Marcelo Coelho
Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.
Até em estados americanos conservadores o procedimento só é proibido depois de seis semanas de gestação
É retrocesso, sem dúvida. Depois da última decisão da Suprema Corte, a legislação sobre aborto pode se tornar mais restritiva nos Estados Unidos, conforme a força que setores religiosos, antifeministas e conservadores tiverem em cada estado americano.
Os protestos contra isso têm sido grandes nos EUA. Mas o que é atraso por lá seria até um progresso no Brasil.
Um dos estados campeões na campanha antiaborto, Oklahoma, aprovou agora uma lei chocante para os padrões americanos. Segue o ponto de vista "extremo" (palavras do presidente Biden) adotado no Texas em setembro do ano passado.
E qual é o "extremismo" texano? Prender mulheres que fizeram aborto, tratá-las como assassinas? Não. O aborto ainda é legal no Texas e Oklahoma. Repito: ainda é legal. O que os direitistas americanos fizeram, com grande estrépito, foi proibir o aborto depois de seis semanas de gestação. Antes de seis semanas, continua podendo.
Se tivéssemos isso no Brasil, a conquista seria histórica.
Há estados americanos onde você pode fazer aborto já com a gravidez avançadíssima. No estado do Vermont, a retirada do feto é possível em qualquer etapa: com oito, nove meses de gravidez.
Confesso que, aí, até eu fico assustado. Há outros radicalismos, como o de obrigar médicos do serviço público a realizarem operações de aborto mesmo se, por razões de consciência, sejam contrários à prática. É demais, a meu ver.
Só que, no Brasil, políticos e políticas morrem de medo de defender o mínimo. O medo de perder votos é tamanho, que fica parecendo escandalosa audácia apoiar até mesmo uma política de estilo conservador como a que existe no Texas e em Oklahoma.
40 anos da legalização do aborto nos EUA
Os governadores desses estados seriam vistos no Brasil como perigosos esquerdistas. Aborto até seis semanas de gravidez? Minha nossa!
E quem é a favor do aborto se esconde atrás da lenga-lenga de que "não é uma questão religiosa, é uma questão de saúde pública".
Não é questão de saúde pública. É questão de direitos da mulher. E, se quisermos, de direitos das crianças já nascidas: o direito de ter uma mãe que quis ser mãe e se sente pronta a cuidar delas.
Por que eu digo que não é questão de saúde pública? Claro, sabemos que milhares de mulheres morrem ao fazer aborto em clínicas clandestinas, ou se ferem em casa mesmo. A legalização do aborto evitaria, em grande parte, esse morticínio vergonhoso.
O problema é que o militante contra o aborto pode perfeitamente admitir isso. E dizer que, para resolver essa "questão de saúde pública", faltam ações da polícia no sentido de fechar essas clínicas e prender os responsáveis.
O militante contra o aborto pode ir além. Se ele acha que um embrião é como uma pessoa, seu raciocínio fica simples. Morrem mulheres em clínicas clandestinas? Sim, reprimiremos isso. Mas é também "questão de saúde pública" a morte desses pobres embriões.
Conclui-se que falar em "questão de saúde pública" é uma estratégia que serve tanto para quem é a favor do aborto como para quem é contra.
Manifestantes protestam contra possível reversão de direito ao aborto nos EUA
Se for para enrolar, sugiro então que se adote o seguinte raciocínio. O candidato, o "formador de opinião", toma a palavra, com seu cabelinho puxado para trás reluzente de brilhantina, e fala o seguinte.
"De fato, sou um conservador, um antifeminista, um seguidor de Donald Trump e admirador de Bolsonaro. E, nesse sentido, sou a favor das recentes mudanças legislativas aprovadas em estados americanos onde os valores da família são efetivamente seguidos e não há vestígio de comunismo ateu ou ideologia de gênero. Sou a favor da política adotada no Texas e em Oklahoma".
Estará sendo a favor do aborto até as seis semanas de gestação, acessível em qualquer hospital público ou particular.
Nos Estados Unidos, o presidente Biden iria chamá-lo de extremista de direita. Aqui, qualquer conservador texano deixaria candidatos de esquerda fazendo o sinal da cruz e repelindo tal demonstração de porra louquice.
"Não, não, cof, cof, é tudo questão de saúde pública. Não vamos mexer com a religião de ninguém." Ora essa. Quem for religioso, que não faça aborto. E que se lembre de não se divorciar também. E de não usar camisinha.
Quem acha que um embrião não é uma pessoa, tem o direito de interromper a gravidez pela razão que achar melhor.
Cito uma, bastante conservadora aliás. Trata-se de proteger os valores da família. De uma família que nasce de uma gravidez desejada, com filhos esperados e amados por um pai e uma mãe que fizeram a escolha de tê-los.
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