Já
o escrevi e disse vezes sem conta, as inovações legislativas no domínio
da violência doméstica têm sido muitas e importantes, mas mais
relevantes são a sua exequibilidade e a eficácia dos seus propósitos.
Uma
das inovações introduzidas em 2007 foi a possibilidade de instauração
de penas acessórias (à pena principal de prisão efetiva) com
alternativas diversas, nomeadamente acompanhamento clínico
especializado.
Em dezembro de 2010 foi
publicado o IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica (2011-2013)
com uma área estratégica nova - o Programa para Agressores de Violência
Doméstica. Já terminou o V Plano Nacional (2014-2017) e a questão que se
continua a colocar é a de saber como estão e quem tem formação
específica para desenvolver esses programas. Objetivamente pergunto,
enquanto cidadã e psiquiatra: quem são os responsáveis clínicos por
esses programas? Quem tem competências clínicas para os indicar como
alternativa? Quem tem competências clínicas para os fazer? Adquiridas
onde e como? Onde estão a ser desenvolvidos? Quantos aconteceram desde a
sua fase experimental, há oito anos? Quantos arguido(a)s foram a eles
sujeitos ao longo destes anos? Com que resultados? Já que são penas
acessórias, destinam-se apenas a arguido(a)s preso(a)s, certo?
Mais
importante, porque mais grave e mais preocupante, que este tipo de
possibilidade de pena acessória com estratégias pouco definidas e
clarificadas é a da suspensão de pena de prisão efetiva por programas
ambulatórios ou consultas específicas de psiquiatria ou psicologia.
Escreveu
Cristina Teixeira Cardoso em 2012, na sua tese de mestrado "A violência
doméstica e as penas acessórias": "Entendemos ainda ser relevante
afirmar que, na prática - e tal resulta, como já referimos, da nossa
experiência profissional -, a pena de prisão aplicada é na esmagadora
maioria das situações suspensa na sua execução [cf. art. 50.º do CP],
(...), sobretudo com imposição de regras de conduta [cf. art. 52.º do
CP], das quais se destacam, entre as que têm conteúdo positivo, a
frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica que está a
ser dinamizado pela Direção-Geral de Reinserção Social [DGRS] e a
sujeição a tratamento de desintoxicação de álcool ou de drogas",
referindo saber "que muitas destas regras de conduta têm um conteúdo
idêntico ao de algumas penas acessórias".
Qual
deverá ser a minha resposta, enquanto psiquiatra e diretora de um
serviço de psiquiatria, a um pedido da DGRS para "marcação de uma
consulta de psicologia" após o tribunal ter determinado a "frequência
regular de consultas de acompanhamento psicossocial direcionadas para o
controlo da impulsividade e gestão de conflitos", ou a qualquer pedido
de intervenção deste género, uma vez que - à semelhança da quase
totalidade dos serviços de psiquiatria do país - não possuo, no serviço
que dirijo, qualquer competência técnica nesse sentido? Só me ocorre
uma: "Tal não é possível porque não temos nenhuma estrutura de apoio ou
acompanhamento direcionada para agressores no crime de violência
doméstica." Recuso-me a brincar aos programas e a fingir um
acompanhamento psiquiátrico ou psicológico para o qual não tenho
qualquer formação específica, por me parecer ética e deontologicamente
reprovável. Remeter para alguém que o possa e saiba fazer não é opção
válida.
Há ainda outras questões
importantes a considerar. Vou relatar um caso prático, real. Um tribunal
decidiu uma suspensão de pena de prisão efetiva, devendo o arguido
"submeter-se a tratamento psiquiátrico". Dando-se o caso de não haver ou
de não me ter sido enviada nenhuma avaliação psiquiátrica do arguido
prévia à decisão judicial, com que base clínica se determina a
necessidade do referido tratamento? Porquê e para quê? Com que
diagnóstico? O acompanhamento psiquiátrico não é uma "pena", é (ou não)
uma necessidade clínica. A própria Lei de Saúde Mental apenas prevê o
acompanhamento ambulatório compulsivo - é disso que se trata - depois de
um internamento, e não era o caso.
Só
há uma resposta possível, em relação ao pedido que nos foi solicitado no
sentido de submissão do sujeito a um "tratamento psiquiátrico", sou a
informar que tal não é possível sem que haja uma informação clínica que
justifique esse acompanhamento, como acontece com todas as marcações de
consultas médicas.
Outro caso prático,
real. Aqui foi determinado pelo tribunal a "suspensão" da pena de três
anos de prisão ao abrigo "do disposto no número 1 e 5 do artigo 50.º"
com "imposição de frequência do arguido em consultas de tratamento de
alcoologia e de psiquiatria" e obrigação de prova "com periodicidade
mensal". Um diagnóstico e a instituição de uma terapêutica é uma
competência médica, parece-me. Não havendo uma avaliação clínica prévia à
sentença, não há um diagnóstico nem, por conseguinte, uma indicação
terapêutica medicamente sustentada, tão pouco a definição da
regularidade do acompanhamento, caso se afigure necessário. Insisto, o
acompanhamento psiquiátrico não é uma "pena", é (ou não) uma necessidade
clínica.
Mais, com que base a decisão
(não clínica) de acompanhamento determina, neste caso, a necessidade de
duplicar consultas - e portanto recursos do SNS - com um acompanhamento
simultâneo em "alcoologia" e "psiquiatria"? Há uma patologia dual? Se
sim, o sujeito deverá ser enviado para uma unidade clínica psiquiátrica
que responda por essa necessidade, caso contrário deverá ser enviado ou
para uma consulta de adições ou para uma consulta de psiquiatria geral,
alternativas clínicas que dependem de organismos diferentes dentro do
SNS.
No caso presente, a resposta só
pode ser "em relação ao pedido que nos foi solicitado, no sentido de
marcação de uma consulta de psiquiatria no serviço de psiquiatria X para
o sujeito supraidentificado, sou a informar que tal não é possível sem
que haja uma informação clínica que justifique esse acompanhamento, como
acontece com todas as marcações de consultas médicas".
Não
quero que entendam estas minhas respostas, na qualidade de diretora de
um serviço mas que assumo a título pessoal, como uma má vontade ou uma
afronta à decisão judicial, antes como uma imposição deontológica,
enquanto psiquiatra, e como uma obrigação ética enquanto cidadã que se
preocupa e luta pela diminuição da violência doméstica, em particular da
violência de género.
O que poderemos
fazer para mudar este estado de coisas? Assim está mal. Descansa as
consciências mas nada se altera. E a mortandade continua.
Psiquiatra
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