?
Caso haja um entendimento geral sobre uma necessidade de mudança no padrão de trabalho do STF, como levar isso a cabo?
Não é impossível, mas tampouco é fácil - ou de resultados garantidos, dizem os especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
Segundo Werneck, essas mudanças poderiam vir na forma de emendas
constitucionais votadas pelo Congresso - mas que poderiam acabar sendo
consideradas inconstitucionais pelo próprio STF - ou na forma de
alterações regimentais, caso a maioria do Supremo assim o decidisse.
Existem debates que abrangem desde limitar mandatos para os ministros
(que só saem da Corte aos 75 anos, idade da aposentadoria compulsória)
até restringir a competência do STF a questões constitucionais, mas está
longe de haver um consenso sobre esses temas.
Na opinião de Werneck, na ausência de um consenso dentro da Corte para
esse tipo de alteração, o mais provável é que mudanças graduais ocorram
com o passar do tempo, à medida que a composição do STF for mudando.
Para Arcaro Conci, mudanças seriam bem-vindas, mas é preciso levar em
conta o risco de se minarem as atribuições da Corte para beneficiar
agentes políticos, em vez de fortalecer o trabalho judicial.
"Não há problema algum em revermos certas práticas do Supremo - por
exemplo, o hábito (dos ministros) de manifestarem publicamente sobre os
processos. Mas o perigo é que essa revisão ocorra de modo pouco
democrático", diz.
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