Indo na contramão da onda punitivista, o juiz João Marcos Buch defende alternativas à prisão e políticas para garantir os direitos humanos
“Bandido
bom é bandido morto.” A frase virou uma espécie de mantra entre aquela
turma formada por cidadãos de bem e exaltada pelo grupo que ocupa, faz
pouco mais de seis meses, o comando do País. Uma pesquisa do Datafolha
realizada no começo deste ano mostra que 57% da população brasileira
acredita na tese de que violência se combate matando bandidos.
Ponto para os sanguinários: o punitivismo chegou ao poder em muitos
estados brasileiros e na Presidência da República. E nunca se prendeu
tanto no Brasil. No Paraná, houve um aumento de 334% nos primeiros
quatro meses de 2019 em relação ao mesmo período do ano passado. A
Secretaria da Segurança do Estado comemorou o resultado, apontando para
as ações promovidas pelas polícias.
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Pensar em segurança tem se associado diretamente em prender mais. Mas
não é o que pensa o juiz João Marcos Buch. O magistrado, que atua na
vara criminal de Joinville, tem se destacado no meio jurídico por pensar
em alternativas à prisão.
Além de penas alternativas, Buch tem colocado em prática o que a
Constituição deixa muito bem claro: a ressocialização dentro do cárcere.
Clube de leitura, ateliê de poesia, trabalho com arte, direito a banho
de sol, entre outras decisões que não passariam pelo aval da família
Bolsonaro. Tudo isso diminuindo o tempo de prisão para cada ação
realizada.
Buch atua como juiz há 25 anos, mas não pensou sempre como pensa
hoje. Teve um tempo em que prendia muito. Mas percebeu que, na prática,
isso só aumentava a violência. Foi repensando sua atuação como juiz,
mudando a maneira de trabalhar e hoje defende o fim das prisões. “Não
funcionam e não são recomendadas para ninguém”, defende.
Confira a entrevista completa:
CartaCapital: Órgãos públicos têm comemorado o aumento de
prisões. O que o senhor pensa sobre essa ideia de quanto mais se
prende, mais seguro o Brasil está? Qual a visão do senhor sobre o
sistema penal?
João Marcos Buch: Se o objetivo é viver em harmonia e
alcançar a felicidade em uma perspectiva aristotélica, a felicidade
passa pela sensação de segurança. A sensação de que você possa andar
pelas calçadas da sua cidade sem medo ser assaltado, sem as mulheres
serem violentadas, entre outras coisas. Então as pessoas precisam
superar esse sentimento, esse medo da violência. Uma forma muito simples
de acreditar que será superado é através da prisão de outras pessoas.
Eu compreendo esse sentimento pulsante na sociedade de querer que todos
vão para cadeia, mas precisamos esclarecer para elas que isso não
resolve o problema. O Estado e as instituições deveriam esclarecer e
explicar para as pessoas de que forma vamos superar a violência de fato.
O grande problema que eu vejo na sociedade brasileira, e boa parte
dos países do mundo, principalmente ocidentais, é que existem muitos
governos que têm uma linha de pensamento como dessas pessoas que se
sentem amedrontadas na rua.Você ouve autoridades falando de políticas
públicas de recrudescimento das penas e de ações policiais, como se as
polícias tivessem que ir para ruas combater uma guerra. Isso faz com que
as instituições de segurança pública passem a pensar dessa forma
também. Então a função do policial é trazer uma sensação de paz e de
justiça.
A ideia que está impregnando as instituições de segurança pública é
equivocada, uma ideia que não é o que a Constituição prevê. Uma ideia de
que as policias estão aí para combater o crime e para trazer paz para
todos, quando na realidade as polícias estão aqui para trazer harmonia e
proteger a todos, sem distinção. O que eu percebo muito nessas
instituições é essa ideia de que vamos comemorar pessoas presas, pois
esse é o nosso trabalho, levar paz à população. Quando vemos que
claramente isso não está trazendo paz para a população, muito pelo
contrário, está aumentando a violência.
CC: O senhor acredita que isso reflete um pensamento higienista da sociedade?
JMB: Sim, um pensamento higienista. Um pensamento
que quer fora da sociedade todos aqueles que pensam e vivem em uma
realidade diferente. Então como vamos fazer isso? Retirando essas
pessoas e neutralizando-as dentro das prisões. As pessoas não têm muita
consciência e noção do que estão falando e acabam reproduzindo uma linha
ideológica higienista. Agora, isso ser dito por autoridades, por
governantes, é algo muito grave, porque é uma espécie de cinismo. É algo
difícil de aceitar.
CC: O senhor acredita que prisão seja a solução?
JMB: Não, absolutamente não.
CC: Por quê?
JMB: Já condenei muitas pessoas a 50, 60, 70, 100
anos por tráfico, sequestro, latrocínio. Acredito que a Constituição
deve ser o norte de um juiz, mas entendo que as prisões têm apenas
piorado a violência, porque percebemos que a pessoa vai presa e acaba se
filiando a alguma facção criminosa. Essa atitude é perfeitamente
compreensível. Alguém que vai preso e precisa de um colchão para dormir,
e que não tem esse colchão, vai recorrer a quem? A uma facção. E aí
quando essa pessoa sair, vai sair ainda mais conflituosa, mais revoltada
com todo o sistema. Então vai sim colocar fogo em ônibus, vai pagar as
dívidas que tem com a facção e isso vai ser algo natural.
Por exemplo: quando um comerciante tem sua vitrine arrombada e seus
produtos roubados, é natural que queira que o responsável seja preso.
Porém, se tiver a consciência que a prisão dessa pessoa fará com que, no
futuro, ela possa voltar com uma arma na mão e, além de quebrar a
vitrine, poderá matar o próprio comerciante, vai começar a repensar essa
ideia de prisão para todos os casos. Aí entram políticas públicas de
distribuição de riquezas e de ofertas concretas de oportunidades para
todos.
O simples fato de a pessoa ser pobre não significa que ela vai
cometer um crime, ou ser violenta, mas um jovem dessa camada está muito
suscetível a praticar esse tipo de ato. E um dia ser preso e entrar na
cadeia. Esse ciclo vicioso vai fazer com que ele mate e morra.
CC: Quando o senhor percebeu que colocar as pessoas na cadeia não resolvia o problema da violência?
JMB: Quando comecei a atuar no sistema de justiça
criminal. Comecei a pensar sobre o meu trabalho e o que eu estava
fazendo. O que significa o fato de eu condenar uma pessoa a um ano, a
cinco anos, a 10 anos de prisão. Um fator determinante, que me fez
clarear as ideias, foi uma especialização, em 2005, com o professor
Juarez Cirino, no Instituto de Criminologia e Politica Criminal. Ali,
comecei a compreender um pouco mais sobre o fenômeno da violência
urbana.
CC: E em qual momento tivemos um incentivo à prisão no Brasil?
JMB: Tenho acompanhado a involução do sistema
prisional e percebo que efetivamente esse acréscimo veio desde os anos
90. Mas temos que reconhecer que foi no governo do PT, do presidente
Lula, que houve um acréscimo muito maior de pessoas presas,
especialmente em 2006 com a lei antidrogas. Ela trouxe um endurecimento
das penas e um número muito maior das pessoas passaram a ser presas como
traficantes. As mulheres tiveram uma taxa de crescimento
extraordinário.
A partir do segundo governo Dilma houve uma mudança de perspectiva
sobre o superencarceramento. Então começaram a se desenvolver políticas
públicas, a partir do departamento penitenciário nacional, do Ministério
da Justiça, de alternativas penais e de tentativa de acabar com a
cultura do encarceramento em massa. Grupos de trabalhos foram feitos,
diretrizes começaram a ser formadas, mas não deu tempo. Dilma foi sacada
do poder, Temer paralisou todo esse projeto. E agora o governo
Bolsonaro eliminou tudo.
CC: Quais são as alternativas penais e em quais casos podemos aplicar?
JMB: Sempre que falamos de alternativas penais,
estamos falando de política de redução de danos. De tentar dar novas
oportunidades para essas pessoas, para que elas saiam do ciclo de
violência. E quais seriam essas alternativas penais? Começando nas
audiências de custódia. Em vez de converter uma prisão em flagrante em
prisão preventiva, o juiz deveria recorrer à rede de atenção oferecida
pelo município. E manteríamos no sistema prisional apenas aquelas
pessoas que realmente colocam em risco a vida de outras pessoas. Para
essas a prisão seria recomendável? Entendo que não, pois a prisão não é
recomendada para ninguém. Essas alternativas deveriam ser trabalhadas.
As respostas não são simples. Se fossem simples já teriam sido
resolvidas. As respostas que o governo federal e muitos estaduais estão
dando são simplórias.
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CC: O Brasil tem estrutura para essas penas alternativas?
JMB: É uma questão de cálculo matemático. Se nós
temos pessoas presas, significa que essa pessoa está sendo mantida pelo
Estado e ela precisa se alimentar, se vestir, se limpar, entre outras
necessidades. Existe um custo alto para manter essa pessoa presa. Esse
custo é mais que 3 mil reais por mês. O custo de manter uma pessoa
presa é muito maior do que manter uma pessoa solta com alternativas
penais. As tornozeleiras eletrônicas são um exemplo disso. Em vez de
deixar trancado em uma cela sendo sustentado pelo Estado, podemos
colocar esses dispositivos nos condenados e gastaríamos apenas 250 reais
por mês. É uma saída necessária para a nossa superlotação de presídios.
CC: A Constituição garante essas penas alternativas?
JMB: Nossa Constituição garante muito mais.
Ela não é de colocar o policial em guerra, nem o juiz como um herói. A
nossa Constituição coloca o juiz como uma pessoa, membro de um poder.
Ouço colegas falando que a pessoa está presa porque mereceu, mas a
Constituição não cita a palavra merecer. Ela faz parte de todos os
tratados sobre direitos humanos. Um juiz não pode passar por cima para
colocar em prática o que acha que é justiça.
CC: Qual a opinião do senhor sobre o projeto anticrime apresentado pelo ministro da Justiça Sérgio Moro?
JMB: Tenho estudado muito sobre o embrulho anticrime de Moro. Ele
não passa por qualquer crivo acadêmico. Não passa no primeiro ano do
curso de Direito, pois é um projeto atécnico. Tem erros graves de
ortografia e português. Tem erros primários. Prevê algumas coisas que o
STF já decidiu que são inconstitucionais. Legitima a polícia para matar,
e são as pessoas mais pobres e vulneráveis que vão morrer. É um perigo.
Espero sinceramente que o Congresso arquive esse embrulho anticrime. O
preço que vamos pagar é muito alto e vamos ser responsabilizados no
futuro, assim como julgamos hoje em dia os juízes nazistas e fascistas.
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