Um dos efeitos mais profundos da mudança climática está em andamento em solo americano - com consequências não só para a fauna, flora e moradores locais, mas para o planeta.
25 mar 2018
Vladimir Romanovsky atravessa a densa floresta de coníferas com
facilidade. Não para ou diminui o passo nem sequer para se equilibrar
diante do musgo macio que cobre o permafrost - superfície que permanece
congelada nas regiões polares.
É um dia quente de julho, e o cientista está procurando uma caixa que
ele e sua equipe deixaram no solo. Ela está escondida cerca de 10
quilômetros ao norte do Instituto de Geofísica da Universidade do
Alasca, em Fairbanks, onde Romanovsky é professor de geofísica e
responsável pelo Laboratório de Permafrost.
O recipiente, coberto por galhos de árvores, contém um coletor de dados
conectado a um termômetro, instalado abaixo do solo para medir a
temperatura do permafrost em diferentes profundidades.
O permafrost é qualquer material terrestre que permaneça a 0°C ou
abaixo dessa temperatura por pelo menos dois anos consecutivos.
Romanovsky conecta então seu laptop ao coletor de dados para transferir
os registros de temperatura desta localidade, chamada Goldstream 3, que
mais tarde serão adicionados a um banco de dados online, acessível
tanto para cientistas quanto para qualquer pessoa interessada.
"O permafrost é definido com base na temperatura. Esse é o parâmetro que caracteriza a sua estabilidade", explica o professor.
Quando a temperatura do permafrost é inferior a 0°C, por exemplo, -
6°C, ele é considerado estável, o que significa que vai demorar muito
para mudar ou descongelar. Já se está perto de 0°C, é classificado como
vulnerável.
Todo verão, a porção de solo que cobre o permafrost, chamada de camada ativa, derrete - e congela de novo no inverno seguinte.
Em Goldstream 3, naquele dia de julho (verão no hemisfério norte), o derretimento chegava a 50 cm de profundidade.
À medida que a Terra aquece e as temperaturas aumentam no verão, o
degelo está se expandindo e ficando mais profundo, fazendo com que o
permafrost fique menos estável.
Se o derretimento continuar, haverá consequências profundas para o
Alasca e para o mundo. Cerca de 90% do Estado é coberto por permafrost, o
que significa que vilarejos inteiros precisarão ser realojados,
conforme as fundações dos edifícios e as estradas desmoronarem.
E se o permafrost liberar o carbono acumulado e retido há milênios
dentro dele, poderá acelerar o aquecimento do planeta - muito além da
nossa capacidade de controlá-lo.
Estado de vulnerabilidade
À medida que o permafrost derrete, casas, estradas, aeroportos e outras
infraestruturas construídas sobre o solo congelado podem rachar e até
mesmo ruir.
"Estamos vendo mais serviços de manutenção em estradas que passam sobre
o permafrost", diz Jeff Currey, engenheiro de materiais do Departamento
de Transportes Públicos do Alasca.
"Um dos nossos superintendentes de manutenção contou recentemente que
sua equipe está tendo que remendar certos trechos das rodovias com mais
frequência do que há 10 ou 20 anos. "
Da mesma forma, as infraestruturas construídas no subsolo - para
atender os serviços de utilidade pública, por exemplo - estão sendo
afetadas, conforme as temperaturas aumentam.
"Em Point Lay, na costa noroeste do Alasca, por exemplo, eles estão
tendo todos os tipos de problema com as redes de água e esgoto no solo
de permafrost", afirma William Schnabel, diretor do Centro de Pesquisa
de Água e Meio Ambiente da Universidade do Alasca.
A preocupação é ainda maior para aqueles que vivem em áreas rurais, que
não dispõem de fundos suficientes para combater os efeitos do
derretimento do permafrost.
Para esses moradores, não são apenas os edifícios que estão ruindo, o que é comum agora, mas também o abastecimento de água.
Muitas vezes, quando o permafrost derrete ao lado de um lago usado por
um vilarejo como fonte de água, há uma fenda e ocorre um dreno lateral.
"Geralmente, é necessária uma infraestrutura bem cara para tirar água
de um lago, levar para uma vila e armazená-la. E todos os componentes
desta infraestrutura são vulneráveis ao degelo do permafrost", diz
Romanovsky.
Se um vilarejo depende de um lago afetado para conseguir água, os
membros da comunidade têm de levar sua infraestrutura e, às vezes, a
vila inteira para outro lago, o que pode custar muito dinheiro.
De acordo com uma análise realizada pelo órgão de pesquisas geológicas
americano US Geological Survey, aldeias como Kivalina, no noroeste do
Alasca, terão que se mudar nos próximos 10 anos.
"Mas estimativas sugerem que o custo desta mudança seria de cerca de
US$ 200 milhões por cada vila de 300 pessoas", explica Romanovsky.
Chegar a uma quantia como essa só seria possível com o financiamento do
governo federal - mas não há garantias de que uma nova localização
também não seria afetada.
"Acredito que agora existam 70 vilas que realmente precisam ser
realojadas em decorrência do derretimento do permafrost", avalia.
"Mas transferir os vilarejos para outra área no permafrost é muito
difícil de garantir por uns 30 anos. E o governo federal não quer pagar
por algo que precisará pagar novamente."
Além disso, é possível que a construção de assentamentos no permafrost também possa agravar o problema no Alasca.
"Quando você pensa em água e esgoto, você precisa mantê-los sem
congelar. E, no caso do permafrost, você tem que mantê-lo congelado",
diz Schnabel.
"Ou seja, vai correr água relativamente quente pelo permafrost e haverá alguma dissipação de calor lá."
Do mesmo jeito, quando uma estrada é construída, parte da vegetação que
cobre o permafrost é removida para que a rodovia seja pavimentada com
asfalto, o que aumenta a quantidade de radiação solar absorvida.
Por isso, embora os serviços de manutenção tenham aumentado, nem todos
os problemas relacionados à infraestrutura podem ser atribuídos à
mudança climática.
Freezer cheio de carbono
O Alasca, está, sem dúvida na linha de frente das mudanças climáticas,
mas as questões relacionadas ao permafrost vão além da "última fronteira
selvagem", como é conhecido. O derretimento do material afetará outros
48 estados americanos, localizados abaixo dele, assim como todo o
planeta.
De acordo com Romanovsky, metade do estado e 90% do permafrost do
interior do Alasca vão descongelar se houver um aumento médio global de
2°C na temperatura.
Isso é especialmente preocupante porque uma enorme quantidade de
carbono orgânico é sequestrada no permafrost e na camada ativa que se
sobrepõe a ele.
Uma vez que não há calor suficiente no solo congelado para ajudar os
micro-organismos a decompor a vegetação morta, a matéria orgânica foi se
acumulando durante milhares de anos no permafrost.
Algumas análises estimam que a quantidade de carbono no permafrost
equivale a mais de duas vezes a de dióxido de carbono na atmosfera.
"Se mantivermos o curso atual, é bem provável que até 2100 uma parte
significativa do permafrost, nos cinco metros superiores, descongele. E,
com ele, toda a matéria orgânica que está atualmente retida ali", diz
Kevin Schaefer, pesquisador do National Snow and Ice Data Center da
Universidade do Colorado.
"Isso significaria uma liberação de dióxido de carbono e metano, que
aumentaria o aquecimento devido à queima de combustíveis fósseis."
Em artigo publicado em 2012 na revista científica Nature, Schaefer e
seus colegas sugerem que os eventos de aquecimento súbito ocorridos
anteriormente foram essencialmente desencadeados pela liberação de
dióxido de carbono e metano do permafrost há cerca de 50 milhões de anos
na Antártida.
E as projeções não parecem otimistas: "Teoricamente, se esse carbono
for liberado para a atmosfera, a quantidade de CO2 será três vezes maior
do que a que está lá (na atmosfera) agora", diz Romanovsky.
Desta forma, há uma genuína retroalimentação, uma vez que aquecimento aumenta em decorrência da queima de combustíveis fósseis.
Mas, apesar do fato de o aquecimento estar acelerando, os efeitos da
retroalimentação serão graduais, levando tempo para serem sentidos.
"É um feedback muito lento", diz Schaefer.
"Imagine tentar conduzir um navio a vapor com o remo de uma canoa, esse é o tipo de feedback que estamos falando", compara.
Infelizmente, uma vez que o permafrost começa a derreter, é difícil
congelá-lo novamente - pelo menos enquanto estivermos vivos. Além disso,
a partir do momento que material sai do solo e vai para a atmosfera,
não existe uma maneira fácil de enviar esse carbono de volta ao chão.
"A única maneira de fazer isso seria baixar a temperatura global e
congelar de novo o permafrost, o que significaria que você estaria
removendo o dióxido de carbono da atmosfera", diz Schaefer.
Segundo Romanovsky, os modelos climáticos mostram que os atuais
compromissos intergovernamentais para reduzir o aquecimento global -
conforme estabelecido no Acordo de Paris - podem não ser suficientes.
Em artigo publicado em 2016 na revista Nature Climate Change, a
pesquisadora Sarah Chadburn e seus colegas estimam que, mesmo que o
clima fosse estabilizado, conforme acordado pelos 196 países em 2015, "a
área de permafrost seria eventualmente reduzida em mais de 40%".
No entanto, após o anúncio do presidente Donald Trump de retirar os
Estados Unidos do Acordo de Paris, em junho do ano passado, é de se
esperar uma perda ainda maior de permafrost no horizonte.
O jogo de culpa
O Alasca é um Estado conservador politicamente, então quem está de fora
pode supor que seus moradores rejeitam a ideia do aquecimento global.
Mas a realidade é mais complexa.
Uma pesquisa realizada no início deste ano pelo Alaska Dispatch News,
com um total de 750 participantes, mostrou que mais de 70% da população
local está preocupada com os efeitos da mudança climática.
"No Alasca, a quem você perguntar, vai responder 'sim, há aquecimento'", afirma Romanovsky.
"Quanto mais para o norte você for, especialmente no noroeste, mais
forte é esse sentimento. Porque está acontecendo, você consegue ver.
Claro, a questão sobre de quem é a responsabilidade depende das crenças
políticas."
No Parque Nacional Denali, a guarda florestal Anna Moore testemunhou
como o aquecimento pode afetar em pouco tempo a vida selvagem.
Ela reparou que a lebre do ártico, que muda a cor da pele de acordo com
as estações do ano para se camuflar, parece não estar acompanhando mais
as mudanças, como resultado do aumento da temperatura, o que a deixa
mais exposta a predadores.
"No inverno, eles ficam brancos", diz Moore.
"À medida que está ficando mais quente, a neve está derretendo mais
rápido, mas seus corpos são aclimatados a certas mudanças de temperatura
e, portanto, mesmo que a neve já esteja derretendo, eles continuam
brancos - e correndo perigo por causa dos predadores."
Moore acrescenta que, apesar de acreditar nas mudanças climáticas e
estar observando seus efeitos na fauna e flora do parque, ela considera
isso um resultado tanto das atividades humanas quanto de um ciclo
natural.
Ashley Tench, sua colega, compartilha o mesmo sentimento:
"Eu concordo com ela (em) como isso é em parte feito pelo homem, mas é também natural."
Por isso, Tench não acredita que a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris faça diferença no clima.
Mas nem todo mundo no Alasca tem essa opinião. Para Bill Beaudoin,
mergulhador e educador aposentado, que agora é proprietário de uma
pensão em Fairbanks, é óbvio que os humanos são culpados e que devemos
trabalhar para reverter os efeitos de nossas ações.
"Acredito que o Acordo de Paris era necessário ", diz ele.
"Na verdade, eu não achava (que era) suficiente. Há um país, a
Nicarágua, que não assinou o acordo porque achou que não era forte o
suficiente. Eu ficaria provavelmente ao lado da Nicarágua nesta
questão", acrescenta.
Mas não importa quem seja o culpado pelo aquecimento e o consequente
derretimento do permafrost. A população do Alasca está, em sua maioria,
preocupada com seu futuro.
"As pessoas estão preocupadas, porque, claro, não existe seguro para derretimento do permafrost", diz Romanovsky.
"Os seguros não estão cobrindo os danos causados pelo permafrost, assim como por terremotos na Califórnia."
Em busca do carbono
De volta a Goldstream 3, Romanovsky observou que a 50 cm de
profundidade, a temperatura do solo era de - 0,04°C. Em um metro,
chegava a - 0,23 °C.
Na última vez que tinha verificado os dados, em março, a temperatura a um metro do solo era de -1,1°C.
Ele pega sua pá e faz um buraco no chão para observar o solo e checar
se há presença de carbono. A superfície mais escura indica carbono
orgânico acumulado.
Quanto mais ele cava, mais frio fica o solo. Ele escava tanto até que
sua pá toca o permafrost - e aparentemente ele não pode ir além.
Romanovsky força um pouco mais e consegue desenterrar um pedaço do
permafrost - do tamanho de uma pequena moeda. Segundos após segurar o
solo congelado entre os dedos, ele derrete como se fosse um cubo de
gelo.
Ele devolve a terra removida de volta ao buraco, desconecta seu laptop
do coletor de dados, fecha a caixa, cobre novamente com galhos de árvore
e se prepara para voltar.
Em uma semana, ele vai se deslocar para o norte do Estado para
registrar a temperatura em outras áreas, acrescentando mais informações a
uma das bases de dados de permafrost mais abrangentes do mundo.
Enquanto isso, pouco a pouco, o Alasca vai derretendo - e o que vem
pela frente não se sabe. O certo é que o grande degelo mudará para
sempre a paisagem como é hoje - e provavelmente o planeta e seus
habitantes.
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