Com três vezes mais energia do que a gasolina, o hidrogênio tem a capacidade de se tornar uma fonte limpa para o transporte de carga e para a indústria; Brasil pode ser um dos principais produtores
Renée Pereira
23 de novembro de 2021 | 05h00
Elemento mais abundante do universo, o hidrogênio virou a última fronteira energética para um futuro neutro em gás carbônico (CO2) e já movimenta bilhões de dólares entre empresas e investidores. Um levantamento feito pela consultoria McKinsey mostra que, até julho, havia cerca de 359 projetos para a produção de hidrogênio verde em grande escala no mundo, o que somava US$ 150 bilhões em investimentos. Mas esses números mostram apenas o começo de uma revolução no mercado global de energia, que teria o Brasil como um dos líderes.
Embora possa ser encontrado em grande quantidade, o hidrogênio na Terra só existe na combinação com outros elementos. Ele está na água e nos hidrocarbonetos, como gás, carvão e petróleo. Para consegui-lo na forma pura, é preciso separá-lo. Esse processo já é conhecido no mundo na produção do hidrogênio marrom, cinza e azul, que usam combustíveis fósseis - as cores indicam o tipo de combustível é usado (mais informações no quadro abaixo). Atualmente são produzidos mais de 60 milhões de toneladas por ano do produto para refinarias, siderúrgicas e fabricantes de amônia, entre outros.
A revolução, no entanto, vem do hidrogênio verde, considerado o combustível mais limpo do mundo. Não gera gases poluentes nem durante a combustão nem durante a produção. A aposta do mundo para limitar o aquecimento global até 2050 está num método criado há quase 200 anos pelo químico e físico britânico Michael Faraday. Trata-se da eletrólise da água, que separa o hidrogênio do oxigênio por meio de uma corrente elétrica. Para ser considerado verde, a energia elétrica tem de ser de uma fonte totalmente renovável, como a eólica e a solar - ainda não está claro se as hidrelétricas seriam consideradas verdes por causa do impacto ambiental durante a construção.
A solução é vista como a principal alternativa ao petróleo – até mesmo para as petroleiras. Para não ficar para trás, a maioria delas tem estudos e projetos para a produção de hidrogênio verde. Na BP, por exemplo, o presidente da multinacional britânica, Mario Lindenhayn, afirma que o desenvolvimento do combustível está em estudo em sete centros da companhia, na Europa e na Austrália. Shell e Petrobras também seguem o mesmo caminho, assim como as empresas de energia elétrica e terminais portuários, que estão de olho nas exportações futuras.
A multinacional alemã Thyssenkrupp é outra companhia ativa no desenvolvimento de projetos mundo afora para produção do hidrogênio. A empresa é fornecedora de tecnologia e constrói toda a planta de eletrólise para a quebra das moléculas. A companhia participa de projetos na Alemanha, no Canadá, na Austrália e na Arábia Saudita. No Brasil, alguns negócios em discussão devem ser fechados nos próximos meses, diz o presidente do grupo para América do Sul, Paulo Alvarenga.
Como é feito o hidrogênio verde
Passo 1
Os eletrodos atraem para si os íons de carga oposta e fazem a separação do hidrogênio da água do oxigênio
Na forma gasosa, o hidrogênio precisa ser armazenado de forma apropriada em botijões, por exemplo. O produto é altamente inflamável
A efervescência no setor foi captada pelo banco de investimento Goldman Sachs, que calcula que até 2050 o mercado de hidrogênio no mundo ultrapassará US$ 11 trilhões. Tamanha euforia se deve ao potencial do produto. O hidrogênio tem três vezes mais energia do que a gasolina com a vantagem de ser uma fonte limpa. “Essa é uma tendência sem volta. O que está em jogo não é a competição (de empresas e países), mas a sobrevivência mundial”, diz o coordenador geral do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), da UFRJ, Nivalde de Castro.
Ele lembra que no ano passado a Alemanha já havia anunciado leilões para compra de hidrogênio verde. O objetivo é se antecipar e garantir o fornecimento do produto. Nessa corrida, o Brasil pode ser um dos grandes beneficiados. Com amplo potencial para geração eólica e solar, o País teria capacidade de produzir hidrogênio verde para consumo próprio e para exportação. JF Diorio/Estadão
Segundo o sócio da McKinsey João Guillaumon, o Brasil pode se tornar um dos líderes mundiais na produção do hidrogênio verde. Cálculos da consultoria mostram que até 2040 a receita com esse combustível limpo ficará entre US$ 15 bilhões e US$ 20 bilhões, sendo 70% do montante no mercado doméstico. Entre as principais aplicações estão o uso no transporte de carga e na siderurgia, por exemplo. “Essa é a solução mais eficaz para a indústria que hoje tem dificuldade na descarbonização”, completa o sócio sênior da McKinsey, Wieland Gurlit, um dos autores do estudo “Hidrogênio verde: uma oportunidade de geração de riqueza com sustentabilidade, para o Brasil e o mundo.
Segundo ele, para o País conseguir se aproveitar desse mercado, será necessário investir algo da ordem de US$ 200 bilhões para formar a indústria e produzir o hidrogênio. O volume de energia elétrica terá de ser elevado em 180 gigawatts (GW) apenas com renováveis. Isso significa dobrar a capacidade atual da matriz elétrica brasileira, que hoje inclui hidrelétricas, térmicas, eólica, solar e nuclear. A fonte eólica, por exemplo, tem cerca de 20 mil megawatts (MW) instalados e a solar, 10 mil MW. Ou seja, para pensar na produção de hidrogênio verde é preciso expandir exponencialmente essas fontes de energia.
Produção em larga escala precisa superar desafios
Apesar de ser a grande aposta do mundo, a produção em larga escala do produto terá de superar uma série de desafios. O uso intensivo da energia é um deles. Uma planta de eletrólise de 90 MW, por exemplo, produz 11.100 toneladas de hidrogênio. E estamos falando em uma demanda de milhões de toneladas. Só a Alemanha quer comprar inicialmente 5 milhões de toneladas.
Essa questão da energia é um dos temas estudados pela professora do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos Lucia Helena Mascaro. Ela trabalha em tipos de catalisadores capazes de reduzir o consumo de eletricidade no processo de separação do hidrogênio. A platina, diz a professora, seria um bom material, mas é caro e escasso. “Estamos buscando metais que tenham comportamento similar à platina, mas que sejam abundantes e baratos. Estamos avançando”, afirma. Entre os produtos que têm apresentado boa performance estão ligas de níquel, sulfetos e fosfetos. “Hoje, a demanda de energia para produzir 2,4 milhões de toneladas seria de 3.600 terawatts-hora. Isso significa consumir toda a energia produzida na Europa na produção de hidrogênio durante um ano.”
“Estamos buscando metais que tenham comportamento similar à platina, mas que sejam abundantes e baratos, para serem usados como catalisadores que reduzam o consumo de energia na produção do hidrogênio”
Para Lucia Helena, outro desafio é a segurança do produto, pois é altamente inflamável e explosivo. Como um dos usos esperados para o hidrogênio é no transporte, o armazenamento tem de ser feito com muito cuidado. Isso leva à questão do transporte do hidrogênio, sobretudo para exportar, destaca o também professor da Universidade Federal de São Carlos Ernesto C. Pereira.
Um dos métodos avaliados pelo mercado – por ser mais maduro e promissor – é transformar o hidrogênio em amônia e transportá-la em navios por grandes distâncias. No destino, a amônia verde pode ser usada diretamente na indústria, como na fabricação de fertilizantes, ou transformada novamente em hidrogênio. O produto também pode ser transportado na forma de gás comprimido ou liquefeito. Na Europa, há expectativa de que seja desenvolvida uma rede de dutos para transporte de hidrogênio gasoso.
Mas há outro desafio: baratear o custo do produto. Hoje o preço do quilo do hidrogênio cinza é US$ 2. O verde está entre US$ 5 e US$ 8. O objetivo é que, até 2040, esse valor esteja abaixo de US$ 1. No Brasil, segundo a Mckinsey, o preço do quilo estaria em US$ 1,5 em 2030. “O hidrogênio será como o computador, o notebook e o telefone. Quando foram lançados, eram (produtos) apenas para uma elite e hoje estão popularizados. A massificação da produção vai reduzir os preços”, diz Paulo Alvarenga, da ThyssenKrupp.
Portos brasileiros querem virar central de hidrogênio e exportar produto
De olho no mercado internacional, os portos brasileiros já se articulam para criar centrais de distribuição de hidrogênio com a participação de empresas estrangeiras. O movimento ainda está em fase de estudos e de conclusão de acordos entre Estados, portos e empresas, mas tem potencial para deslanchar uma série de projetos nos próximos anos, sobretudo por causa do potencial eólico e solar.
O Porto de Suape, em Pernambuco, assinou um memorando de entendimento com a multinacional francesa de energia Qair Brasil para a construção de uma planta de eletrólise de água num total de US$ 3,8 bilhões de investimentos – a empresa investe em energia renovável no Nordeste. O projeto já tem terreno definido para as obras e está em fase de engenharia, diz o secretário de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, Geraldo Julio.
“Essa é uma grande oportunidade para o Brasil, que pode se tornar um fornecedor para a Europa. Nesse cenário, o Nordeste aparece com vigor para novos investimentos”
Segundo ele, a expectativa é a de que a construção do empreendimento tenha início em 2022. A previsão é de que um primeiro módulo seja concluído em 2025. O projeto completo terminaria em 2030. “Essa é uma grande oportunidade para o Brasil, que pode se tornar um fornecedor para a Europa. Nesse cenário, o Nordeste aparece com vigor para novos investimentos”, diz o secretário de Pernambuco, que afirmou que negocia com outras empresas a instalação de mais plantas para produzir hidrogênio.
A companhia francesa também tem acordo com o Porto de Pecém, no Ceará , outro candidato a virar um centro de hidrogênio no País. O projeto prevê o uso de energia elétrica gerada pelo Complexo Eólico Marítimo Dragão do Mar e de um parque de energia eólica offshore (nas águas do mar), segundo o complexo portuário. O investimento total previsto é de US$ 6,95 bilhões.
O porto tem acordo com outras empresas para desenvolver projetos de menor porte, como o da portuguesa EDP. O empreendimento faz parte do programa de Pesquisa e Desenvolvimento da UTE Pecém, instalada em São Gonçalo do Amarante (CE). A planta de eletrólise será abastecida por uma usina solar de 3 MW. O objetivo é criar um guia com análises e cenários para aumentar a escala da produção do hidrogênio, diz a empresa.
Ainda sem acordos firmados, o Porto do Açu, no Rio de Janeiro, também corre para fechar parcerias. O complexo, da empresa Prumo, chegou a assinar um memorando de entendimento com a Fortescue Future Industries para desenvolver projetos industriais verdes baseados em hidrogênio no Estado. Mas, por enquanto, os planos não foram adiante.
O grupo decidiu iniciar um novo estudo sobre a produção de hidrogênio. “Estamos conversando com investidores e empresas para fazer um megaestudo”, diz o diretor de Desenvolvimento de Negócios da companhia, Mauro Andrade. Segundo ele, o objetivo é definir modelos econômicos e de engenharia. “O Brasil consome hoje 400 mil toneladas de hidrogênio cinza (poluente). Com o produto renovável, podemos contar uma nova história.”
Ele explica que, com o hidrogênio e a possibilidade de transformá-lo em amônia, o País teria capacidade de tornar viável uma indústria de fertilizantes. Hoje, apesar do tamanho do agronegócio brasileiro, boa parte do produto usado é importado.
‘Não adianta ter programa ambicioso e não conseguir tirar do papel’, diz diretor de planejamento energético
De olho no potencial do mercado, o governo federal lançou em agosto deste ano o Programa Nacional de Hidrogênio (PNH2), que tem o objetivo de mobilizar setores público e privado, academia e órgãos internacionais para acelerar o desenvolvimento de um mercado de hidrogênio em larga escala e competitivo. Foram definidos seis eixos de trabalho: o fortalecimento das bases tecnológicas, capacitação de mão de obra, planejamento energético, legislação, demanda e competitividade e cooperação internacional.
Mas a estratégia brasileira não está concentrada apenas no hidrogênio verde. Segundo o diretor da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) Giovani Machado, a ideia é focar no hidrogênio de baixo carbono azul (onde há a captura de boa parte do carbono) e turquesa (produzido pela pirólise do gás). Segundo ele, esses tipos de produtos são mais competitivos do que o verde, que ainda custa muito caro. “Não estamos atrasados, mas não adianta ter planos ambiciosos e não conseguir tirá-lo do papel. Isso não é uma corrida de 100 metros, mas uma maratona”, disse ele. A EPE é uma empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia e faz estudos e pesquisas para o planejamento do setor energético brasileiro.
“Acreditamos no hidrogênio verde, mas temos etapas a seguir para que esse mercado funcione de forma adequada”
Ele diz que tem acompanhado os anúncios de projetos privados feitos por grandes empresas e conversado com os investidores. Mas, na situação atual do País, não é possível dar nenhum tipo de subsídio para o desenvolvimento dessa indústria. Ele destaca que já há incentivo para as fontes renováveis e linhas de financiamento disponíveis.
O executivo afirmou que uma das frentes que o governo vai trabalhar é na criação de um site que reúna todas as legislações que de alguma forma estejam relacionadas com a produção do hidrogênio. Por exemplo, já há isenção de tributos na compra de eletrolisador, diz ele. “Queremos diminuir a assimetria de informações e esclarecer as dúvidas dos investidores.”
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