Brasil regride nas armas, no trânsito, no ambiente, nos costumes,
até no bom senso
Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
07 de junho de 2019 | 03h00
O presidente Jair Bolsonaro anuncia o fim da “indústria da multa”,
mas pode estar reforçando a “indústria da morte” com a obsessão
pelas armas, o estímulo para converter carros em armas e a sensação
de que, ao virar presidente, está livre para tornar suas convicções
pessoais em agenda de Estado. Os papos com filhos e amigos agora
viram MPs, decretos, projetos de lei. Danem-se especialistas, dados
e pesquisas científicas.
Para o presidente da Comissão da Reforma da Previdência, Marcelo
Ramos (PL), ele “não tem noção de prioridade e do que é importante
para o País”. Além de “flexibilizar” a posse e o porte de armas,
Bolsonaro levou orgulhosamente ao Congresso um projeto leniente
com infratores e infrações de trânsito – um grande assassino no
mundo. No Brasil, foram 35,3 mil mortes e 180 mil internações só
em 2017.
Japão, Canadá, França e Espanha reduziram a mais da metade as
mortes no trânsito. Como? Com educação, abordagem policial e
penas duras para infratores. E o Brasil? Se depender do presidente
da República, o Brasil vai na contramão, a mais de 100 km/h. Os
radares estão ameaçados e os maus motoristas poderão cometer o
dobro das barbaridades até perder a carteira, não terão de se
preocupar com cadeirinhas e estarão livres de comprovar que
não usaram algum tipo de droga, mesmo que dirijam ônibus e
caminhões.
Não satisfeito com a reação, o presidente engatou a segunda e disse
que, por ele, os pontos para cassar a carteira não deveriam ser “só” 40,
mas 60. Divirtam-se os que pisam no acelerador, avançam o sinal,
estacionam em calçadas e vagas de idosos e deficientes.
É possível que a base eleitoral de Bolsonaro ache tudo isso o maior
barato, mas esse barato pode custar muito caro – em vidas humanas,
em lesões irreversíveis e em custos para o sistema público de saúde,
já tão depauperado.
Essas medidas, porém, combinam com a leniência de Bolsonaro em
outras áreas, como Meio Ambiente. Pescar em áreas protegidas pode,
desmatar fica mais fácil, transformar santuários em “Cancúns” está
no horizonte, a carreira de agente ambiental corre risco. Ambientalistas
são tratados como esquerdistas que atravancam o progresso, um perigo
para o Ocidente.
Direitos Humanos? Deve ser coisa de gente que estuda Sociologia,
Filosofia, Antropologia, vistas como inutilidades que alimentam a
“balbúrdia” nas universidades públicas, aliás, elas próprias alvo
da tesoura ideológica implacável do novo governo. E temos a ministra
Damares e o chanceler Araújo, com o guru Olavo de Carvalho,
pairando sobre tudo e todos.
E Bolsonaro tinha de declarar apoio ao craque Neymar, acusado de
estupro e agressões por uma moça? “Ele está em um momento difícil,
mas acredito nele. Neymar, hoje à noite estamos juntos!”, avisou o
presidente, antes de ir ao jogo Brasil-Catar e visitar o jogador num
hospital em Brasília.
Não se deve demonizar nem santificar Neymar, mas vai... numa mesa
de bar, qualquer um pode achar que Neymar é culpado ou inocente e
que a moça é isso e aquilo, mas um presidente da República? Ele
assistiu à cena? Ouviu Neymar? A moça? Teve acesso aos autos? Tem
informação de bastidores?
Verdade ou não, a mensagem subliminar do presidente é que ele não
acha nada demais um estuprozinho daqui, uma agressãozinha dali.
Afinal, minimizou a gravidade da situação, assumiu sem pestanejar
a versão do craque e desqualificou a moça. Homens sempre têm razão.
Espantado com as mudanças propostas por Bolsonaro, o criador e
presidente por dez anos da Frente do Trânsito da Câmara, ex-deputado Beto Albuquerque (PSB), acusa: “O Brasil está na contramão, ou andando
de marcha a ré”. Não é só no trânsito, deputado!
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