terça-feira, 13 de novembro de 2018

O sombrio prognóstico das medidas de Bolsonaro para a segurança


Futuro Governo

por Rodrigo Martins — publicado 13/11/2018 00h50, última modificação 12/11/2018 12h41
Ao incentivar civis a se armarem e dar carta-branca para a polícia matar, presidente eleito e seus aliados preparam um “banho de sangue”, segundo o NY Times
Mauro Pimentel/AFP
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Com um número de vítimas superior ao de civis mortos em conflitos no Afeganistão, o Rio é a prova do fracasso de uma política pautada na vingança
"No Brasil, previsão de banho de sangue.” A manchete estampada na capa da edição internacional do New York Times de 2 de novembro, Dia de Finados, atraía o leitor para uma longa reportagem assinada pelos correspondentes Ernesto Londoño e Manuela Andreoni.
No texto, o jornal norte-americano, um dos mais influentes do mundo, trazia sombrios prognósticos para o Brasil após a vitória de Jair Bolsonaro, eleito com a promessa de esmagar as facções criminosas, oferecendo à polícia carta-branca para matar bandidos.
“O tipo de abordagem draconiana que ele prometeu já é empregado há meses no Rio de Janeiro, onde militares supervisionam a operação de segurança desde fevereiro. Isso levou a um aumento no número de mortes cometidas pelas autoridades e a um debate sobre se a tática está funcionando”, observam os autores.
De fato, não há o mais pálido sinal de refluxo da violência após a intervenção militar. De janeiro a setembro deste ano, o estado registrou 5.197 mortes violentas, alta de 4% em relação ao mesmo período de 2017, atesta o Instituto de Segurança Pública, autarquia do governo fluminense responsável por compilar as estatísticas de violência. Escandalizado, o NYT acrescenta: o número é muito superior aos 3.438 civis mortos em conflitos no Afeganistão no ano passado.
Quase um quarto desses assassinatos está na conta da polícia ou do Exército. Até setembro, foram registradas 1.181 mortes decorrentes de intervenções das forças de segurança, número 44% maior que o do ano anterior. E o Rio é apenas o décimo estado mais violento do Brasil. 
Em todo o País, foram registradas 63.880 mortes violentas intencionais em 2017, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para o New York Timeso assustador nível de violência pesou na decisão dos eleitores. “Juntamente com Bolsonaro, outros políticos que prometem caçar criminosos foram recompensados nas urnas, preparando o cenário para um período de intenso derramamento de sangue”, prevê o jornal.
Na avaliação de Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum e pesquisadora da Fundação Getulio Vargas, não há qualquer exagero na análise do diário americano. “A perspectiva é realmente muito ruim. Muitos associam Bolsonaro ao Donald Trump, mas a comparação me parece descabida. Em primeiro lugar, porque os EUA têm instituições democráticas sólidas, com freios e contrapesos, o que limita a atuação do presidente.
Além disso, do ponto de vista programático, Bolsonaro está mais próximo do filipino Rodrigo Duterte, que igualmente não respeita os direitos humanos e elegeu-se com esse discurso de que ‘bandido bom é bandido morto’”, afirma a especialista a CartaCapital. “Com o aumento da letalidade policial, incentivada pelo presidente eleito e por governadores aliados, o banho de sangue é iminente.”
Sempre na cola de Bolsonaro e com o mote de campanha “polícia na rua e bandido na cadeia”, o tucano João Doria prometeu, logo após a confirmação de sua apertada vitória em São Paulo, que pagará “os melhores advogados” para defender policiais que matam suspeitos em serviço. 
Ex-juiz federal e eleito para o Palácio da Guanabara com mais de 60% dos votos válidos, Wilson Witzel antecipou que vai pedir a presença dos militares no Rio de Janeiro por mais dez meses após o término da intervenção federal, além de anunciar a intenção de contratar atiradores de elite para abater criminosos armados com fuzil, mesmo fora de situações de confronto. “A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro”. Espera-se que os policiais não confundam guarda-chuvas com fuzis, como já ocorreu no passado.
Durante a campanha, Bolsonaro prometeu “entupir a cadeia de bandidos”. Em recente entrevista à Band, o presidente eleito esclareceu não se tratar de figura de linguagem. “Ninguém quer torturar ninguém dentro da cadeia. Mas, se não tiver recursos, amontoa”, disse ao apresentador José Luiz Datena.
O novo governador do Rio tampouco se preocupa com a superlotação dos presídios, onde as facções criminosas costumam arregimentar novos soldados. “Não vai faltar lugar para colocar bandido. Cova a gente cava, e presídio, se precisar, a gente bota navio em alto-mar”, discursou Witzel, sob aplausos, na sede da Associação de Oficiais Militares Estaduais do Rio.
“Os governadores são chefes das polícias estaduais, não deveriam ser tão irresponsáveis em dar declarações como essas. Estamos falando de forças de segurança que já matam demais e que possuem organização militar, na qual o respeito à hierarquia é um valor muito caro. 
Para o soldado que está na ponta, isso é praticamente uma ordem”, alerta Bueno. “Se os policiais seguirem essa orientação, eles também ficarão mais vulneráveis aos ataques e revides de criminosos. A violência tende a se retroalimentar nessa perversa lógica de vingança.”
As ameaças não residem apenas no discurso. No plano de governo registrado na Justiça Eleitoral, Bolsonaro resume as suas propostas para combater a criminalidade em um único slide de PowerPoint: a genérica intenção de ampliar investimentos em tecnologia e inteligência, a promessa de acabar com a progressão de penas e as saídas temporárias dos presos, a redução da maioridade penal para 16 anos (embora o novo presidente tenha se manifestado a favor de diminuir ainda mais, para 14 anos), a facilitação do porte de armas por civis, a regulação do chamado “excludente de ilicitude”, para garantir “retaguarda jurídica” aos policiais que matam em serviço, a tipificação das ocupações de imóveis rurais e urbanos como terrorismo, a retirada de “qualquer relativização da propriedade privada” da Constituição e um redirecionamento da política de direitos humanos, “priorizando a defesa das vítimas de violência”. É tudo.
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Não há qualquer indício de que a facilitação do porte de armas por civis seja capaz de reduzir a violência. As evidências científicas apontam, na verdade, para a direção oposta. Com quase 64 mil mortes violentas registradas em 2017, o Brasil poderia ter um número de assassinatos ainda maior, até 12% superior, caso não estivesse em vigor o Estatuto do Desarmamento, revela um estudo conduzido por Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea.
Pior: cada ponto porcentual de aumento da quantidade de armas em circulação nas ruas representa um crescimento de 2% nas taxas de homicídios.
Nos últimos anos, a procura por revólveres e pistolas cresceu vertiginosamente no Brasil, assim como a demanda em escolas de tiro. Somente no ano passado foram registradas 33.031 novas armas por civis, dez vezes mais que em 2004, primeiro ano de vigência do Estatuto do Desarmamento.
Em meio à euforia causada pela perspectiva de vitória de Bolsonaro, as ações da Forjas Taurus chegaram a ter uma valorização de 1.000% de janeiro a outubro, apesar de a empresa acumular prejuízos desde 2013. O valor dos papéis só começou a despencar após o presidente eleito confirmar a intenção de “acabar com o monopólio” da fabricante de armas, atraindo companhias estrangeiras para atuar no País.
“A maior disponibilidade de armas de fogo faz diminuir o seu preço, inclusive no mercado ilegal, permitindo o acesso da mesma ao criminoso desorganizado. Segundo a CPI das Armas no Rio, quase 18 mil armas foram extraviadas ou roubadas de empresas de segurança privada em dez anos.
Além disso, as chances de um indivíduo armado sofrer homicídio, ao ser abordado por criminosos, é 56% maior”, afirma Cerqueira. “Possuir um revólver não aumenta a segurança da família. Ao contrário, as chances de você ser vítima de homicídio ou de cometer suicídio são cinco vezes maiores.”
O sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, engrossa o coro dos críticos. “Cerca de um terço dos homicídios no País ocorre por razões pessoais, como brigas domésticas e discussões no trânsito.
Com as pessoas armadas, é grande a probabilidade de esses conflitos serem resolvidos à bala”, alerta. De acordo com ele, os brasileiros ainda não perceberam que as propostas de Bolsonaro acenam para uma omissão ainda maior do governo federal na área. “Em vez de assumir parte da responsabilidade, ele incentiva a população a ser armar e garantir a própria defesa.”
Da mesma forma, sobram evidências de que a redução da maioridade penal seria inócua para prevenir mortes. Dos 26,8 mil adolescentes que cumprem medidas privativas de liberdade, 10% são homicidas, atesta o último Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, divulgado no início do ano. Sete em cada dez cometeram atos infracionais de menor gravidade, como roubo e furto (46%) ou tráfico de drogas (24%).
“Aumentar o tempo de internação, sem distinguir delitos menos graves de crimes contra a vida, só aumentará o contingente de jovens que, daqui a dez  anos, voltarão ao convívio social sem qualificação profissional e com enorme propensão a reincidir, se não acabarem recrutados por facções criminosas antes mesmo de sair”, observa Bueno.
“Para diminuir o número de mortes, seria muito mais efetivo valorizar a investigação criminal. Recentemente, monitoramos 1.195 casos de homicídio no País e, após um ano, somente 23% deles haviam sido esclarecidos pela polícia. No Rio, a taxa era de 8%.”
Bolsonaro nem sequer disfarça a intenção de criminalizar os movimentos sociais. Há tempos, ele se refere a lideranças dos sem-terra e dos sem-teto como “terroristas”, razão pela qual pretende incluir a ocupação de propriedades rurais e urbanas no rol de condutas tipificadas pela Lei Antiterror, sancionada por Dilma Rousseff em 2016, durante a organização das Olimpíadas.
Embora todas essas iniciativas demandem mudanças legislativas, ninguém duvida da capacidade de Bolsonaro construir maioria para aprová-las. Seu partido conseguiu eleger 52 deputados, e já dispõe de um acordo com o “Centrão” de Rodrigo Maia e companhia. Além disso, a bancada BBB, da Bíblia, do Boi e da Bala, teve um crescimento excepcional nestas eleições.
De acordo com um levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, a Bancada da Bala vai saltar de 35 deputados na atual legislatura para 61. A evangélica, por sua vez, terá 84 cadeiras, 9 a mais. O Diap ainda não concluiu a análise da bancada ruralista. Atualmente, ela possui 260 deputados – e a liberação do porte de armas sempre foi uma de suas bandeiras.
A eleição de Bolsonaro também acendeu um sinal de alerta no Nordeste. Os nove estados da região serão governados pelo PT ou por partidos que apoiaram Fernando Haddad. Como o presidente eleito admitiu publicamente que vai priorizar os aliados na distribuição de recursos, os governadores pretendem atuar em bloco para negociar com a União.
“É especialmente preocupante essa relação, porque os estados nordestinos ostentam as maiores taxas de homicídio do País. Negar recursos por divergência ideológica seria desastroso”, comenta Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Por outro lado, esses governadores parecem mais comprometidos com a questão dos direitos humanos, e não devem chancelar abusos cometidos pela polícia.”

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