Cientista brasileiro afirma que cobrança brasileira é incoerente e vai de encontro a política ambiental do governo Bolsonaro; 'criminoso ambiental existe sem risco de punição'
23 de abril de 2021 | 05h00
A compensação financeira ao Brasil pela preservação da Amazônia - tema central do discurso do presidente Jair Bolsonaro durante a Cúpula de Líderes sobre o Clima - é possível, mas não seguindo a lógica do governo atual. É o que aponta o climatologista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, referência nos estudos sobre mudança climática no País.
O professor afirma que iniciativas para remunerar países pela preservação de seus ecossistemas já existem, e podem ser acessadas pelo Brasil em breve. Durante a própria cúpula, foi lançado a coalizão LEAF, um fundo com investimentos de governos e empresas para remuneração de países tropicais pela preservação ambiental. No entanto, as verbas são liberadas de acordo com os resultados alcançados, e não o contrário.
"Tem uma incoerência (na cobrança do presidente). O que vem primeiro? Você me dá o dinheiro e eu reduzo o desmatamento? Ou eu reduzo o desmatamento e você me dá o dinheiro? A lógica por trás da compensação não é 'me pague que eu reduzo o desmatamento', é 'você reduza o desmatamento, demonstre que você tem capacidade e seriedade, que eu remunero", explicou.
Além disso, o professor explica que um passo fundamental para acessar os créditos de carbono provenientes da conservação é a comprovação segundo metodologias rigorosas e transparentes, que demonstrem que o projeto de combate e redução ao desmatamento nesses países está ocorrendo de forma global e eficiente.
"No caso do fundo que foi lançado, há US$ 1 bilhão disponível para países tropicais que reduzirem seriamente o desmatamento. E eu digo, seriamente. Não pode ser algo do tipo: 'o Amapá desmata pouco, mas o Amazonas está aumentando demais'. Tem de ser um um projeto que reduza o desmatamento na Amazônia."
Outros fatores além da comprovação do desmatamento em si podem contribuir para o acesso a esses recursos internacionais. Países que adotarem novos modelos de desenvolvimento sustentável, com espaço para a bioeconomia, ou se demonstrarem capazes de proteger as populações tradicionais das florestas tropicais, por exemplo, podem ser beneficiados no momento de repartição dos recursos, o que vai exigir um pensamento estratégico por parte do governo.
O interesse nos créditos ambientais demonstrado durante a cúpula, no entanto, não encontra sustentação na política ambiental do governo, que precisará mudar radicalmente, segundo Nobre. "Toda a política do Ministério do Meio Ambiente, nos últimos dois anos e quatro meses, que incluiu o caso da suspensão do Fundo Amazônia, estava inserida em uma lógica em que você pagaria ao desmatador para ele não desmatar. Essa lógica é totalmente ridícula", disse. E completou: "O discurso político que ouvimos era de incentivo ao crime ambiental. Fazia com que criminosos ambientais existissem completamente sem risco de punição. Por isso o desmatamento, a degradação e as queimadas explodiram."
Metas são possíveis, mas exigem ação
Do discurso do presidente, Nobre avalia que o ponto mais relevante em relação aos anteriores foi a sinalização de que o Brasil pretende antecipar a meta de alcançar a neutralidade de carbono em 2050 - o compromisso anterior do País era de zerar as emissões em 2070. Para alcançar esse objetivo, porém, o professor alerta que será necessário agir em diversas frentes, incluindo possibilitando um amplo trabalho de agentes de campo - que vem sendo retirados na Amazônia com o esvaziamento de órgãos como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio).
Para Entender
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"É muito difícil chegar nesses números, porque não há ações enérgicas de campo. Quando olhamos para políticas lá atrás, em 2004 até 2012, que fizeram o desmatamento cair, ela não é uma política que acontece de um ano pra outro. Muito da efetividade daquela política foi o trabalho de inteligência da Polícia Federal atrás dos financiadores do crime. Isso não se faz de um dia pro outro", afirmou.
Apesar do ceticismo com o caminho da política ambiental atual, o professor projeta um cenário em que seria possível alcançar a meta. "Se houvesse uma seriedade muito grande na fiscalização, no rigor da fiscalização, em acabar o crime ambiental, nós teríamos uma uma condição muito apropriada de chegar em 2030 com 50% menos emissões, e aí sim seria perfeitamente exequível o Brasil zerar o resto de suas emissões de carbono".
Chegando em 2030 com 50% de emissões de carbono a menos, para que a neutralidade fosse atingida em 20 anos, ainda seria necessária a transformação da matriz energética do País, bem como a modernização da agropecuária. "Esse passo já começou. Temos o setor das eólicas crescendo, a energia solar ainda atrás, mas com muito potencial, temos iniciativas como as da Embrapa para reduzir a zero o impacto de carbono na produção no campo... Essas soluções de ciência existem, mas nós temos que dar escala a elas. Isso ainda falta".
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