Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
Em discurso, presidente reapresenta seu programa, minimiza inflação e fala de povo armado
A inflação anual é a maior em quase 20 anos. Passou de 12% em abril. Deve permanecer acima de 10% até setembro, à beira da eleição. Em grande parte, é resultado de choques mundiais graves, piorados pela desvalorização brutal do real em 2020 e 2021.
Qualquer governo teria dificuldade de ao menos atenuar esses choques (Covid e suas sequelas, crise de energia, Guerra da Ucrânia etc.). Em um país com estabilidade econômica e política, a alta do dólar poderia ter sido menor.
É fácil perceber que a economia fica à deriva em um país desgovernado, submetido aos objetivos de um projeto autoritário e sob a regência da incompetência e de parlamentares negocistas.
O indivíduo que ocupa a cadeira de presidente procura então não apenas camuflar a ruína, mas o faz reafirmando seu programa de desmonte, "contra o sistema". Junta a fome com a vontade de poder autoritário, até mesmo por meio do conflito armado.
Faz tempo que a ingenuidade tola ou conivente afirma que Jair Bolsonaro lança cortinas de fumaça quando aparecem mais notícias sobre a ruína que promove. É uma verdade mal compreendida por quem a enuncia.
A fumaça é tóxica, uma arma química. A cada lançamento de gases venenosos o país e suas instituições são intoxicadas com ameaças mortais.
Nesta quarta-feira, por exemplo, Bolsonaro reafirmou seu programa de poder, desta vez o associando à possibilidade de guerra civil. Não é bem novidade, em sua carreira de crimes, em que já pregou o conflito armado, morte em massa, fuzilamentos, tortura e genocídio de indígenas.
"Somente os ditadores temem o povo armado. Eu quero que todo cidadão de bem possua sua arma de fogo para resistir, se for o caso, à tentação de um ditador de plantão", começou Bolsonaro, com sua defesa habitual do armamento civil. Armas serviriam para a defesa de ameaças externas (contra a invasão da Amazônia, por exemplo), mas não principalmente.
"Vocês sabem que a pior ameaça não é externa, é interna, de comunização do nosso país. Nós não chegaremos na situação em que vive atualmente a Venezuela", discursou o indivíduo que ocupa a cadeira de presidente da República.
O que é a "comunização"? Poderia ser qualquer coisa, pois Bolsonaro e sua seita já disseram que todos os governos, depois da ditadura até o dele, foram de esquerda. Já disse que venceu a eleição de 2018 no primeiro turno, mas foi roubado. Vale tudo. Mas Bolsonaro definiu o inimigo que pode ser objeto de revolta armada.
"Todos nós sabemos quem defende aquele regime e quem defende seu ditador. Não queremos cores diferentes da verde e amarela na nossa terra. Dizer a vocês que o outro lado quer exatamente o diferente de nós. Nós defendemos a família, nós somos contra o aborto, somos favoráveis ao armamento para o cidadão de bem, somos contra a ideologia de gênero, nós somos pela liberdade da nossa economia e somos acima de tudo pela nossa liberdade de expressão" —assim definiu o "outro lado", que defende a "comunização" do Brasil.
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É um programa, é uma ameaça, é um projeto de subversão da ordem (não há Poderes instituídos, o Estado deixa de ter o monopólio legal da força, "inimigos" políticos em última ou em alguma instância podem ser objeto de revolta armada).
"E para vocês, família brasileira, a arma de fogo é uma defesa da mesma e é um reforço para as nossa Forças Armadas porque o povo de bem armado jamais será escravizado". As Forças Armadas teriam o apoio de algo como milícias.
Sim, parece um projeto de Venezuela, diga-se de passagem. Mais grave, por ora, é que a baderna e a subversão armadas entraram de vez na conversa, assim como Bolsonaro já normalizara tantas atrocidades.
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