Reforma
precarizou relações de trabalho, diz Trindade.
'Os conflitos trabalhistas não
foram reduzidos com a reforma trabalhista', diz juiz. Completaram-se nesse domingo (11) quatro meses da entrada em
vigor da reforma trabalhista, e, apesar de dados do Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados (Caged) apontarem a abertura de 77.822 vagas com
carteira assinada em janeiro deste ano, o melhor resultado para o mês desde
2012, as alterações na legislação são alvo de críticas por parte de integrantes
da Justiça do Trabalho. O presidente da Associação dos Magistrados da Justiça
do Trabalho da 4ª Região (Amatra IV), juiz Rodrigo Trindade de Souza, avalia
que há uma precarização das relações de trabalho, como no caso dos contratos
intermitentes. Ele observa que, no mês em que o vencimento pago pelo empregador
não chegar a um salário-mínimo, o trabalhador terá que "retirar do seu
próprio salário para fazer o recolhimento previdenciário complementar".
Esse é um dos pontos que deve ser alterado com a Medida Provisória (MP) nº
808/2017, assinada pelo presidente Michel Temer (PMDB) logo após a promulgação
da lei que alterou a legislação trabalhista, com o objetivo de contemplar
demandas remanescentes dos parlamentares e que tem pouco mais de um mês para
ser apreciada antes de perder a validade. Ao todo, são 967 emendas ao texto.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Trindade explica que o Congresso
Nacional terá que votar uma lei que regre o período em que a MP esteve em
vigor, o que contribui para aumentar a insegurança jurídica com a reforma.
"Os conflitos trabalhistas não foram reduzidos com a reforma trabalhista.
O que aconteceu foi a insegurança e, em alguns casos, a dificuldade que tem o
reclamante de buscar a tutela da jurisdição", pontua. Jornal do Comércio -
Com a reforma trabalhista, criou-se uma certa disputa ideológica, em que o governo
dizia que os juízes não poderiam ter interpretação diversa da apresentada no
texto da lei... Rodrigo Trindade de Souza - Por parte da magistratura, da
associação de juízes, não creio que foi exatamente uma disputa ideológica. Há
uma diferença de visão sobre a necessidade de modificar a legislação do
trabalho e principalmente do conteúdo dessa modificação. Ninguém mais do que os
juízes do trabalho veem a necessidade de modificação periódica na legislação
trabalhista. Porque afinal trabalhar, empreender e profissões surgem e são
extintas praticamente todos os dias. Trabalhar sempre teve uma grande
velocidade da alteração dos modos, e a legislação precisa acompanhar isso. Mas
se criticou bastante o conteúdo dessa alteração. E se verificou que as opções
colocadas no então projeto de lei, que se transformou em lei, não tinham a
propensão de modernizar o mundo do trabalho e de permitir uma maior
empregabilidade, aumento de renda dos trabalhadores e aumento de lucratividade
a longo prazo para os empresários. Se verificou, já naquela época, que tinha
várias inconsistências, obscuridades, dificuldades de compreensão, termos
mal-empregados, conteúdos desconhecidos, e isso ia causar uma grande
dificuldade de aplicação. A lei é realmente de difícil aplicação porque foi feita
de forma muito rápida, sem discussão, aparentemente por pessoas que não
entendiam muito bem do assunto, e o resultado é esse que estamos vendo agora.
JC - Está em vigor a MP 808/2017, que modifica alguns termos da reforma
trabalhista e ainda precisa ser apreciada. O que pode-se dizer que está de fato
sendo aplicado atualmente? Trindade - A gente vê a inconsistência e obscuridade
da lei quando pouquíssimo tempo depois de ser promulgada surge a medida
provisória para modificá-la. Não lembro se em algum momento da história da
nossa República isso aconteceu. Havia uma expectativa de que a lei fosse
modificada em diversos pontos, porque era realmente, repito, muito ruim, muito
obscura e com dificuldades de aplicação. Lamentavelmente a Medida Provisória nº
808/2017 não trouxe pontos de esclarecimento, ao contrário, em diversos itens
mantém ou até aprofunda a dificuldade de aplicação e, para o empresário, isso
está sendo catastrófico, porque ele tem dificuldade de saber qual é a lei que
vai aplicar no tempo e qual é o conteúdo. Hoje nenhum aplicador do Direito,
nenhum jurista, tem condições de dizer com segurança para quem se aplica a
reforma trabalhista e a partir de quando ela é aplicada. Só com esses dados
vemos como é difícil a utilização dessa nova lei. JC - A medida provisória tem
967 emendas. É isso mesmo? Trindade - O número está correto e, se não me
engano, é a segunda lei com maior número de emendas do Brasil, só perde para a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996. Quando a reforma trabalhista ainda
era um projeto de lei, ela recebeu um número gigantesco de emendas, e as
tendentes a aperfeiçoar foram rejeitadas. E o resultado é esse, temos uma lei
com dificuldade de aplicação, que é seguida de uma medida provisória com quase
mil emendas que é impossível, para a comissão, analisar. JC - A comissão pode
barrar as emendas, para que elas não sejam apreciadas no plenário? Trindade - A
comissão tem a obrigação de apresentar um relatório sobre a medida provisória.
Entre as possibilidades, ela pode rejeitar totalmente a MP, mantendo a lei
original; acolher a medida provisória com todas alterações que faz no texto da
CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), já modificado pela reforma
trabalhista; ou acolher parte das emendas e dar uma redação diferenciada. Mas,
pelo ritmo muito lento de funcionamento da comissão, está se encaminhando para
que a MP caia pela não apreciação. E aí a comissão tem a obrigação de criar um
projeto de lei para regrar o período em que a medida provisória esteve vigente.
JC - Um dado apresentado é que reduziu a judicialização na área trabalhista
nesse período... Trindade - Em novembro de 2016, foram ajuizados 200 mil
processos na Justiça do Trabalho no Brasil. Em novembro de 2017, mês que entrou
em vigor a reforma trabalhista, foram 88 mil processos. Diminuiu mais de 50% o
ajuizamento. Mas não podemos analisar esse número de forma absoluta, precisamos
entender porque diminuiu a litigiosidade. Em primeiro lugar, houve diminuição
do ajuizamento essencialmente em razão do desconhecimento. Os advogados não
sabem o que ajuizar, têm dificuldade de aplicação, é um momento de gigantesca
insegurança. É importante uma análise mais profunda, porque o litígio não foi
excluído, os conflitos trabalhistas não foram reduzidos com a reforma
trabalhista. O que aconteceu foi a insegurança e, em alguns casos, a
dificuldade que tem o reclamante de buscar a tutela da jurisdição, que o juiz
resolva o seu problema. É muito grave quando o conflito social fica desgarrado
da tutela do Estado. Se o Estado não consegue resolver problemas, o conflito
permanece latente, e em algum momento vai aparecer. Durante todo o século XX,
tivemos vários episódios em que as estruturas de poder não conseguiram lidar
com esses conflitos, e isso se resolveu com revoluções, com mortes. No século
XXI, já tivemos também situações bem parecidas. JC - Por exemplo? Trindade - A
Primavera Árabe foi isso, a dificuldade das estruturas de poder local lidarem
com demandas da sua sociedade. E mesmo no mundo do trabalho isso já começa a se
sentir também. Em 2005, na França, tiveram 25 departamentos em insurreição
popular devido principalmente ao desemprego, à dificuldade de sustento
econômico de populações mais pobres. No Reino Unido, Tottenham, uma localidade
com muitos desempregados, também sofreu insurreições populares. Em 2009, na
China, um país que praticamente não tem Direito do Trabalho, depois de uma
demissão coletiva e sem a possibilidade de os trabalhadores buscarem a tutela
do Estado de forma efetiva, eles entraram na empresa e assassinaram o chefe. É
isso que acontece quando o Estado deixa de tratar os conflitos, principalmente
os conflitos do trabalho. Isso me preocupa, porque a reforma trabalhista tem um
grande potencial de deixar os conflitos sociais desgarrados da tutela do
Estado. JC - Uma constatação que se fez em relação ao regime de contrato
intermitente é que, quando a remuneração do mês não atinge o suficiente para a
contribuição previdenciária do INSS, o trabalhador tem que complementar. É isso
mesmo? Trindade - É bizarro, mas é isso. Isso é da Medida Provisória nº
808/2017, que diz o seguinte: sempre que o trabalhador intermitente não
conseguir, com a soma de todos os seus rendimentos, receber pelo menos um
salário-mínimo, ele vai ter que retirar do seu próprio salário para fazer o
recolhimento previdenciário complementar. Mas olha que bizarro, se o coitado do
vivente não conseguiu nem um salário-mínimo, é impossível ele tirar parte desse
salário menor que recebeu para pagar a Previdência. JC - É o trabalhador que
faz esse recolhimento ou a empresa? Trindade - O trabalhador faz o recolhimento
complementar. Para ver o problema que é o trabalho intermitente, porque produz
um mascaramento das estatísticas do desemprego. Houve aumento de desemprego em
dezembro (2017), um rompimento num ciclo de sete meses de diminuição do
desemprego. Com a CLT antiga, fascista, decadente, o desemprego ia diminuindo.
Com a reforma trabalhista "modernizadora", aumentou o desemprego. E o
que é pior, fez com que os postos de trabalho criados tenham sido a partir das
contratações como trabalho intermitente, que não garante nem mesmo o
salário-mínimo para as pessoas. Se já é difícil conseguir um empregador, o
trabalhador intermitente tem que conseguir cinco ou sete para sobreviver. Isso
é muito triste e muito perverso com as pessoas. Houve uma diminuição também dos
trabalhadores com carteira assinada e um aumento de trabalho sem carteira
assinada. Isso é péssimo para o País, porque a diferença de pagamento chega a
40%. O trabalho intermitente também vai fazer um pagamento muito inferior. JC -
Outra questão relacionada à reforma trabalhista é quanto a empresas que
demitiram para recontratar seus funcionários em outro regime, como Pessoa
Jurídica (PJ) ou intermitentes. Acredita que pode representar uma precarização do
sistema e das relações de trabalho? Trindade - Sem dúvida. Isso já aconteceu
inclusive aqui no Rio Grande do Sul, principalmente com universidades que
despediram professores, e houve notícia de que se buscaria a recontratação
deles na forma de terceirizados, autônomos ou contratos intermitentes. Isso é o
grande objetivo, me parece, não declarado, da reforma trabalhista. É permitir a
recontratação dos trabalhadores de forma precarizada. Para o mercado de
trabalho, aliás, para o País, me parece muito ruim. Porque pode aumentar
provisoriamente a lucratividade de uma empresa, mas vai promover uma diminuição
geral da renda na comunidade e por consequência, uma diminuição do mercado
consumidor. JC - O período de vigência da reforma é de produtividade mais baixa,
entre o fim e o início do ano. A tendência é que agora os efeitos e impactos
sejam mais percebidos? Trindade - O Direito do Trabalho não responde à
necessidade da maior contratação de trabalhadores. O empresário não contrata
mais empregados porque está barato. O empresário só contrata novos empregados
se ele tem demanda econômica para isso. O que a reforma trabalhista, a mim
parece que está promovendo, é uma facilitação de dispensa de trabalhadores e
recontratação de outros trabalhadores de forma precária, seja com contratos não
regrados pelo Direito do Trabalho, como autônomos, cooperativados ou
estagiários, seja pela substituição de empregos de plenos direitos - esse da
CLT clássica - por contratos como os temporários, a tempo parcial e
intermitente. JC - A reforma completou quatro meses de vigência. Quanto tempo o
senhor acredita que é necessário decorrer para fazer uma avaliação do que ela
representa para as relações de trabalho? Trindade - É muito difícil avaliar
isso porque não sabemos como é o nosso horizonte normativo. Não sabemos se vai
permanecer vigente a reforma do jeito que ela foi apresentada, se a medida
provisória vai substituir em grande parte o dispositivo, se a comissão mista do
Congresso Nacional vai decidir pela ampliação dessa MP e de que forma. Também
não se sabe se os novos projetos políticos, se a nova composição política
nacional no Congresso e no Executivo, vão manter essa orientação do atual
governo de precarização do Direito do Trabalho e de redução da renda. O que
posso dizer é que a jurisprudência não é automática. Ela demora alguns anos,
talvez uma década, para conseguir esclarecer as condições mínimas de aplicação.
Perfil: Rodrigo Trindade de Souza é natural de Porto Alegre e ingressou na
magistratura em 2002. Atual presidente da Associação dos Magistrados da Justiça
do Trabalho da 4ª Região (Amatra IV), É juiz substituto na 28ª Vara do Trabalho
da capital gaúcha. Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (Pucrs), é mestre em Direito pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR), especialista em Direito do Trabalho pelo Centro Universitário
Autônomo do Brasil (Unibrasil), e pós-graduado em Derecho Laboral pela
Universidad de la República (Udelar/Uruguay). Também é professor de Direito do
Trabalho na Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul
(Femargs) e em cursos de pós-graduação. Com forte atuação acadêmica, é
fundador, titular da cadeira número cinco e atual vice-presidente da Academia
Sul-Rio-Grandense de Direito do Trabalho (Asrdt). É autor de diversos artigos,
capítulos e livros a respeito de temas do Direito do Trabalho, Processual do
Trabalho e Hermenêutica, incluindo a coordenação da CLT Comentada pelos Juízes
do Trabalho da IV Região.
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