segunda-feira, 1 de março de 2021

A AMAZÔNIA sob Bolsonaro

 


Árvores de floresta queimadas ainda produzindo fumaça

Os desafios para manter a floresta em pé

Patrocínio

Árvores de floresta queimadas ainda produzindo fumaça Lalo de Almeida/Folhapress

A segunda morte de Chico Mendes

Sob Bolsonaro, ex-seringueiros aceleram desmatamento e a troca de extrativismo por gado

Queimada em área desmatada no seringal Albracia que havia sido embargada pelo ICMBio após fiscalização

Queimada em área desmatada no seringal Albracia que havia sido embargada pelo ICMBio após fiscalização

Fabiano Maisonnave Lalo de Almeida
Reserva Extrativista Chico Mendes (AC)

Mais do que a borracha, a castanha-do-pará é um valioso produto extrativista da Amazônia. Apesar da renda assegurada e de a árvore majestosa estar protegida por lei, neste ano a família do ex-seringueiro Francisco Diogo da Silva, 72, decidiu queimar um castanhal para substituí-lo por pasto e gado.

Nascido em um seringal que hoje está dentro da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, Silva começou a cortar aos oito anos de idade, seguindo os passos do pai. Dedicou-se à atividade ao longo de 58 anos, 49 deles no seringal Albracia, onde vive até hoje.

Nenhum dos dez filhos, porém, extrai o látex. Cinco estão na "rua", expressão usada como sinônimo de cidade. Os demais moram com ele e se dedicam à pecuária. É a atividade contra a qual a Resex Chico Mendes foi criada em 1990, pouco mais de um ano após o assassinato do líder extrativista que lhe dá o nome. A morte foi encomendada por um pecuarista.

"Eles acham que o boi tem mais futuro. Se eles puderem vender um ou dois por mês, já têm dinheiro pra fazer a feira, remédio. E a borracha é cativa. Precisava ter um mercado certo, que não faltasse", diz Silva sobre os filhos, em entrevista na casa de madeira e poucos móveis, onde a luz estava conectada havia um mês.

Silva nasceu no tempo "dos patrões", quando os seringueiros, isolados na floresta, eram submetidos a um regime de trabalho análogo à escravidão pelos seringalistas. Contraíam dívidas impagáveis e eram proibidos de fazer roça. Ao contrário dos filhos, ele nunca frequentou uma escola. "Nem faço nem conheço o meu nome."

Com a criação da Resex, as famílias se livraram de vez dos patrões e, principalmente, conseguiram uma barreira legal contra os fazendeiros de gado, que avançavam contra a floresta. As escolas se proliferaram, e a luz chegou pela rede elétrica ou por placas solares.

Gado pasta na terra do ex-seringueiro Francisco Diogo da Silva, que vê a pecuária como a alternativa econômica mais viável

Gado pasta na terra do ex-seringueiro Francisco Diogo da Silva, que vê a pecuária como a alternativa econômica mais viável Lalo de Almeida/Folhapress

Outra grande melhoria foi a construção de linhas (estradas de terra), facilitando o acesso à cidade. Silva levava cerca de 14 horas para chegar a Xapuri em carro de boi. Hoje, basta 1h30 com o carro ou a moto dos filhos.

No aspecto ambiental, a Resex também vem freando o avanço do "arco do desmatamento", frente de destruição da floresta amazônica que vai do Acre ao Maranhão e avança rumo ao norte. Às margens da rodovia que liga Rio Branco a Xapuri, quase tudo virou pasto.

Por outro lado, a economia em torno da borracha colapsou. A família Silva deixou de cortar seringa há seis anos. O ex-seringueiro afirma que a venda era incerta e que só vinha ocorrendo, no máximo, dois meses por ano. Muitas vezes, o látex extraído se perdia.

A agricultura tampouco gera renda, afirma o ex-seringueiro: "O povo na rua se interessa mais no que vem plastificado, de qualidade. Eles dizem que a da gente é mal feita. Você leva 500 kg de farinha e passa a semana todinha pelejando pra vender. A outra vem plastificadinha, o cabra já monta na prateleira. Não precisa comprar os materiais, ensacar."

Silva e muitas famílias viram na pecuária a alternativa econômica mais viável, mesmo que seja ilegal. A atividade é permitida de forma bastante limitada.

Uma colocação (área destinada por família) só pode desmatar até 30 hectares, e apenas metade pode ser usada para a pecuária. Além disso, o desmatamento precisa de autorização prévia do ICMBio, responsável pela gestão da Resex. Segundo Silva, um dos filhos foi multado por tombar 200 hectares.

No livro "Rainforest Cowboys" (caubóis da floresta), de 2015, o antropólogo norte-americano Jeffrey Hoelle já apontava a tendência de avanço ilegal da pecuária como resultado, segundo ele, do fim de incentivos para borracha e agricultura. O gado, por outro lado, é visto como a melhor alternativa pelos seringueiros como uma poupança e um produto com grande liquidez.

Funcionário do frigorífico Frigo Verde, em Xapuri (AC), acompanha pesagem de carne

Funcionário do frigorífico Frigo Verde, em Xapuri (AC), acompanha pesagem de carne Lalo de Almeida/Folhapress

O seringueiro Rian Avevedo de Barros, 18, extrai látex no seringal Floresta, na Resex Chico Mendes, no Acre

O seringueiro Rian Avevedo de Barros, 18, extrai látex no seringal Floresta, na Resex Chico Mendes, no Acre Lalo de Almeida/Folhapress

Essa troca da floresta pelo capim se acelerou em 2019, no rastro da eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), que prometeu reduzir a proteção ambiental em favor da agropecuária. Segundo o ex-seringueiro, seus discursos, além do incentivo de um vereador de Xapuri, serviram de sinal verde para o avanço do pasto.

"Ele disse que o homem do campo, as pessoas de bem podiam usar as suas áreas. Aí a gente ficou naquela animaçãozinha", relembra. "Ele disse que a pobreza podia trabalhar à vontade, não ia ser mais reprimida, ficar com medo."

No segundo turno de 2018, o Acre deu a Bolsonaro a sua maior votação proporcional, 77% dos votos válidos. O presidente venceu também em Xapuri, onde Chico Mendes, líder histórico do PT no Acre, foi assassinado, com 59%.

Foto de Chico Mendes, líder dos seringueiros assassinado em 1988, pendurada na parede da casa de Rian Avevedo de Barros no seringal Floresta, em Xapuri (AC)

Foto de Chico Mendes, líder dos seringueiros assassinado em 1988, pendurada na parede da casa de Rian Avevedo de Barros no seringal Floresta, em Xapuri (AC) Lalo de Almeida/Folhapress

No primeiro ano do governo Bolsonaro, o desmatamento na Resex cresceu 203% em relação a 2018. A área de floresta perdida, 74,5 quilômetros quadrados, é a maior da série histórica do sistema de monitoramento Prodes (Inpe), iniciado em 2008, e equivale a quase dois Parques Nacionais da Tijuca (RJ). Ao todo, a unidade já perdeu 7,5% da sua cobertura florestal.

A sinalização do governo Bolsonaro é de que não haverá mais incentivos ao extrativismo. Em artigo publicado em novembro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, comparou os seringueiros a "cobaias humanas". Além disso, a deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC) protocolou projeto de lei que retira da Resex uma parte já tomada pela pecuária.

A liberação para o desmatamento, no entanto, não ocorreu até agora. Pressionado dentro e fora do Brasil pela onda de destruição, o governo Bolsonaro apertou a fiscalização. Silva diz que, em outubro, três filhos receberam multas ambientais que, somadas, chegam a cerca de R$ 880 mil. A quantia é impagável para a família.

"O que eu vou dizer? Vou me encolher, não sou as autoridades. Era escutar e ficar pedindo a Deus que eles baixassem o coração e deixassem ao menos o cara no lugar", afirmou, em alusão à possibilidade de ser expulso da Resex.

Questionado sobre se o desmatamento não deixa triste, Silva afirma que sim, mas vê como uma tendência inevitável: "Tenho pena, fui criado só na mata mesmo. Mas o que há de fazer? Você vai na rua, é só campo. Não tem mata como era."

A extrativista Luzineide Marques da Silva observa uma seringueira perto da sua casa no seringal Albracia
A extrativista Luzineide Marques da Silva observa uma seringueira perto da sua casa no seringal Albracia - Lalo de Almeida/Folhapress

Vizinha de Francisco, Luzineide Marques da Silva, 41, é uma das poucas pessoas que cortam seringa no Albracia. Há dois anos, sua produção é comprada pela empresa de sapatos Veja, de capital francês e que incentiva práticas sustentáveis. A borracha é levada até o Rio Grande do Sul, onde está a fábrica.

"Neste momento, a venda da borracha está ótima. Já vendi a R$ 1. Agora, está R$ 13,50, sendo que R$ 8 a empresa paga e R$ 5,50 vêm de subsídio", afirma Luzineide, que também quebra castanha, colhida entre dezembro e fevereiro, mantém uma roça e cria algumas vacas, dentro do limite legal.

Antes da chegada dos sapatos Veja, a seringueira diz que sua família atravessava dificuldades. "No verão, estávamos passando necessidade, porque nós produzimos o leite, o arroz, o feijão, cultivamos o milho pra alimentar as galinhas, mas nós precisamos comprar o açúcar, o sal, o sabão, o óleo, essas outras coisas, né? Medicação nós precisamos, manter nossos filhos na escola, principalmente isso."

Atualmente, diz, "dá pra viver, não passamos fome". "Quando estamos em agosto, a seringa diminui, aí a gente já começa a passar um pouco de necessidade se for um ano que não temos legumes. No ano em que temos legumes dá pra comer bem, viver normal."

Na sua colocação, ela mora com o marido, a quem ensinou a extrair seringa, três filhas, um cunhado e cinco netos. Ela nasceu na Resex e aprendeu a profissão com o pai, por ser a filha mais velha. Vivem em duas casas de madeira, não muito diferentes da do vizinho Francisco.

Lalo de Almeida/Folhapress

A seringueira diz que a partilha da terra entre os filhos não é desculpa para o desmatamento e aponta os índios como exemplo. "No ano passado, era um hectare com plantação de arroz, éramos dez pessoas e não conseguimos colher tudo em 20 dias. Perdemos 6.000 quilos. Por aí a gente já calcula, não precisa derrubar em grande quantidade. Não há necessidade de cada filha minha ter um roçado porque não daremos conta de plantar, de limpar e colher. Um exemplo são os indígenas, têm uma plantação só e todos vivem daquilo".

Apesar de satisfeita com o tamanho da roça e com o preço da borracha, ela diz que a maioria dos seringueiros não tem o mesmo cálculo e está optando pelo gado. Das 35 colocações da sua região, afirma, apenas três trabalham com a seringa. Com a recente onda de desmate, a sua colocação está se transformando em uma ilha de floresta cercada de pasto.

"Isso foi o maior crime que aconteceu na face da Terra", diz Luzineide, sobre o avanço do pasto sobre os seringais e a venda ilegal de lotes. "Se a Resex continuar indo no patamar que está indo hoje, nesse ritmo vai estar toda no chão. Só as famílias tradicionais, que nunca venderam um pedaço de chão, que nunca tiveram a cabeça pra criar boi é que vão manter suas condições em pé e talvez podem até ser mortas porque vão invadir."

Ao menos nesse ponto, Francisco concorda com a vizinha que o futuro será sombrio: "Está mais quente o dobro. Era muito bom. Tinha friagem de oito dias sem ver o Sol. Agora não, passa um dia nublado, dois dias, o Solzão já parte, não tem quem aguente. Os diaristas [trabalhadores braçais] só faltam morrer. Uns dizem que foi mais desmatação da floresta. Outros dizem que estamos no fim das eras."

Casa de Chico Mendes em Xapuri (AC), onde ele foi assassinado em 1988;o local funcionava como um museu, mas estava fechado para visitação por falta de verba do governo estadual
Nióbio de tolo

Sem esperança em mineração, índios da maior jazida do minério do mundo sonham com turismo e reclamam de estrada

Formações rochosas às margens do lago do Dragão; região dentro da Terra Indígena Balaio concentra uma das maiores reservas de nióbio do mundo

Formações rochosas às margens do lago do Dragão; região dentro da Terra Indígena Balaio concentra uma das maiores reservas de nióbio do mundo

Fabiano Maisonnave Lalo de Almeida
Terra Indígena Balaio (AM)

No mapa, São Gabriel da Cachoeira (AM), a 2h20 de voo de Manaus, é um ponto verde na floresta amazônica. Para quem vive na região, trata-se do epicentro de um município de tamanho comparável à Inglaterra, onde habitam 23 povos indígenas. A algumas dezenas de quilômetros da cidade, está o maior depósito mundial de nióbio, o mineral que se tornou uma obsessão para o presidente Jair Bolsonaro e para a extrema direita brasileira.

São 2,9 bilhões de toneladas no subsolo, nunca explorados. Sobre a jazida, montanhas, formações rochosas de diversos formatos, orquídeas e lagoas de diferentes cores formam uma das regiões mais singulares da Amazônia, distante da infinita planície verde associada à região.

Antes do início da pandemia do novo coronavírus, a reportagem da Folha visitou o local, conhecido como Seis Lagos, guiada por moradores da Terra Indígena (TI) Balaio. As comunidades ali debatem se a região tem mais vocação para o turismo ou para a mineração, embora estejam mais preocupados com seu quase isolamento devido ao péssimo estado de conservação da BR-307, a rodovia de acesso.

"Uns têm os olhos pra trabalhar no minério, mas, se for ver bem, é muito complexo de trabalhar. Outros veem com potencial de trabalhar com etnoturismo e ecoturismo", diz o agente de saúde indígena André Veloso, 32, que acompanhou a reportagem, sobre a opinião dos 350 moradores da TI, de diversos povos.

De novo, o mapa pode ser enganoso. A distância de São Gabriel até a comunidade Ya-Mirim, que dá acesso a Seis Lagos, conta apenas 85 km, via BR-307, cruzando a linha do Equador. Na prática, a rodovia federal é um corredor de lama, por onde só passam Toyotas Bandeirantes. A reportagem percorreu o trecho em 4h30, numa velocidade de 19km/h. O preço: R$ 2.000, ida e volta.

Neblina no lago do Dragão, cercado por uma floresta
Neblina no lago do Dragão, cercado por uma floresta - Lalo de Almeida/Folhapress

Após chegar à comunidade e passar a noite ali, foi preciso subir o igarapé com o mesmo nome por cerca de 2h. Depois, a parte mais exaustiva: 4h de caminhada montanha acima. No caminho, a altura das árvores diminui à medida que a altitude sobe e o terreno fica mais pedregoso. A primeira lagoa, de águas verdes, aparece no caminho, no fundo de um vale.

A reportagem acampou por uma noite à beira do lago do Dragão, cercado por rochas pontiagudas de cor terrosa e uma floresta de média estatura e arbustos, alguns com flores. A neblina é comum e, quando chega, cobre tudo num piscar de olhos.

Caminhonetes percorrem a BR-307 no trecho que liga São Gabriel da Cachoeira à a comunidade Ya-Mirim dentro da Terra Indígena Balaio

Caminhonetes percorrem a BR-307 no trecho que liga São Gabriel da Cachoeira à a comunidade Ya-Mirim dentro da Terra Indígena Balaio Lalo de Almeida/Folhapress

A exploração do nióbio em Seis Lagos tem dois obstáculos quase intransponíveis. Pela legislação atual, Seis Lagos está fora do alcance da mineração. O local está incluído em três áreas protegidas e sobrepostas: além da TI Balaio, a área pertence ao Parque Nacional Serra da Neblina e à Reserva Biológica Morro dos Seis Lagos, esta do governo estadual do Amazonas. Nenhuma dessas categorias permite a atividade.

Outro impeditivo à exploração do nióbio amazônico está na demanda. As projeções são unânimes em afirmar que as reservas atuais em exploração têm capacidade para atender ao mercado mundial durante várias décadas.

O Brasil já é o principal produtor mundial, com 88% do total, segundo o Serviço Geológico dos EUA. A maior parte do nióbio vem da CBMM (Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração), sob controle da família sócia do Itaú Unibanco, localizada em Araxá (MG). A empresa estima ter reservas para produzir por pelo menos mais dois séculos.

"Não existe interesse de mineradoras no Morro de Seis Lagos", afirma o geólogo Tadeu Veiga. Atualmente, professor voluntário da UnB (Universidade de Brasília), ele esteve na região em 1997, representando uma empresa de mineração. À época, a CPRM (Serviço Geológico do Brasil) tinha a intenção de licitar os direitos minerários, mas os planos nunca foram adiante.

Apesar da falta de mercado para um eventual aumento da produção, Bolsonaro costuma usar o nióbio como justifica para abrir a mineração em terras indígenas –a atividade está permitida pela Constituição, desde que regulamentada e após consulta prévia aos povos afetados.

André Veloso caminha pela trilha que leva ao Morro dos Seis Lagos
André Veloso caminha pela trilha que leva ao Morro dos Seis Lagos - Lalo de Almeida/Folhapress

Em 2016, quando se preparava para a campanha presidencial, Bolsonaro produziu um vídeo sobre o nióbio, gravado em Araxá. Com um pedaço de mineral nas mãos, disse: "Isto pode nos dar independência econômica." Em outro trecho, menciona a demarcação de terras indígenas como uma barreira à exploração mineral.

A declaração mais recente foi em junho de 2019. Do Japão, onde participava a reunião do G20, Bolsonaro exibiu uma bijuteria com nióbio durante transmissão pelo Facebook. Disse que o cordão valia R$ 4.000, mais caro do que ouro.

A informação está errada. Um grama de ouro (R$ 293 no final de maio) é mais caro do que um quilo de ferronióbio (cerca de R$ 215), o produto mais caro da CBMM.

A falsa noção de que o nióbio é a panaceia para a economia brasileira tem origem no líder ultranacionalista Enéas Carneiro, cujas ideias influenciam o bolsonarismo. "Só o nióbio permitir-nos-ia ter uma moeda própria, lastreada nele", disse, em uma entrevista em 2006, um ano antes de morrer.

Em fevereiro, Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto de lei sobre a abertura de terras indígenas para mineração. A proposta, criticada pela maior parte do movimento indígena, prevê que os povos afetados terão poder de veto em caso de garimpos, mas não de grandes projetos mineradores.

Ao justificar o projeto à época, Bolsonaro disse que "[o indígena] tem coração, tem sentimento, tem alma, tem necessidade e tem desejos e é tão brasileiro quanto nós".

O agente de saúde indígena André Veloso conduz uma canoa pelo igarapé Ya-Mirim rumo ao início da trilha que leva ao Morro dos Seis Lagos

O agente de saúde indígena André Veloso conduz uma canoa pelo igarapé Ya-Mirim rumo ao início da trilha que leva ao Morro dos Seis Lagos Lalo de Almeida/Folhapress

A promessa de legalização tem estimulado a invasão de garimpeiros, aliada à orientação de Bolsonaro para frear operações do Ibama. Em abril, dois coordenadores de fiscalização do órgão ambiental foram demitidos em represália ao fechamento de garimpos em terras indígenas localizadas na região do Médio Xingu, no Pará.

Impulsionados também com a alta de preço do ouro, os garimpos ilegais crescem nas TIs Raposa/Serra do Sol (RR), Yanomami (RR/AM) e Munduruku (PA), entre outras.

A TI Balaio não tem garimpo, mas é rota de garimpeiros rumo a explorações ilegais de ouro na TI Yanomami e na Venezuela. Para isso, contam com a vista grossa da barreira do Exército na estrada, que não os barra.

Quando a reportagem passou ali, os militares parecem apenas preocupados em identificar estrangeiros –depois de algumas perguntas para confirmar a nacionalidade, reportagem nem sequer precisou mostrar documentos. Na comunidade Ya-Mirim, ao menos três garimpeiros aguardavam transporte.

Vista do lago na Reserva Biológica Morro dos Seis Lagos, que concentra uma das maiores reservas de nióbio do mundo

Vista do lago na Reserva Biológica Morro dos Seis Lagos, que concentra uma das maiores reservas de nióbio do mundo Lalo de Almeida/Folhapress

Vista aérea do lago na Reserva Biológica Morro dos Seis Lagos

Vista aérea do lago na Reserva Biológica Morro dos Seis Lagos Lalo de Almeida/Folhapress

As condições precárias da rodovia são um martírio tanto para os indígenas da TI Balaio quanto para os ianomâmis da comunidade Maturacá, onde vivem 2.100 pessoas. Usando o igarapé Ya-Mirim, que atravessa a comunidade, eles ainda têm de viajar por cerca de um dia até chegar a casa, a bordo de canoas movidas a rabeta, o motor mais econômico.

Os indígenas costumam ir com frequência a São Gabriel da Cachoeira receber o Bolsa Família e outros benefícios, e não raro gastam todo o dinheiro do programa com transporte.

Por causa do preço alto, o frete da Toyota costuma ser dividido entre famílias. Muitos viajam na carroceira, incluindo criança e idosos. Problemas mecânicos e carros atolados são mais regra do que a exceção, e não é raro pernoitar na estrada até outro "toyoteiro" fazer o resgate.

"É muito triste, o povo aqui sofre muito", afirma Tiago Fernandes Sampaio, 49, tucano, presidente da associação da TI Balaio. "Antes, eram 2h de viagem. Agora, não. Às vezes, sai na madrugada e chega de madrugada do dia seguinte, as peças da Toyota quebram no meio. Quando tem resgate de pessoas com doença grave, às vezes morre no meio da estrada."

O agente de saúde indígena André Veloso pega água no lago do Dragão

O agente de saúde indígena André Veloso pega água no lago do Dragão Lalo de Almeida/Folhapress

Além de moradores e garimpeiros, essa também é a rota para turistas dispostos a subir o Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil, acessível via Maturacá. A montanha está dentro tanto do parque nacional com o mesmo nome quanto do território ianomâmi. Antes, precisam viajar até São Gabriel a partir de Manaus –até a suspensão devido à pandemia da Covid-19, havia três voos comerciais por semana.

O projeto de visitação, autorizado pela Funai e pelo ICMBio, seria uma fonte de renda para os ianomâmis de Maturacá e teria início em março, mas a pandemia da Covid-19 adiou a abertura indefinidamente.

A experiência dos ianomâmis recepcionando visitantes tem sido acompanhada com atenção na TI Balaio. "O mais viável no momento seria o turismo", afirma o cacique Veloso, do povo desana, ao comparar com a mineração. "Tem vários lugares bonitos, a comunidade, cachoeira, igarapés pra tomar banho. Falta só organização e estrutura."

"A junção do ecoturismo com a vivência étnica junto às populações indígenas, que receberão os visitantes, trará um tempero especial ao destino", diz o empresário de turismo Kleber Bechara, ex-chefe da Rebio Seis Lagos.

Para o empresário, há potencial para o turismo de expedição. "É uma região remota, de difícil acesso. Com a infraestrutura adequada, pode se tornar um atrativo a mais para um nicho específico de público, que procura por essas experiências, com segurança."

Via email, o Centro de Comunicação Social do Exército informou que está realizando obras de recuperação e conservação por meio de duas operações, a um custo de R$ 19,2 milhões, para manter a trafegabilidade até a TI Balaio. A previsão para a conclusão das obras é novembro deste ano.

Sobre a política sobre a passagem de garimpeiros pela barreira, a resposta foi de que "não há nenhum tipo de bloqueio realizado pelo Exército Brasileiro na referida BR". A reportagem mantém a informação de que existe, sim, uma barreira, havendo inclusive um portão.

Indígenas descarregam peixe no porto de São Gabriel da Cachoeira (AM)
Indígenas descarregam peixe no porto de São Gabriel da Cachoeira (AM) - Lalo de Almeida/Folhapress

Com ou sem exploração de nióbio, a mineração tem sido um dos temas mais discutidos entre os indígenas desde pelo menos a década de 1970, quando garimpeiros e mineradores invadiram a região.

Para expulsá-los, os indígenas se organizaram por meio da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro). Fundada em 1987, pressionou pela demarcação das terras indígenas. Hoje, reúne 90 associações, que representam 700 comunidades e cerca de 50 mil pessoas, espalhados entre 23 povos.

"Invadiram o nosso território e estávamos sem segurança. Houve matança entre indígenas e os garimpeiros", afirma o diretor da Foirn Adão Henrique, do povo baré. "Com a força do movimento e da Funai, houve a retirada".

Contrária à proposta de Bolsonaro, a Foirn nunca foi procurada para discutir mineração pelo governo federal, segundo Henrique. O dirigente assegura que a entidade está aberta a conversar sobre o tema.

"Queremos desenvolvimento, mas uma discussão participativa. Tem de ser passo a passo, cumprir a legislação, tanto internacional quanto brasileira", afirma. "O movimento vai continuar firme contra esse pensamento do governo atual, para não deixar que os povos indígenas do rio Negro sejam prejudicados ou iludidos com projetos que não darão certo."

Indígenas da comunidade Ya-Mirim tomam banho em um rio na Terra Indígena Balaio, na região de São Gabriel da Cachoeira
Indígenas da comunidade Ya-Mirim tomam banho em um rio na Terra Indígena Balaio, na região de São Gabriel da Cachoeira - Lalo de Almeida/Folhapress

Politicamente distante da Foirn, o prefeito de São Gabriel da Cachoeira, Clóvis Saldanha (PT), o Corubão, do povo tariano, se elegeu prometendo regularizar garimpeiros indígenas _atividade que ele mesmo já exerceu. Ao assumir, em 2018, criou o Departamento de Pequena Mineração Responsável, com o objetivo de fomentar a atividade sem grandes empresas.

Na assessoria do departamento, está Cisneia Menezes Basilio. Do povo desana, é a primeira geóloga indígena do país, após se formar pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas).

Basilio afirma que a região tem uma grande diversidade geológica, mas ainda pouco estudada. Cita ocorrências de tantalita (usado na indústria tecnológica) e ouro, além de pedras como ametista, quartzo, turmalina e água-marinha. Assim como outros especialistas, ela não vê viabilidade na exploração de nióbio em Seis Lagos.

Na prefeitura, a geóloga diz que o objetivo é estimular a incipiente produção de biojoias por meio da capacitação de artesãos e levar informação sobre exploração mineral e legislação às comunidades.

"Quando as comunidades souberam da existência do departamento e que tinha uma geóloga, eles começaram a vir com as suas amostras para tentar identificar o que era, querendo saber de preço, achando que aquele cascalho de quartzo, de ametista ou aqueles farelinhos de tântalo poderiam mudar as suas vidas", diz, em entrevista no seu escritório, onde guarda várias dessas amostras.

"O povo de São Gabriel não está carente de liberação ou de mineração, mas de informação. O que está tramitando no Congresso é mineração em grande escala, e muitas vezes o nosso povo lá da base entende que é algo que eles vão trabalhar, algo que irá beneficiá-los diretamente. A gente sabe que não é verdade", afirma.

"A gente não os ilude, pelo contrário. O papel do departamento é esclarecer essa população sobre os seus direitos previstos na Constituição de 1988 e ver as possibilidades de atividades em que o indígena possa ser protagonista no usufruto dos seus recursos naturais."

Rochas pontiagudas de cor terrosa na maior jazida de nióbio do mundo, em Seis Lagos

Rochas pontiagudas de cor terrosa na maior jazida de nióbio do mundo, em Seis Lagos Lalo de Almeida/Folhapress

Da castanha ao pasto

Esperança de regularização faz com que grileiros transformem castanhais em pasto no AM

Jasson Oliveira do Nascimento, morador da Reserva Extrativista Arapixi (AM), coleta castanha na área do Projeto de Assentamento Extrativista Antimary, que está sendo invadida por grileiros

Jasson Oliveira do Nascimento, morador da Reserva Extrativista Arapixi (AM), coleta castanha na área do Projeto de Assentamento Extrativista Antimary, que está sendo invadida por grileiros

Fabiano Maisonnave Lalo de Almeida
Resex Arapixi (AM) e Vila do V (AC)

Há pelo menos três gerações, a família de Raimundo Benedito, 35, quebra castanha às margens do igarapé do Cedro, perto da divisa do Amazonas com o Acre. A rotina começou a mudar há quatro anos, quando surgiram picadas e pessoas desconhecidas no meio da mata. A partir daí, os castanhais nativos passaram a ser derrubados para dar lugar ao pasto.

"Na primeira vez que topamos com os caras lá, um deles disse: 'Se vocês quiserem alguma coisa, têm de ir pro final da picada e fazer um lote pra vocês, porque aqui mesmo todo o mundo já tem dono", diz Benedito, em conversa na varanda da sua casa de madeira, a poucos metros do rio Purus, na Reserva Extrativista (Resex) Arapixi.

A invasão da pecuária sobre áreas de populações tradicionais é recorrente na Amazônia. A criação das Resex, a partir do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, em 1988, foi a resposta do governo federal para conter esse avanço. Administradas pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), são áreas protegidas com o objetivo de assegurar o modo de vida de populações tradicionais não indígenas e de incentivar o uso sustentável dos recursos naturais.

O problema dos Benedito e de dezenas de outras famílias é que, na Resex Arapixi, a delimitação, oficializada em 2006 durante o governo Lula (PT), deixou os castanhais de fora. Localizados perto de igarapés que desembocam no Purus, eles ficam dentro do Projeto Agroextrativista (PAE) Antimary, uma área delimitada em 1988. Sob responsabilidade do Incra, tem uma proposta de uso tradicional parecida à de uma Resex –e também proíbe a pecuária em larga escala.

Alunos jogam futebol no intervalo da aula na comunidade Maracaju I, dentro da Reserva Extrativista Arapixi, no Amazonas
Alunos jogam futebol no intervalo da aula na comunidade Maracaju I, dentro da Reserva Extrativista Arapixi, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

Junto com a banana, a castanha é a principal renda dos moradores da Resex Arapixi. A coleta, feita no início do ano, costuma envolver toda a família –Benedito começou aos 12 anos. Durante um mês, eles se mudam para um barraco erguido dentro da colocação, o nome dado à região de castanhais exploradas por cada família.

A viagem é feita de canoa em igarapés sinuosos. Muitas vezes, a passagem fica obstruída por árvores que caem naturalmente e precisam ser cortadas com motosserra. Cada vez que a embarcação encosta nas folhas das margens, aranhas de várias espécies e tamanhos caem sobre os passageiros.

A rotina exaustiva começa de madrugada e termina no meio da tarde. Ao redor das árvores majestosas de até 50 metros de altura, os castanheiros recolhem os ouriços, os quebram com facões, retiram a castanha-do-Pará e as transportam usando paneiros (cestas artesanais).

No barraco, as famílias dormem em redes, um sono muita vezes interrompido pelos mosquitos, como o minúsculo maruim, que ataca no couro cabeludo e provoca uma forte coceira.

Ao final de um mês de coleta, as famílias voltam com as canoas abarrotadas. Geralmente, a produção é levada para Boca do Acre (AM), também às margens do rio Purus.

Jasson Oliveira do Nascimento, morador da Reserva Extrativista Arapixi, corta a vegetação para abrir caminho para a canoa no igarapé que leva ao Projeto de Assentamento Extrativista Antimary, onde coleta castanhas

Jasson Oliveira do Nascimento, morador da Reserva Extrativista Arapixi, corta a vegetação para abrir caminho para a canoa no igarapé que leva ao Projeto de Assentamento Extrativista Antimary, onde coleta castanhas Lalo de Almeida/Folhapress

De início, os moradores não sabiam os limites da Resex. Benedito diz que só os descobriu em 2010, quando a sua família cruzou com uma equipe do ICMBio na áreas dos castanhais. "Aí o pai respondeu: 'Mas então a Resex só ficou com área alagada? Porque aqui só é igapó, o principal era o castanhal e ficou todo lado de fora." Ele disse: "É, infelizmente é isso".

"Apesar de ser uma área utilizada pelos extrativistas, o fato de os castanhais estarem dentro do PAE levou ao entendimento de que estavam protegidos e disponíveis para a exploração sustentável", afirma João Paulo Capobianco, então presidente do ICMBio durante a demarcação, em 2006. "Não se esperava que o PAE seria objeto de conflito com pecuaristas que vêm ocupando o assentamento, promovendo o desmatamento ilegal e conflitos com as famílias ligadas ao extrativismo e agricultura familiar", diz.

Esse processo de invasão começou há cerca de uma década, se intensificou a partir de 2014, no governo Dilma (PT), e ganhou um novo impulso no ano passado, em meio a promessas do governo Jair Bolsonaro de regularizar posses dentro de terras públicas invadidas.

Marco temporal da regularização fundiária na Amazônia - de Lula a Bolsonaro

25 de junho de 2009 Lei 11.952 - Aprovada na gestão de Lula (PT), autorizou a emissão de títulos de áreas públicas de até 1.500 hectares na Amazônia, ocupadas e desmatadas ilegalmente até dezembro de 2004, e dispensou a vistoria prévia à emissão de título para áreas de até 400 hectares

28 de outubro de 2009 Decreto 6.992 -regulamentou a Lei 11.952, estipulando as regras para dispensa de vistoria em imóveis com até 400 hectares e exceções como autuação ou embargo por infração ambiental, requeridas via procuração, com indícios de conflito de terra ou de fracionamento da área

22 de dezembro de 2016 Medida Provisória 759 - Proposta por Michel Temer (PMDB), alterou a Lei 11.952/2009, aumentando a área passível de regularização para até 2.500 hectares, e mudou o marco temporal para regularização de terras públicas invadidas para dezembro de 2011

11 de julho de 2017 Lei 13.465 - Sancionada no governo Temer, ampliou regras da Lei 11.959/2009 para todo o Brasil, oficializou a ampliação das áreas passíveis de regularização para até 2.500 hectares e o marco temporal de dezembro de 2011, previstos na MP 759

15 de março de 2018 Decreto 9.309 - Publicado no governo Temer, manteve as exceções do Decreto 6.992/2009 para a isenção de vistoria na avaliação do imóvel: imóvel embargado ou autuado por infração ambiental, com indício de fracionamento, cadastrado via procuração ou com conflito de terra

10 de dezembro de 2019 MP 910 - Proposta por Jair Bolsonaro (sem partido), aumentou para 1.500 hectares as áreas passíveis de dispensa de vistoria para regularização, além de mudar o marco temporal para regularização de 2011 para dezembro de 2018. A MP vigorou de dezembro de 2019 a maio de 2020

10 de dezembro de 2019 Decreto 10.165 - Publicado por Bolsonaro, alterou o Decreto 9.309/2018, revogando as exceções para a isenção da vistoria prévia à titulação dos imóveis rurais, tornando o processo menos rígido

16 de abril de 2020 Instrução Normativa 09, da Funai - Reconhece a possibilidade de regularização de ocupações privadas dentro de territórios indígenas em fase de homologação, estimulando a invasão dessas áreas. A IN 09/2020 foi suspensa em 9 de julho pela Justiça Federal do Mato Grosso

14 de maio de 2020 Projeto de Lei 2.633 - Proposto pelo deputado federal Zé Silva (Solidariedade-MG), amplia a isenção de vistoria para imóveis de até 600 hectares e estabelece a regularização via licitação para propriedades que não atendam ao marco temporal vigente, sem, no entanto, vetar a participação do invasor no processo, estimulando assim invasões na expectativa da regularização futura

O ano-calendário de 2019 foi o mais devastador da história do PAE Antimary, segundo o monitoramento Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Foram perdidos 5.108 hectares de floresta de agosto de 2018 a julho do ano seguinte.

Uma perícia da Polícia Federal revelou que, somente entre 27 de abril e 9 de setembro do ano passado, foram desmatados ilegalmente 2,8 mil hectares, o equivalente a 18 áreas do parque Ibirapuera, em São Paulo.

Área desmatada por invasores, que ameaçam o modo de vida dos extrativistas da Resex Arapixi, dependentes da coleta das castanhas para sobreviver

Área desmatada por invasores, que ameaçam o modo de vida dos extrativistas da Resex Arapixi, dependentes da coleta das castanhas para sobreviver Lalo de Almeida/Folhapress

Alheio aos dados de satélite, Benedito confirma o aumento do estrago. "Primeiro, só derrubavam um pouquinho aqui e plantava um pouquinho de capim, derrubava um pouquinho aqui e plantava um pouquinho de capim. Agora não, estão emendando esses pouquinhos, cada pouquinho estão emendando tudo já. Grande derrubada mesmo", afirma. "Na nossa colocação, aumentou mais no ano passado."

Derrubar castanheira é crime, já que a espécie consta na Lista Nacional Oficial de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção, na categoria vulnerável. Além disso, desde 2006, um decreto federal proíbe a sua exploração para fins madeireiros.

Na área de castanhais percorrida pela Folha em meados de março, o desmatamento abre clarões na floresta e chega até a beira do igarapé Cedro. Algumas partes foram recém-derrubadas, enquanto outras já estão com pasto. Em uma delas, havia uma casa de madeira recém-construída.

Além da perda dos castanhais, alguns extrativistas são obrigados a ceder parte de sua produção. Outros afirmam que os próprios invasores coletam o fruto, e há casos de venda de colocação –prática ilegal, já que se trata de terra pública.

A família Benedito já perdeu uma parte dos castanhais, mas resiste ao assédio: "Já teve proposta grande pra vender, mas o meu pai nunca vendeu. Sempre o propósito dele é dizer assim: 'Se eu vender, hoje pego o dinheiro, amanhã acaba, e aí? Os meus filhos, meus netos, como é que vão viver?". Isso aí já vem de muito tempo, passou pro meu avô, do meu avô já passou pra ele, dele já está passando pra nós."

Madeira usada para fazer cerca armazenada em uma área desmatada dentro do Projeto de Assentamento Extrativista Antimary, no limite com a Reserva Extrativista Arapixi, no Amazonas
Madeira usada para fazer cerca armazenada em uma área desmatada dentro do Projeto de Assentamento Extrativista Antimary, no limite com a Reserva Extrativista Arapixi, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

A promessa de Bolsonaro de legalizar grilagens e reduzir a proteção ambiental ganhou forma em dezembro, quando ele assinou a Medida Provisória (MP) 910. O texto original estendia até o final de 2018 o marco temporal para a regularização de terras públicas invadidas. Entre outras facilidades, o governo também previa a venda dessas áreas aos grileiros a preços bem abaixo dos valores de mercado.

"Temos mais de 30% de áreas [da Amazônia Legal] que não têm nada e são da União. Terra da União é dos senhores, é do povo. Vamos ter de voltar ao exemplo do saudoso presidente Emílio Garrastazu Medici (1969-1974) e dizer: vamos integrar a Amazônia brasileira para não entregá-la a essas ONGs que têm interesses escusos", discursou, em setembro, o secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, durante audiência pública em Porto Velho (RO).

Após forte crítica de ambientalistas e campanha nas redes sociais, em maio a MP 910 foi substituída no Congresso pelo Projeto de Lei 2.633, que mantém o atual marco temporal de regularizar terras ate 2011, mas com brechas.

"Querem adicionar um dispositivo para licitar imóveis que não se enquadram nos requisitos de regularização, mas sem prever critérios específicos pra impedir distorções. Isso pode significar legalização de áreas invadidas depois de março de 2011 ou até após a aprovação desse PL", diz a pesquisadora Brenda Brito, do Imazon (Instituto Homem e Meio Ambiente da Amazônia).

Para o procurador Rafael Rocha, do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, as mudanças sucessivas no marco temporal ao longo da história, novamente propostas sob Bolsonaro, alimentam a indústria da grilagem na Amazônia.

"Sinalizam que o que é ilegal hoje ou mesmo o que é ilegal à luz da MP e do projeto de lei podem ser regularizados amanhã", diz Rocha. "O sujeito não se preocupa em cometer uma ilegalidade invadindo ou ocupando uma terra pública. Ele acaba acreditando que, mesmo que ele nao esteja enquadrado hoje na norma, daqui a alguns anos vai obter regularização."

Construção queimada por equipe de fiscalização em área desmatada ilegalmente

Construção queimada por equipe de fiscalização em área desmatada ilegalmente Lalo de Almeida/Folhapress

A situação dos castanheiros tem recebido a atenção da Força-Tarefa Amazônia, criada em 2018 pelo MPF. A iniciativa, da qual participa Rocha, aborda problemas ambientais e fundiários de forma integrada com órgãos públicos e a sociedade civil.

Em maio, o MPF participou de uma operação conjunta no PAE Antimary contra o desmatamento, com participação do Exército, do Ibama, da PM, do ICMBio e da PF.

Ao longo de seis dias, foram cumpridos 76 mandados de busca e apreensão. Treze pessoas foram presas em flagrante, além de 14 armas de fogo e 14 motosserras. As multas aplicadas pelo Ibama somam R$ 2 milhões, segundo nota do MPF.

Em maio do ano passado, o Incra concedeu autorização de uso dos castanhais do PAE Antimary pelos castanheiros. A iniciativa teve intermediação do MPF, que tem defendido a alteração dos limites da Resex para a inclusão dos castanhais.

Benedito, no entanto, está pessimista com o futuro: "Com essa derrubada toda, o nosso rio [Purus] está secando. Eu nasci ontem, mas já vejo. Quando chegava o verão [período seco], nunca tinha problema pra descer. Hoje, se sai carregado mais um pouquinho, sai de manhã, chega [a Boca do Acre] de tarde, de noite. É no rio mesmo, não é só no castanhal, é na população inteira."

Movimentação de embarcações no rio Purus, em frente à comunidade Maracaju I, naa Reserva Extrativista Arapixi (AM)

Movimentação de embarcações no rio Purus, em frente à comunidade Maracaju I, naa Reserva Extrativista Arapixi (AM) Lalo de Almeida/Folhapress

A ponta de lança da invasão está a cerca de 80 km em linha reta da divisa do PAE. É a Vila do V, a 43 km de Rio Branco. Dentro do município de Porto Acre, tem casas simples e poucas ruas asfaltadas. Como em outras regiões do Acre, está dominada por uma facção criminosa formada por jovens ligados ao tráfico. Pichações nas paredes recomendam abaixar o vidro para não ser morto por engano. É ali que também mora o invasor Sebastião Ferreira de Sales, 56.

Após ser contatado pela Folha via WhatsApp, Sales aceitou ser entrevistado na casa simples de madeira onde mora quando está na "rua", pertencente a um amigo. Estava acompanhado da mulher, Ana Paula das Neves.

Pichação de facção criminosa em uma casa na Vila do V, comunidade de Porto Acre onde moram alguns do grileiros acusados de desmatar a região do entorno da Reserva Extrativista Arapixi
Pichação de facção criminosa em uma casa na Vila do V, comunidade de Porto Acre onde moram alguns do grileiros acusados de desmatar a região do entorno da Reserva Extrativista Arapixi - Lalo de Almeida/Folhapress

Natural do Espírito Santo, Sales era quase adolescente quando se mudou em 1978 com a família para Jaru, em Rondônia. Ali, eles adquiriram 40 alqueires (109 hectares). Era o início da colonização promovida pela ditadura militar, ao longo da BR-364 (Cuiabá-Porto Velho). Ele conta que a terra era tão barata que o pagamento foi uma bicicleta Caloi de dois canos.

Sales estudou só até o 4º ano do ensino fundamental. A vida era na roça. Plantava cacau e arroz, mas o sítio ficou pequeno para a família de oito irmãos. Em 2002, se mudou para o Acre. "Vim pra tirar madeira. Tirei madeira uns dez anos, mais ou menos. Como a madeira ficou muito ruim, fui mexer com terra."

Em 2013, ele assinou um contrato particular para adquirir 1.293 hectares dentro do PAE Antimary, em uma região chamada Seringal Nazaré. Alega que não sabia à época que se tratava de terra pública federal. O valor, registrado em R$ 60 mil, foi pago pelo patrão, no lugar da indenização trabalhista. Diferentemente de outros invasores, sua área está longe dos castanhais usados pelos moradores da Resex.

A primeira multa, por desmatamento de 98 hectares, foi lavrada no ano seguinte, 2014, mas o ex-madeireiro não se abalou: "Até aí, só multaram, não tinha problema nenhum. Recorri da multa e ficou bom, botei o gado em cima da área".

Ele voltou a desmatar mais 98 hectares entre 2017 e 2018, quando acabou preso pela PF por invasão de terras públicas, posse ilegal de arma e descumprimento de embargo durante uma operação contra o desmatamento.

Área desmatada por grileiro dentro do Projeto de Assentamento Extrativista Antimary

Área desmatada por grileiro dentro do Projeto de Assentamento Extrativista Antimary Lalo de Almeida/Folhapress

"Fiquei uma noite na PF, dormi duas noites na Penal [Rio Branco] e saí. O delegado falou: 'O senhor está proibido de voltar e de exercer qualquer atividade. Se eu pegar o senhor lá de novo, vamos prender de novo. Não tenho onde morar. Na segunda, a gente voltou pra lá. Aí fiquei, fiquei."

No depoimento, Sales afirmou que, dois meses antes da prisão, havia participado de uma reunião com o Incra em que funcionários prometeram legalizar sua área. Disse também que não respeitou o embargo porque, se saísse dali, sua fazenda corria o risco de ser invadida. Citou que precisa pagar pensão alimentícia de R$ 1.000 para dois filhos menores.

O invasor nega que tenha derrubado castanheiras, mas admite que elas podem ter queimado durante o processo de desmate: "Algumas o fogo sapeca, ela não aguenta quentura de fogo, mas meter motosserra, derrubar, não derruba, porque sabe que é crime. O fogo já é crime. Se você derrubar castanheira, o crime já vai dobrar. Então como chegar no mato e meter motosserra em castanheira?"

Castanheiras mortas em área desmatada
Castanheiras mortas em área desmatada - Lalo de Almeida/Folhapress

A PF o indiciou por três crimes: invasão e ocupação de terra pública, desmatamento e posse ilegal de arma de fogo. Somadas, as penas podem chegar a dez anos de prisão.

No ano passado, a sua área foi mais uma vez alvo de operação, desta vez com a participação do Exército, via GLO (Garantia da Lei e da Ordem). "Arrebentaram a porta do quarto, a janela, e entraram pra dentro de casa, mexeram na nossa documentação todinha. Sumiram dois cofres de moeda."

"Tinha uma espingarda do meu sogro, atrás do guarda-roupa, eles pegaram. Largaram as porteiras todas abertas, eles disseram que a área estava embargada, não tinha problema de o gado sair. Ficaram faltando 11 vacas e 21 bezerros", acusa.

Mesmo após essa terceira operação, Sales e a esposa continuam na área. Em sua nova tentativa de ficar com a fazenda, o casal entrou na Justiça com ação possessória e um pedido pra não ser perturbado pela fiscalização. Na peça, seu advogado mencionou a MP 910, assinada por Bolsonaro em dezembro. A Justiça Federal negou recursos em abril e maio, e o ex-madeireiro recorreu à segunda instância.

Ele não soube explicar por que seu advogado usou a MP 910, mas diz que, ao contrário de outros invasores, não acredita que Bolsonaro tenha poder para legalizar o desmate.

"Tem gente que falou: 'O Bolsonaro entrou, agora nego vai desmatar, vai derrubar pau, porque ele liberou pra derrubar, vai documentar terra'. Não é assim que funciona, né? Não é porque falou que nego pode derrubar mata à vontade. Ele não é dono do mundo."

Sales diz que a única fonte de renda da região é o gado: "Pecuária não precisa [de incentivo do governo] porque tem comprador de gado pra tudo quanto é lado. Se você descer ali e oferecer dez galinhas, não tem quem compre. Mas, se oferecer mil bezerros, o cara vai olhar amanhã na hora. Esse é o problema. Não existe outro comércio."

Colaborou Monica Prestes, de Manaus

Ouriços de castanha quebrados por extrativistas em castanhal dentro da área do Projeto de Assentamento Extrativista Antimary (AM)

Ouriços de castanha quebrados por extrativistas em castanhal dentro da área do Projeto de Assentamento Extrativista Antimary (AM) Lalo de Almeida/Folhapress

Renascer para quem?

Desmate, invasões e garimpo se alastram por terras indígenas perto do rio Xingu

Em 2019, áreas protegidas Apyterewa e Trincheira Bacajá tiveram seus maiores níveis de desmatamento desde suas homologações

Moradores da conversam na rua principal da Vila Renascer, formada por invasores dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará

Moradores da conversam na rua principal da Vila Renascer, formada por invasores dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará

Fabiano Maisonnave Lalo de Almeida
Terra Indígena Apyterewa e Vila Sudoeste (PA)

Na Amazônia, currutelas são povoados surgidos na boca da floresta, próximas a garimpo ou desmatamento. Criada em 2016, a Vila Renascer não para de crescer. A cada dia, surgem casas, igrejas evangélicas, bares, restaurantes, oficina mecânica, posto de gasolina, mercado, postes de rede elétrica e até um pequeno hotel. Pela lei, no entanto, nada disso deveria existir: o lugarejo está encravado na Terra Indígena Apyterewa (TI), do povo parakanã, homologada em 2007.

A presença de não indígenas em Apyterewa começou no início da década de 1980. A sua retirada era uma das condicionantes da licença ambiental para a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, que atravessa a região. Ao invés disso, a invasão explodiu. No governo Michel Temer (MDB), o Ministério da Justiça ignorou determinação do STF e paralisou a retirada de posseiros e de invasores de má-fé, ou seja, que entraram na área conscientes de que se tratava de uma terra indígena.

Após o recuo do governo, houve novas invasões e abertura de novos garimpos. Esse movimento explodiu no final de 2018 e no início de 2019, com a promessa de Jair Bolsonaro de revisar demarcações de terras. O desmatamento se alastrou para a Trincheira Bacajá, do povo xikrin, enquanto ganhou força o mercado ilegal de lotes dentro das terras indígenas.

O resultado é que, em 2019, Apyterewa perdeu 8.420 hectares de floresta, comparável a 53 Parques Ibirapuera, a maior taxa de desmatamento desde sua homologação, há 13 anos. Trincheira Bacajá teve 5.600 hectares desmatados, também a maior perda de cobertura vegetal desde a homologação, em 1996. Os números são do sistema Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais), que mede de agosto a julho do ano seguinte.

Acima, área desmatada por grileiros dentro da Terra Indígena Trincheira Bacajá; na segunda imagem, posseiros utilizam a ponte que da acesso a terra indígena. Em abril uma operação do Ibama destruiu a ponte, que foi reconstruída pelos invasores.

Acima, área desmatada por grileiros dentro da Terra Indígena Trincheira Bacajá; na segunda imagem, posseiros utilizam a ponte que da acesso a terra indígena. Em abril uma operação do Ibama destruiu a ponte, que foi reconstruída pelos invasores. Lalo de Almeida/Folhapress

"Quando cheguei aqui, só eram a igreja e uma vizinha", diz o pastor Valdir dos Santos, 46, que mora na vila há quatro anos. "Graças a Deus, já está chegando a mais de 2.000 casas."

Natural de Belém, ele trabalhou de início como cabeleireiro na vila. Depois, conseguiu um lote, onde plantou cacau, mandioca e banana. Além disso, administra uma das quatro igrejas evangélicas, onde estima atender a 40 fiéis.

O pastor diz que Renascer recebe famílias até de outros estados, com a esperança de que Bolsonaro regularizará a invasão: "O povo daqui acredita nessa fala do presidente", disse, em conversa na varanda do casebre erguido no lote. "Estamos aguardando esse momento acontecer."

Na entrada da pequena casa de madeira onde funciona a Igreja de Missões, Santos colocou uma faixa com a seguinte passagem bíblica: "Disse: quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus".

o pastor Valdir dos Santos em seu lote
Acima, o pastor Valdir dos Santos em seu lote; abaixo, a igreja do pastor, próxima à Vila Renascer, dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará
Acima, o pastor Valdir dos Santos em seu lote; abaixo, a igreja do pastor, próxima à Vila Renascer, dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará - Lalo de Almeida/Folhapress

Abastecido por uma rede elétrica puxada ilegalmente, Renascer se tornou a base logística para invasão e grilagem de terras indígenas. Para penetrar na floresta, os invasores reativaram uma longa estrada aberta pelos madeireiros ilegais de mogno nos anos 1980. A via começa em Apyterewa, passa pela TI Araweté Igarapé Ipixuna, dos índios arawetés, considerados de recente contato, e chega até Trincheira Bacajá.

Um morador contou ter adquirido um lote a 130 km da vila "na região do Ipixuna", área homologada dos arauetés. Na estrada de terra de acesso à vila, a reportagem encontrou uma família que, em um Fiat Uno abarrotado, estava de mudança para a região, após negociar um lote de 163 hectares por R$ 15 mil.

A presença do estado na Vila Renascer se resume a uma base permanente com funcionários da Funai e policiais da Força Nacional, sem poder de interferência no fluxo de invasores.

Localizada no alto de um morro a algumas centenas de metros da vila, a base inclui uma casa e é protegida por uma cerca de arame. Na entrada, está a placa "Terra Protegida - acesso interditado a pessoas estranhas", que costuma ser colocada nos limites das terras indígenas.

Base da Funai que fica ao lado da Vila Renascer dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará
Base da Funai que fica ao lado da Vila Renascer dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará - Lalo de Almeida/Folhapress

Na área da Apyterewa percorrida pela Folha, predominam pastagens, e o trânsito de caminhões com gado é comum. O município de São Félix do Xingu, onde se localiza a Apyterewa, concentra o maior rebanho do país, com 2,3 milhões de cabeças em 2018. Em dez anos, o crescimento foi de 18%. Os dados são do IBGE.

Por causa da epidemia da Covid-19, a reportagem não visitou as comunidades parakanãs.

A chegada de invasores, geralmente agricultores pobres, tem o incentivo de fazendeiros com terras dentro de Apyterewa, segundo relatos de moradores.

"A gente fica muito alegre, satisfeito. A gente quer mandar os parabéns pra eles porque é uma coisa muito bacana que fizeram pra população", diz o colono goiano Edson de Morais, 51. "Cederam, não pegaram nenhum centavo, fizeram foi dar mesmo pra população. Desde que o pessoal começou a entrar, eles começaram a ajudar. Aí foi dividindo, dividindo, até que encheram as áreas."

Morais citou quatro fazendeiros: Paulinho, Joãozinho da Motolândia, seu João, de Palmas (TO), e Ourias. Todos, diz, distribuíram lotes em quatro áreas dentro de Apyterewa. "A gente fica satisfeito de as pessoas ajudarem os mais fracos."

Acima, vista aérea da aldeia Rapko dos índios Xikrin, dentro da Terra Indígena Trincheira Bacajá; na segunda foto, Vila Sudoeste, que funciona como uma base de apoio para a maior parte dos invasores da terra indígena, por estar localizada a apenas 5 km da reserva

Acima, vista aérea da aldeia Rapko dos índios Xikrin, dentro da Terra Indígena Trincheira Bacajá; na segunda foto, Vila Sudoeste, que funciona como uma base de apoio para a maior parte dos invasores da terra indígena, por estar localizada a apenas 5 km da reserva Lalo de Almeida/Folhapress

O agricultor mora em uma casa simples de tijolos aparentes na Vila Sudoeste, um distrito de São Félix do Xingu surgido a partir de um assentamento do Incra. Está a 60 km da Vila Renascer, em área vizinha à Trincheira Bacajá.

Nascido em Goiás, ele conta que há três anos comprou um lote de 272 hectares. Doou 54 hectares a dois pastores e desmatou outros 11 hectares, onde tem roça e capim. Afirma que é a primeira vez que possui uma terra própria.

No ano passado, os xikrins fizeram uma expedição para expulsar os invasores. Destruíram alguns barracos, mas Morais e outros invasores resistiram. Houve também operações da Polícia Federal e do Ibama, baseadas em uma decisão judicial de reintegração de posse. O agricultor, no entanto, persiste e confia no atual governo federal.

Guerreiros Xikrin chegam na aldeia Rapko após expedição na floresta para retirar invasores da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará, que teve parte de sua área invadida e desmatada por grileiros

Guerreiros Xikrin chegam na aldeia Rapko após expedição na floresta para retirar invasores da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará, que teve parte de sua área invadida e desmatada por grileiros Lalo de Almeida/Folhapress

"A esperança de todos é que o Bolsonaro venha cumprir aquilo que ele está sempre prometendo pro povo, que vai reduzir a terra dos índios", afirmou. "A esperança é que ele reduza essas terras dos índios pra eles saberem quanto custa um pacote de arroz, pra eles não chegarem dentro das casas das pessoas e invadirem tudo."

Uma investigação recente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) encontrou casos de colonos coagidos a trabalhar na terra em troca de um lote e de contribuir para uma associação. A área prometida, no entanto, acaba vendida para outra pessoa, e o posseiro é expulso.

Em junho do ano passado, um dos principais líderes da grilagem de Apyterewa, Carlos Cabral, foi assassinado a tiros em Rio Maria (PA). Na época, a Polícia Civil decretou a prisão temporária de três fazendeiros acusados de promover grilagem. Nas diligências, foram apreendidas cerca de 40 armas de fogo, além de munição.

Placa indicando uma estrada vicinal dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará, com marcas de tiro e um adesivo de apoio ao presidente Jair Bolsonaro

Placa indicando uma estrada vicinal dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará, com marcas de tiro e um adesivo de apoio ao presidente Jair Bolsonaro Lalo de Almeida/Folhapress

A redução da TI Apyterewa, com uma área de 773 mil hectares, tem sido defendida por associações lideradas por fazendeiros. A iniciativa conta com o apoio jurídico da Prefeitura de São Félix do Xingu, atualmente comandada por Minervina Barros (PSD).

Em 26 de maio, eles obtiveram uma vitória parcial no STF. A pedido da prefeitura e de uma das associações, o ministro Gilmar Mendes intimou a União "sobre o interesse na tentativa de conciliação proposta pelo município de São Félix do Xingu".

A decisão faz parte de um mandado de segurança impetrado em 2007 pela prefeitura e pelas associações. A ação questiona a homologação da terra indígena, assinada naquele ano.

Para o procurador do município Igor Franco de Freitas, o objetivo da ação no STF é que se refaça o estudo antropológico de Apyterewa. As associações afirmam que a maior parte da área demarcada nunca teve presença indígena e que a maioria dos ocupantes tem a posse da terra de boa-fé.

"Constatado que tem ocupação tradicional dos índios nos 773 mil hectares, todos os presidentes abrirão mão de todos os seus direitos", afirmou Freitas, em entrevista na prefeitura de São Félix, ao lado de três lideranças dos ocupantes.

A decisão de Mendes foi contestada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. Em parecer, ele defendeu a inclusão dos parakanãs e do Ministério Público Federal (MPF) no processo de conciliação e a realização de uma audiência pública.

A União até agora não se pronunciou sobre a decisão de Mendes. Segundo Freitas, o prazo para manifestação termina no dia 14 deste mês.

Presente na prefeitura, uma das principais lideranças dos ocupantes de Apyterewa, o fazendeiro Vicente Paulo Lima, o Paulinho do Ditão, negou a distribuição de lotes para invasores. "Como nós estamos doando se tudo já tem dono? Desde 1980, já existem as pessoas."

Osias da Silveira (de boné azul), Vicente Paulo (de cabelo grisalho), Adelson Costa (de boné) e o advogado Igor Franco, representantes dos posseiros que invadiram a Terra Indígena Apyterewa, durante entrevista a Folha na prefeitura de São Felix do Xingu
Osias da Silveira (de boné azul), Vicente Paulo (de cabelo grisalho), Adelson Costa (de boné) e o advogado Igor Franco, representantes dos posseiros que invadiram a Terra Indígena Apyterewa, durante entrevista a Folha na prefeitura de São Felix do Xingu - Lalo de Almeida/Folhapress

Lima aparece na lista dos 268 ocupantes de boa-fé com direito à indenização relacionados pela Funai, por estarem na área antes da Portaria Declaratória da TI, editada em 2001. O fazendeiro, no entanto, diz que hoje há 2.500 famílias ocupando terras dentro de Apyterewa.

Um dos investigados pelo assassinato de Cabral, o fazendeiro teve a prisão temporária decretada, mas não chegou a ser detido. À Folha ele negou qualquer participação no crime.

Os parakanãs são um povo tupi-guarani e se dividem em dois grupos. Em Apyterewa, vivem os parakanãs ocidentais, hoje com 728 pessoas. O contato desse grupo com a sociedade nacional é recente, do início dos anos 1980.

Nessa época, eles passaram a sofrer forte pressão de madeireiras ilegais de mogno e de garimpeiros. As estradas abertas permitiram a entrada de posseiros e de colonos, como registro de diversos incidentes com os toris (não indígenas).

Caminhão carregando toras de madeira circula em uma estrada vicinal no entorno da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará, próximo à vila Sudoeste
Caminhão carregando toras de madeira circula em uma estrada vicinal no entorno da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará, próximo à vila Sudoeste - Lalo de Almeida/Folhapress

Atualmente com a posse de apenas 20% do seu território, os parakanãs divulgaram um comunicado criticando a decisão de Gilmar Mendes. "Nós, povo parakanã, não aceitamos a tentativa de conciliação, pois, no passado, já foram feitos acordos e, mesmo assim, os posseiros continuam invadindo nosso território", afirma um comunicado divulgado pela Associação Indígena Tato"a.

Em vídeo enviado à Folha por WhatsApp, a liderança Surara Parakanã afirmou: "Está escrito lá no papel que a TI Apyterewa é do povo parakanã. Devolva a terra Apyterewa para o povo parakanã, mas que seja o mais rápido possível. Porque, se vocês demorarem muito, vocês vão entregar uma terra vazia pra nós. Nós não queremos uma terra vazia".

Colaborou Monica Prestes

Telefone público na aldeia Rapko na Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará, que teve parte de sua área invadida e desmatada por grileiros

Telefone público na aldeia Rapko na Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará, que teve parte de sua área invadida e desmatada por grileiros Lalo de Almeida/Folhapress

Forças Armadas

No sul do AM, desmatamento avança apesar do Exército

Governo transferiu comando das operações contra desmatamento a militares, que não podem fazer autuações; em Apuí, derrubada da floresta cresce apesar das operações

Estrada serpenteia em meio a terra queimadas com árvores caídas

Estrada serpenteia em meio a terra queimadas com árvores caídas

Fabiano Maisonnave Lalo de Almeida Monica Prestes
APUÍ (AM) MANAUS

Em 1970, o presidente-general Emílio Garrastazu Médici deu início às obras da Transamazônica e abriu à colonização uma imensa faixa de floresta no Amazonas e no Pará. Cinquenta anos depois, a Operação Verde Brasil, comandada pelo vice-presidente general Hamilton Mourão, está empregando centenas de soldados para tentar conter o desmatamento e outros crimes ambientais viabilizados pela rodovia.

Um dos palcos da estratégia militarizada de Bolsonaro contra crimes ambientais é Apuí (450 km ao sul de Manaus). Com área pouco maior do que o estado da Paraíba, o município surgiu do Projeto de Assentamento Rio Juma, no início dos anos 1980, administrado pelo Incra.

A meta de distribuir cerca de 7.500 lotes voltados à agricultura familiar, porém, fracassou. A maioria dos beneficiados foi embora em meio um processo de concentração de terras, e hoje a economia se baseia sobretudo na pecuária extensiva, principal vetor de desmatamento na Amazônia.

Família recém-chegada de Rondônia caminha pela rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas
Vaqueiros posam para foto na rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas
Na imagem superior, família recém-chegada de Rondônia caminha pela rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas; na seguinte, vaqueiros posam para foto na rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas

Esse processo de conversão de floresta em pasto ganhou novo impulso desde 2019. Apesar da Operação Verde Brasil, Apuí perdeu 23.186 hectares de janeiro a agosto, 5,1% mais que o desmate de todo o ano passado. Os números são da iniciativa não governamental MapBiomas, que monitora o uso do solo no país.

Os militares, que operam sob a GLO (Garantia da Lei e da Ordem), estiveram duas vezes em Apuí neste ano. Na primeira incursão, de 20 a 26 de junho, o foco era combater o desmatamento, com participação do Ibama -os militares não podem fazer procedimentos como lavrar multas.

Na segunda vez em que esteve em Apuí, em agosto, o Exército apoiou o combate ao incêndio feito principalmente por brigadistas da própria cidade contratados por meio do Prevfogo, do Ibama.

Queimada em Área desmatada no município de Humaitá, no sul do Amazonas

Queimada em Área desmatada no município de Humaitá, no sul do Amazonas Lalo de Almeida/Folhapress

Ações conjuntas de Forças Armadas, Ibama e ICMBio não são novidade da era Bolsonaro. A diferença é que, antes, os militares se limitavam a dar apoio logístico às operações, como acampamentos, transporte de bens apreendidos e deslocamento terrestre, fluvial e aéreo.

Além disso, a presença de soldados tem poder dissuasório sobre os criminosos, quase sempre armados. A inibição, no entanto, é temporária, apenas durante a operação.

Bolsonaro transferiu o comando das operações na Amazônia para os militares desde a onda de queimadas no ano passado. Os fiscais do Ibama acompanham para fazer as autuações, são consultados, mas não têm o poder de decidir sobre alvos e estratégias.

Uma das principais divergências é que, nas operações de que participam, as Forças Armadas proíbem a destruição de equipamentos dos criminosos em áreas de desmate e garimpo, como tratores e escavadeiras, recurso previsto pela legislação.

A inutilização é um das principais ferramentas do Ibama e do ICMBio em locais remotos. Por questões de logística e de segurança, é quase impossível transportar os equipamentos até uma cidade. Agora, os infratores acabam recuperando os bens assim que a operação militar deixa o local.

Fiscais do Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), escoltados por policiais militares, vistoriam um desmatamento recente no município de Apuí, no sul do Amazonas

Fiscais do Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), escoltados por policiais militares, vistoriam um desmatamento recente no município de Apuí, no sul do Amazonas Lalo de Almeida/Folhapress

Fiscais do Ipaam e policiais militares em inspeção de desmatamento em Apuí, no sul do Amazonas

Fiscais do Ipaam e policiais militares em inspeção de desmatamento em Apuí, no sul do Amazonas Lalo de Almeida/Folhapress

Outra diferença é a relação com a imprensa. Até Bolsonaro, jornalistas brasileiros e estrangeiros acompanhavam operações do Ibama na Amazônia. As imagens de agentes destruindo equipamentos e prendendo infratores na selva tinham força intimidatória.

Agora, funcionários do Ibama e do ICMBio foram proibidos de dar entrevista. Mourão vetou jornalistas nas operações da Verde Brasil 2. Nos últimos meses, a reportagem fez pedidos para acompanhar os militares, todos negados.

A Folha acompanhou por dois dias uma equipe de fiscais do Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), do governo estadual. O objetivo era confirmar in loco desmates apontados por satélites e autuar criminosos em flagrante. Apesar de promessas de apoio do Exército, as escolta foi feita por PMs.

No primeiro dia, a equipe percorreu 100 km pela rodovia Transamazônica e depois entrou em uma estrada vicinal. Após 15 km de mata fechada, o comboio chegou a um desmate recente, com pasto recém-plantado brotando entre troncos queimados.

Pouco mais adiante, havia uma área de 30 hectares recém-desmatada. Grandes árvores derrubadas e queimadas se amontoavam.

Queimada em área próxima à rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas

Queimada em área próxima à rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas Lalo de Almeida/Folhapress

Casa em construção em fazenda às margens da rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas

Casa em construção em fazenda às margens da rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas Lalo de Almeida/Folhapress

A casa que parecia ser a sede da fazenda estava vazia. Mais adiante, havia uma moto parada com uma bainha de facão sobre o banco. A pessoa que estava no local havia se escondido no mato após ouvir a chegada das caminhonetes, avaliaram os policiais.

O segundo dia teve uma rotina parecida: estrada precária e nenhum flagrante. Mas a área recém-desmatada era bem maior, 400 hectares.

O Ipaam informou que, nos dias acompanhados pela Folha (24 e 25 de agosto), os desmatamentos identificados somaram 2.429 hectares, mas não houve, até agora, emissão de multa ambiental ou embargo porque não foi possível identificar os responsáveis.

Policiais militares encontram moto abandonado durante fiscalização em área de desmate recente no município de Apuí, no sul do Amazonas
Policiais militares encontram moto abandonado durante fiscalização em área de desmate recente no município de Apuí, no sul do Amazonas - Lalo de Almeida/ Folhapress

As dificuldades de combate ao desmatamento fizeram o secretário do Meio Ambiente do Amazonas, Eduardo Taveira, reduzir as metas. Em junho, ao lançar a Operação Curuquetê 2, ele afirmou que o objetivo era reduzir a área desmatada no Amazonas em 15% de agosto de 2020 a julho de 2021. Agora, diz, já seria ótimo resultado se o desmate não continuar crescendo.

Taveira afirma que a atuação do governo estadual é limitada devido à predominância do desmatamento em terras públicas federais -80% do total. Nesses casos, o Ipaam só pode fiscalizar caso as atividades sejam passíveis de licenciamento ambiental estadual.

Outra dificuldade é achar o responsável. Em todo o Amazonas, afirma o secretário apenas 20 dos 58 mil Cadastros Ambientais Rurais (CAR) autodeclarados no estado foram verificados –0,003% do total. "Como identificar infrator se a gente ainda tem esse vazio de responsabilização? Precisamos aprofundar a regularização fundiária pra resolver essa situação."

Criado em 2012, o CAR é um registro público eletrônico autodeclaratório obrigatório para propriedades rurais. Em tese, deveria reunir informações como a situação de Áreas de Preservação Permanente (APP), de reserva legal de vegetação nativa para para controle e e combate ao desmatamento. Na prática, tem sido usado por grileiros para tentar legalizar áreas públicas invadidas e desmatadas.

Sobre a Verde Brasil, Taveira diz que há proximidade com o governo Bolsonaro e o Comando Militar da Amazônia e que o Amazonas tem recebido apoio logístico, mas aponta falta de coordenação.

Via assessoria de imprensa, o Ministério da Defesa informou as datas erradas em que a Operação Verde Brasil operou em Apuí e não forneceu informação específica sobre resultados da atuação das Forças Armadas no município.

A Operação Verde Brasil 2 começou em 11 de maio e tem a previsão de término para 6 de novembro, passível de prorrogação. De 11 de maio a 10 junho, o custo do emprego de meios e efetivos das Forças Armadas foi estimado em R$ 60 milhões. Para o período seguinte, a estimativa é de custo mensal de R$ 70 milhões.

Fazenda de gado às margens da rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas

Fazenda de gado às margens da rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas Lalo de Almeida/Folhapress

Estudo recém-publicado sobre 35 anos de política fundiária em Apuí mostra que o município já apresentava desmatamento acelerado antes de Bolsonaro. De 2013 a 2018, o percentual de crescimento foi mais que o dobro do que no restante da Amazônia.

O estudo, que tem os pesquisadores Gabriel Cardoso Carrero e Philip Fearnside entre os autores, foi publicado na revista Environmental Management. O texto aponta que o avanço da pecuária mostra que Apuí faz parte de uma demanda de mercado por carne bovina, mas também aponta a atuação de grupos criminosos que usam o desmatamento e o plantio de pasto para a grilagem de terras públicas.

O artigo diz que ainda é preciso identificar quem são os grileiros, quem financia as derrubadas e como diferentes atores agem.

Há 40 anos na região, o pecuarista Paulo Lopez afirma que os grandes desmatadores são de fora de Apuí. Segundo ele, o mercado de terras tem se valorizado com a chegada de compradores de terra de Rondônia, onde a agricultura comercial avança sobre a pecuária.

O fazendeiro Paulo Lopez em sua fazenda ao lado da rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí
O fazendeiro Paulo Lopez em sua fazenda ao lado da rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí - Lalo de Almeida/Folhapress

Para Lopez, o combate ao desmatamento passa pela regularização fundiária, promessa não cumprida de sucessivos governos federais. "Não sei em quantas reuniões eu já fui para anunciar que vai ser feita a regularização fundiária. Não sei se não foi feito por falta de vontade do governo, incapacidade".

Segundo o secretário do Meio Ambiente de Apuí, Domingos Bonfim, a regularização fundiária é ínfima no município. Mesmo entre os assentados do Incra, diz, nem 5% possuem o título definitivo. Para avançar, no entanto, é preciso resolver o passivo ambiental criado por anos de desmatamento ilegal.

"Há esse paradoxo. Não tem regularização fundiária para avançar a regularização ambiental. E, para avançar na regularização ambiental, é preciso ter a regularização fundiária."

Este projeto foi patrocinado pela Climate News, um site britânico de notícias climáticas.

Sem-terra de direita

Aumento de invasões de áreas protegidas revela a ascensão dos 'sem-terra de direita'

No lugar de movimentos sociais como o MST, ocupações têm o apoio de associações envolvidas com fazendeiros da região e simpatizantes do presidente, que incentiva a grilagem

O sem-terra Sebastião Pereira, 70, descansa em sua barraca em um acampamento na vila do Rio Pardo, em Rondônia

O sem-terra Sebastião Pereira, 70, descansa em sua barraca em um acampamento na vila do Rio Pardo, em Rondônia

Fabiano Maisonnave Lalo de Almeida
Porto Velho (RO)

Em 31 de agosto de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro deu a senha. "Aqui em Rondônia, são 53 unidades de conservação e 25 terras indígenas. É um absurdo o que se faz no Brasil usando o nome ambiental", disse em entrevista coletiva em Porto Velho. "Isso daí tem inibido o progresso daqueles que querem investir no agronegócio e até na agricultura familiar. Vamos achar um ponto de inflexão nisso."

Incentivadas por esse e outros pronunciamentos de Bolsonaro, as invasões de áreas protegidas começaram ainda antes do resultado da eleição presidencial. A cinco dias do segundo turno, centenas de famílias entraram na Floresta Nacional (Flona) Bom Futuro, no município de Porto Velho. Em janeiro, já com o novo presidente instalado no Planalto, dezenas de homens tomaram parte da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em área no município de Jorge Teixeira (RO).

Esse movimento ganhou impulso nas últimas semanas. Mais cinco unidades de conservação (UCs) de Rondônia foram invadidas, todas estaduais: o Parque de Guajará-Mirim, a Estação Ecológica (Esec) Samuel e as Reservas Extrativistas (Resex) Rio Preto Jacundá, Aquariquara e Ipê.

Dessas, apenas a Resex Ipê foi desocupada, após decisão judicial a pedido da Procuradoria do Estado de Rondônia e do Ministério Público de Rondônia, que agem para reverter as demais invasões.

Na semana passada, invasores acamparam diante do palácio do governo estadual, em Porto Velho (RO), exigindo a regularização de lotes no Parque de Guajará-Mirim e na sua Zona de Amortecimento. Monitoramento do Deter/Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostra 979 hectares ali desmatados ilegalmente nos últimos 12 meses, em uma área de floresta que estava praticamente intacta.

Na Resex Flona Jacundá, do governo federal, há a ameaça de um acampamento de sem-terra erguido em agosto em uma das estradas de acesso, mas ainda não houve invasão.

O avanço sobre terras indígenas e UCs pela Amazônia contrasta com o fim das tomadas de latifúndios. Em Rondônia, não houve nenhum caso há pelo menos quatro anos, segundo o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Sob Bolsonaro, houve apenas cinco casos em 2019 e nenhum neste ano.

A mudança de foco também reflete um novo protagonismo. No lugar de movimentos sociais, principalmente o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), contrários à invasão de UCs e terras indígenas, entraram associações desconhecidas e recém-criadas, assessoradas por advogados e escritórios de georreferenciamento, com envolvimento de fazendeiros da região.

Acampamento Boa Esperança, na vila do Rio Pardo, em Rondônia

Acampamento Boa Esperança, na vila do Rio Pardo, em Rondônia Lalo de Almeida/Folhapress

Adesivo do presidente Jair Bolsonaro colado na parede de um barraco do acampamento Boa Esperança

Adesivo do presidente Jair Bolsonaro colado na parede de um barraco do acampamento Boa Esperança Lalo de Almeida/Folhapress

Simpatizantes de Bolsonaro e apoiados por políticos de direita locais, eles procuram se afastar da imagem tradicional dos sem-terra, de oposição ao latifúndio e de promover "baderna". Em Rondônia, um dos que apoiam esses movimentos é o deputado federal Coronel Chrisóstomo (PSL), oficial da reserva do Exército.

Há também um realinhamento religioso. A Igreja Católica, próxima do MST e que já produziu defensores históricos da reforma agrária na Amazônia, como dom Pedro Casaldáliga e a irmã Dorothy Stang, perdeu espaço. Por outro lado, é comum a presença de igrejas evangélicas nas novas invasões, embora sem participação mais ativa e formal.

Além do discurso de Bolsonaro contrário a áreas protegidas e ao MST, outro grande incentivo à invasão de áreas protegidas em Rondônia é o sucesso recente. Em 2010, no governo Lula (PT), a Flona Bom Futuro foi reduzida em dois terços para legalizar invasões que ocorreram sobretudo no governo de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Em nível estadual, o governador de Rondônia, o coronel da PM Marcos Rocha (PSL), enviou neste ano à Assembleia um projeto de lei para legalizar as invasões da Resex Jaci-Paraná, o que desafetaria 146 mil hectares. Cerca de 55% da unidade de conservação já foi desmatada, segundo o Inpe.

Tropa de choque da PM caminha dentro da Floresta Nacional Bom Futuro, em Rondônia, para cumprir mandado de reintegração de posse de invasão dentro da reserva, em 2019

Tropa de choque da PM caminha dentro da Floresta Nacional Bom Futuro, em Rondônia, para cumprir mandado de reintegração de posse de invasão dentro da reserva, em 2019 Lalo de Almeida/Folhapress

Vista aérea do acampamento Boa Esperança, que foi erguido no ano passado pelas famílias que foram retiradas de uma área invadida dentro da Floresta Nacional Bom Futuro

Vista aérea do acampamento Boa Esperança, que foi erguido no ano passado pelas famílias que foram retiradas de uma área invadida dentro da Floresta Nacional Bom Futuro Lalo de Almeida/Folhapress

Erguido sobre o pasto de uma invasão antiga, o acampamento na Flona Bom Futuro foi desmontado em 10 de setembro de 2019 por uma ação da Polícia Militar, após decisão judicial obtida pelo ICMBio. Cerca de 200 famílias foram retiradas.

Uma parte dos desalojados montou acampamento em volta de uma escola abandonada na vizinha vila do Rio Pardo, com a esperança de serem assentados. Quando a Folha esteve ali, em agosto, havia cerca de 60 famílias.

As condições são precárias. O acampamento dispõe de dois banheiros e estava sem água havia cinco dias. Para estudar, as crianças, agora sem aula por causa da epidemia da Covid-19, precisavam enfrentar 5h de ônibus, ida e volta.

Porta-voz do grupo, o baiano José Roberto de Jesus, 47, é um dos que acreditam que a Flona Bom Futuro será destinada aos sem-terra –termo que ele evita, usando "agricultor" no lugar. A família migrou para Rondônia em 1984, mas nenhum membro conseguiu uma área própria.

Sem-terra pega água de um poço em uma casa vizinha ao acampamento na vila do Rio Pardo

Sem-terra pega água de um poço em uma casa vizinha ao acampamento na vila do Rio Pardo Lalo de Almeida/Folhapress

Pai de cinco filhos, Jesus já trabalhou com cacau, a ocupação inicial da família na região de Ariquemes. Sem estudo formal, foi garimpeiro, serralheiro e carvoeiro. Segundo ele, o avanço da soja, da pecuária e da piscicultura reduziu a oferta de empregos, já que são atividades com poucas vagas.

Na invasão, Jesus não era uma das lideranças, que sumiram após denúncia do Ministério Público Federal, com base em investigação da Polícia Federal. Após o despejo, a fala pausada e articulada ajudou a ganhar ascendência no grupo, que o apelidou de Pastor.

Repetindo a história de outros que participaram da invasão, ele disse que foi estimulado a entrar na Flona Bom Futuro por incentivo de fazendeiros. "Nunca fui de invadir o que é dos outros, mas apareceu uma oportunidade única, que me levou até aquela terra. Os fazendeiros nos colocaram ali porque vinham brigando com o governo, que tomou as terras deles e colocou uma reserva em cima. Eles preferiam perder pro sem-terra do que pro governo."

Questionado sobre o risco de os fazendeiros tomarem as terras caso sejam regularizadas, diz: "Nós tínhamos que pagar um preço, que pagar pra ver".

José Roberto de Jesus, 47, porta-voz do acampamento Boa Esperança
José Roberto de Jesus, 47, porta-voz do acampamento Boa Esperança - Lalo de Almeida/Folhapress
Igreja evangélica em construção na área da APA (área de proteção ambiental) Rio Pardo, em Rondônia
Igreja evangélica em construção na área da APA (área de proteção ambiental) Rio Pardo, em Rondônia - Lalo de Almeida/Folhapress

"Sou evangélico, Deus não permite que a gente invade nada de ninguém, mas, quando você está em cima de uma terra da União, quem é a União? A União somos nós, somos trabalhadores. Estávamos em cima do que é nosso, por direito, por lei, nós não tava invadindo nada de ninguém."

Diz que votou em Bolsonaro e que a conversão da Flona em assentamento só depende do governo. "Não entendo como é esse negócio de fauna [sic] Bom Futuro, mas entendemos o que é terra boa. Confiamos, sim, no governo, e na campanha política ele falou que em Rondônia tem muita reserva, mas degradada."

Área desmatada na APA Rio Pardo, no limite com a Floresta Nacional Bom Futuro, em Rondônia, em imagem de 2018

Área desmatada na APA Rio Pardo, no limite com a Floresta Nacional Bom Futuro, em Rondônia, em imagem de 2018 Lalo de Almeida - 14.ago.2018/Folhapress

Algumas semanas após a entrevista, a Flona Bom Futuro foi novamente invadida, desta vez por outro grupo. Até agora, a PM de Rondônia não fez uma nova reintegração de posse. Do início deste ano até agosto, mais 575 hectares foram desmatados, segundo monitoramento da iniciativa MapBiomas Alerta, feito com imagens de satélite.

"Muitas famílias buscavam um acampamento para depois conseguir uma terra pelo processo da reforma agrária. Hoje, não há essa perspectiva", diz o coordenador da ONG Terra de Direitos, Darci Frigo, ex-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

"Elas vão permanecer nas periferias ou nos lugares onde há indígenas, quilombolas e áreas de proteção permanente. A tendência é de invasão generalizada. Não é que os pobres sejam inimigos do meio ambiente. É que os ricos, ao manterem os pobres na pobreza, acabam gerando as condições que vão degradar o meio ambiente. Além dos grileiros de terras, você tem pessoas pobres que estavam esperando a reforma agrária."

Sobre Bolsonaro, afirmou: "É um discurso de ataque aos indígenas, aos quilombolas, aos sem-terra. Diante da opinião pública, você desmoraliza esses sujeitos e, ao mesmo tempo, dá uma ordem de apoio à invasão a áreas públicas."

Placas sinalizam a marcação de lote no acampamento Terra Prometida, uma invasão na area rural de Porto Velho

Placas sinalizam a marcação de lote no acampamento Terra Prometida, uma invasão na area rural de Porto Velho Lalo de Almeida/Folhapress

Para o geógrafo Ricardo Gilson da Costa Silva, da Universidade Federal de Rondônia (Unir), o estado está passando por um processo de "matogrossização" por meio do avanço da soja, que sufoca a pequena propriedade e pressiona a grande pecuária a buscar novas áreas. O resultado é mais desmatamento no norte do estado e no vizinho sul do Amazonas, que vive uma "rondonização". "E rondonização é desmatamento", afirma.

Sobre as invasões recentes ele as classifica de "agrobandidagem": "Não é movimento social. São movimentos econômicos e políticos patrocinados por fazendeiros, comerciantes e políticos locais. Eles patrocinam a invasão de áreas protegidas. Levam posseiros que precisam de terra para criar uma situação de irreversibilidade. É o que está vivendo a Resex Jaci-Paraná, onde os seringueiros foram expulsos e tem até pista de avião."

"Trata-se de um projeto político e territorial de transformar área protegida em pasto para virar mercado de terras e depois ir para a pecuária e os grãos. É algo pensado", diz.

Em Rondônia, Bolsonaro venceu o segundo turno com 72,2% dos votos, o terceiro maior percentual do país, atrás de Acre e Santa Catarina.
Procurado, o governador Marcos Rocha, um aliado do Planalto, não respondeu às perguntas enviadas.​

Árvore queima na Floresta Nacional Bom Futuro

Árvore queima na Floresta Nacional Bom Futuro Lalo de Almeida/Folhapress

A batalha da madeira

Reduto do presidente, polo madeireiro no Pará vê cerco apertar

Uruará apoiou em massa Bolsonaro, mas expectativa de menor fiscalização se viu frustrada de 2018 para cá

Serraria em Uruará, parada por causa da Operação Verde Brasil 2, que combate os crimes ambientais na Amazônia

Serraria em Uruará, parada por causa da Operação Verde Brasil 2, que combate os crimes ambientais na Amazônia

Fabiano Maisonnave Lalo de Almeida
Uruará (PA)

Após anos de uma relação tensa com o Ibama, em 2018 os uruarenses votaram em peso no candidato a presidente Jair Bolsonaro. Foram atraídos pela expectativa de relaxamento na fiscalização ambiental, o que aliviaria a pressão sobre as dezenas de madeireiras da cidade, e de regularização fundiária de posseiros e invasores dentro da Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca, a mais desmatada da Amazônia.

Passados quase dois anos de governo Bolsonaro, porém, isso não aconteceu –e, nos últimos meses, a repressão à extração ilegal de madeira e ao desmatamento até aumentou em Uruará, município surgido no rastro da rodovia Transamazônica e que, até hoje sem acesso asfaltado, padece do isolamento geográfico e de falta de alternativas econômicas.

Dois fatores pesaram para esse cenário contraintuitivo. Ao contrário do que se imagina, recentes mudanças normativas sobre o comércio de madeira do governo Bolsonaro não impactaram a fiscalização em campo.

Além disso, diferentemente de outras operações na Amazônia, o combate ao desmatamento na TI Cachoeira Seca foi comandado pelo Ibama e sem a participação de militares, inexperientes nesse tipo de ação e que se opõem à destruição de bens de infratores ambientais.

Durante os meses de presença permanente do Ibama, entre abril e setembro, houve uma queda de 86% no desmatamento, segundo monitoramento via satélite Sirad X, da Rede Xingu+. Neste ano, houve o desmate de 729 hectares. No mesmo período de 2019, o estragou chegou a 5.521 hectares.

Vaqueiros e motoqueiro trafegam pela rodovia Transamazônica, próximo a Uruará, no Pará

Vaqueiros e motoqueiro trafegam pela rodovia Transamazônica, próximo a Uruará, no Pará Lalo de Almeida/Folhapress

Vista aérea da cidade de Uruará, que fica às margens da rodovia Transamazônica

Vista aérea da cidade de Uruará, que fica às margens da rodovia Transamazônica Lalo de Almeida/Folhapress

No front contra a extração ilegal de madeira, o Ibama, neste caso com o apoio do Exército, literalmente desmontou, entre maio e julho, 28 das pelo menos 44 serrarias do município, um dos principais polos madeireiros do Pará, o maior estado produtor de madeira da Amazônia.

A ação apreendeu 200 equipamentos, 719 metros cúbicos de madeira (o equivalente a cerca de 35 caminhões carregados) e aplicou multas que, somadas, chegam a R$ 12,3 milhões. Essas informações, incluídas no balanço da Operação Verde Brasil 2, são do Ministério da Defesa.

Boa parte dessas madeireiras está concentrada no beco da Morte, uma longa rua de terra na periferia de Uruará, distante 1.006 km a sudoeste de Belém, por rodovias. Quando a Folha esteve na região, em meados de julho, todas as serrarias ali estavam paradas. Algumas já haviam sido desmanteladas por militares e levadas de caminhão para Altamira.


Lalo de Almeida/Folhapress
Serraria em Uruará parada por causa da Operação Verde Brasil Verde 2; coordenada pelo militares, ela fechou vários estabelecimentos do tipo na cidade, suspeitas de trabalharem com madeira ilegal

Nenhum madeireiro quis gravar entrevista. Um dos que tiveram os equipamentos confiscados, conhecido como Zé Gordo, disse que não iria "defender o torto". Em conversa informal, outro madeireiro afirmou que o beco da Morte nunca havia sofrido um revés tão grande e que era a primeira vez que o Exército participava de uma operação ali.

Além do Ibama e do Exército, a Polícia Federal também atuou neste ano na região. Em 29 de julho, foi deflagrada a Operação Carranca, resultado de quatro anos de investigações. Segundo a PF, Uruará e outros dois municípios da região concentram madeireiros de pouco poder econômico, que atuam na linha de frente da extração ilegal de madeira.

Um dos mandados de busca e apreensão ocorreu na casa do então secretário de Administração de Uruará, Bruno Cerutti do Valle. Ao perceber a chegada dos policiais, ele tentou dar a descarga em seu celular, mas o aparelho ficou entalado no vaso sanitário. Acabou preso em flagrante por posse de duas armas de fogo com registro vencido, mas foi solto dias depois.

Valle acumula autuações ambientais por desmatamento ilegal de 50 hectares e por não enviar relatório sobre um plano de manejo de madeira em seu nome. Em 2019, ele era secretário de Meio Ambiente de Uruará, pasta responsável pelo licenciamento de serrarias. Procurado pela reportagem, não respondeu aos pedidos de entrevista.

Houve também fiscalização estadual. Reforçada com cerca de R$ 90 milhões provenientes da Operação Lava Jato, a Semas (Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade), com apoio das Polícias Civil e Militar, apreendeu no município 240 metros cúbicos de madeira, fechou seis serrarias clandestinas e prendeu dez pessoas, além do embargo de 1.500 hectares.

Finalmente, em novembro, a Justiça Federal em Altamira acatou uma uma ação civil pública do Ministério Público Federal para que a Funai e a União apresentem, em até 90 dias, um plano de desintrusão da TI Cachoeira Seca, incluindo um levantamento dos ocupantes de boa-fé para que possam ser retirados da área mediante indenização.

Motorista de caminhão que foi apreendido transportando madeira ilegal descarrega a carga em um depósito da Prefeitura de Uruará para recuperar o veículo

Motorista de caminhão que foi apreendido transportando madeira ilegal descarrega a carga em um depósito da Prefeitura de Uruará para recuperar o veículo Lalo de Almeida/Folhapress

O desmonte das serrarias clandestinas foi a resposta do governo federal a um ataque contra uma equipe do Ibama em Uruará. No dia 5 de maio, os agentes ambientais, escoltados pela Força Nacional, foram bloqueados por homens ligados a madeireiras na rodovia Trans-Ururá, quando voltavam de uma fiscalização em uma área de extração ilegal de madeira.

A revolta era por conta da destruição, pelo Ibama, de tratores e caminhões de um madeireiro. Durante a discussão, um fiscal ambiental foi atingido por uma garrafada no rosto e precisou receber pontos. O vídeo da agressão foi veiculado nos principais meios de comunicação do país.

Não se tratou de um fato isolado –Uruará tem um longo histórico de reações violentas à fiscalização ambiental. Em 2010, uma viatura da Polícia Federal que participava de uma operação do Ibama foi incendiada durante a noite, em frente a um hotel onde a equipe estava hospedada.

Área desmatada ilegalmente no município de Uruará, localizada durante operação de combate ao desmatamento da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará

Área desmatada ilegalmente no município de Uruará, localizada durante operação de combate ao desmatamento da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará Lalo de Almeida/Folhapress

Policial militar espia o interior de um barracão localizado em uma área desmatada ilegalmente em Uruará

Policial militar espia o interior de um barracão localizado em uma área desmatada ilegalmente em Uruará Lalo de Almeida/Folhapress

Em 2013, moradores paralisaram, por meio de ameaças, a construção de de dois postos de vigilância da Funai em estradas de acesso à TI Cachoeira Seca, de onde sai grande parte madeira ilegal para as serrarias. As obras fazem parte do Plano Básico Ambiental (PBA) da usina Belo Monte e são responsabilidade da concessionária Norte Energia, que alega falta de segurança para trabalhar no local.

Em junho de 2019, madeireiros fecharam a Transamazônica, rodovia construída no início dos anos 1970 e que deu origem à cidade, surgida a partir de um assentamento do Incra.

A Folha também foi alvo de animosidade em uma estrada rural. Ameaçando desembainhar um facão, um motorista de caminhão toreiro (adaptado para transporte de toras) acusou a reportagem de tirar fotos de seu veículo.

Coagida, a reportagem mostrou as imagens da câmera fotográfica e do celular. Depois de constatar que não havia fotos do seu caminhão, ele se afastou sem tirar a mão no facão e xingou: "Vagabundos de ONGs".

Por falta de segurança, o Ibama parou de se hospedar nos hotéis da cidade, onde os fiscais ambientais só circulam escoltados pelo Exército. Durante os meses de operação, os fiscais se alojaram em uma base da Funai a 60 km do centro, sob a proteção de policiais da Força Nacional.


Comboio formado por viaturas de fiscais da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará e da Polícia Militar percorre uma estrada vicinal de Uruará, durante operação de combate ao desmatamento Lalo de Almeida/Folhapress

Fiscais da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará, com o apoio da PM, interceptam caminhão que transportava carga de madeira ilegal

Fiscais da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará, com o apoio da PM, interceptam caminhão que transportava carga de madeira ilegal Lalo de Almeida/Folhapress

Em junho, moradores de Uruará organizaram uma comitiva a Brasília, distante 2.095 km, para levar reivindicações a Bolsonaro. Segundo os organizadores, foram cerca de 50 pessoas. A bordo de camionetes, um grupo levou dois dias, só de ida. Já o ônibus com posseiros precisou do dobro do tempo de viagem, quatro dias.

Vestindo camisas amarelas com a inscrição "Amazônia é dos Brasileiros", o grupo conseguiu falar com Bolsonaro durante cerca de 4 minutos. Diante do presidente, os porta-vozes do grupo pediram a regularização fundiária, reclamaram da homologação da Terra Indígena Cachoeira, em 2016, parcialmente sobreposta em assentamentos do Incra, e criticaram a suposta truculência da fiscalização do Ibama.

"Nos últimos 15 anos, só chega fiscalização. Nunca chegou ninguém para regularização", afirmou um dos uruarenses. "Tenho uma serraria, toda legal. Está bloqueada", disse outro. Por causa da demora na viagem de ônibus, os posseiros não chegaram a tempo do encontro no cercadinho.

Após ouvir as reivindicações de comitiva, Bolsonaro afirmou: "Eu sei dos problemas, não tenho o poder de avançar muito. É o aparelhamento de pessoas, de legislação. Você mexer num decreto ambiental, tem de ser uma lei. E eu, não fazendo muita coisa, já ajudei vocês."

"A grande maioria das pessoas está satisfeita com o governo, acredita no governo", afirma o advogado Leonardo Sidônio, que integrou a comitiva e defende madeireiros da cidade. "Sabemos que o governo brasileiro está sob pressão de organismos internacionais, de países, de ONGs, de organizações financeiras. O que, no nosso entender, é o que justifica essas operações que estão ocorrendo aqui."

Caminhões são detidos transportando madeira ilegal no Pará
Caminhões são detidos transportando madeira ilegal no Pará - Lalo de Almeida/Folhapress

Em contraste com o Pará –o único estado fora do Nordeste onde Fernando Haddad (PT) venceu no segundo turno–, os uruarenses optaram por Bolsonaro em ambas votações. No primeiro turno, obteve 55,4% dos votos. Contra o petista, o percentual subiu para 66,7%.

No poder, Bolsonaro afrouxou diversas normas para a indústria madeireira, mas fiscais ouvidos pela reportagem afirmam que elas não impactaram a fiscalização nas áreas de extração ilegal. Isso porque as mudanças recentes favoreceram principalmente empresas exportadoras, de maior poder econômico. Não é o caso das serrarias de Uruará, que, muitas vezes, são fornecedoras dessas empresas maiores.

Assim como em outras regiões da Amazônia, o esgotamento do estoque de árvores dos planos de manejo e em posses e propriedades privadas leva os os madeireiros a roubar a matéria-prima de áreas protegidas.

Fiscais da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará, com apoio da PM, percorrem a pé um ramal na área rural de Uruará, no Pará, durante operação de combate ao desmatamento ilegal

Fiscais da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará, com apoio da PM, percorrem a pé um ramal na área rural de Uruará, no Pará, durante operação de combate ao desmatamento ilegal Lalo de Almeida/Folhapress

Em Uruará, a principal fonte tem sido Cachoeira Seca, onde habita um grupo do povo arara contatado recentemente, em 1987.Um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) mapeou 894 km de estradas ilegais abertas dentro da TI, uma das poucas áreas da região com o valioso ipê.

Para esquentar a madeira na região, a fiscalização, que inclui também a Polícia Rodoviária Federal identificou diversas fraudes, como inflar a quantidade e o tamanho de árvores dentro de planos de manejo e usar créditos de extração de madeira do estado vizinho de Mato Grosso.

Embora a extração da madeira faça apenas o corte seletivo de árvores, a atividade costuma abrir caminho para o desmatamento. É o que acontece em Cachoeira Seca, onde novos invasores passaram a se misturar com famílias ocupantes de boa-fé, já que a terra indígena foi demarcada sobre assentamentos do Incra. A maioria é da década de 1970, mas um deles, Macanã 1, foi criado em 2006, no governo Lula (PT), já com a demarcação em andamento.

O imbróglio contribuiu para o caos fundiário do município, mais regra do que exceção na Amazônia. Um levantamento da pesquisadora Brenda Brito, do Imazon, revela que os imóveis titulados no município somam 91,5 mil hectares. Já a área não destinada ou sem informação chega a 558 mil hectares. Os números, de 2017, não incluem assentamentos.

Colaborou Monica Prestes, de Manaus

Madeira ilegal apreendida e armazenada em um depósito da Prefeitura de Uruará

Madeira ilegal apreendida e armazenada em um depósito da Prefeitura de Uruará Lalo de Almeida/Folhapress

Quilombos da selva

Sob Bolsonaro, quilombos têm menor orçamento em uma década

Processo de titulação já era moroso, mas agora esbarra na promessa de Bolsonaro de não demarcar 'nem 1 cm de terra'; comunidades não têm energia, vivem conflitos com Exército e sofrem para vender suas castanhas

Vista aérea do Real Forte Príncipe da Beira, às margens do rio Guaporé, em Rondônia; do lado direito está a comunidade quilombola de mesmo nome

Vista aérea do Real Forte Príncipe da Beira, às margens do rio Guaporé, em Rondônia; do lado direito está a comunidade quilombola de mesmo nome

Fabiano Maisonnave Lalo de Almeida Jasmin Endo Tran
Vale do Rio Guaporé (RO)

Ao longo do século 18, diversas comunidades de ex-escravizados se espalharam pelo rio Guaporé, na atual fronteira com a Bolívia. Sobreviveram a expedições de captura e extermínio, à chegada dos seringalistas e à colonização de Rondônia iniciada na ditadura militar. Até que a Constituição de 1988 assegurou aos quilombolas o direito à regularização fundiária.

O processo, no entanto, tem sido moroso, está longe do fim e agora esbarra na promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de não demarcar "nem um centímetro de terra" a quilombolas e indígenas.

Em Rondônia, apenas duas das oito comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares foram tituladas pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), ambas antes de Bolsonaro. O estado não destoa da média nacional: somente 317 das 3.456 comunidades quilombolas reconhecidas estão regularizadas, 9% do total.

Sem mudanças normativas, a paralisação está ligada principalmente à queda acentuada do orçamento para o trabalho de campo e para as indenizações de terra, declínio iniciado em 2015, no governo Dilma Rousseff (PT).

Em 2020, o limite autorizado para a Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ) foi de R$ 2.922.525, o menor valor em pelo menos uma década. No mesmo ano, o Ministério da Defesa desembolsou R$ 2,5 milhões para comprar vinho.

Em dois anos sob Bolsonaro, o Incra titulou parcialmente duas comunidades quilombolas, Invernada Paiol de Telha (PR) e Rio dos Macacos, na região metropolitana de Salvador, onde há uma disputa com a Base Naval de Aratu, da Marinha.

Após ação civil pública movida pela ONG Terra de Direitos, a Justiça Federal determinou que o governo Bolsonaro pagasse a indenização de áreas privadas dentro de Paiol de Telha, no município de Reserva do Iguaçu (PR). Como resultado, em novembro de 2020, Bolsonaro assinou uma lei que transferiu para o Incra o montante de R$ 26.717.063,00.

Segundo o Incra, há 28 imóveis rurais incidentes em territórios quilombolas pendentes apenas de indenização, totalizando R$ 25,7 milhões. Com os recursos do orçamento de 2020 destinado a indenizações, seriam necessários 9,5 anos para quitar esse montante.

Mas o gargalo é muito maior. Os processos em trâmite no Incra somam 1.806, dos quais 617 na Amazônia Legal, o que inclui Mato Grosso e parte do Maranhão.

"O nosso problema se chama Incra. Não tem fazendeiro e nada aqui, a gente está em terra da União, não tem conflito", diz o quilombola Apolônio França Neto, presidente da associação da comunidade de Pedras Negras, cuja regularização tramita desde 2005. "O nosso presidente disse que não ia dar nem um palmo de terra para quilombola e está se cumprindo, infelizmente."

Moradores da comunidade quilombola de Pedras Negras, em Rondônia, preparam a trilha para escoar a coleta de castanha Lalo de Almeida/Folhapress

Acessível apenas por barco ou avião, Pedras Negras foi identificada como comunidade quilombola por meio da pesquisa do historiador Marco Teixeira, da Universidade Federal de Rondônia (Unir). Fonte dos processos de reconhecimento desses territórios, seu trabalho identificou a origem da população negra do Guaporé nos africanos trazidos por portugueses no século do 18, dentro do tripé colonial de mineração, escravidão e ocupação militar das fronteiras.

A população negra ali está vinculada a duas grandes iniciativas. A descoberta de grande quantidade de ouro na região levou os portugueses a construírem, no alto rio Guaporé, Vila Bela da Santíssima Trindade. Fundada em 1752 às margens do Guaporé, foi a primeira capital de Mato Grosso.

A líder comunitária Mafalda Gomes em sua casa na comunidade quilombola Santa Fé, no vale do rio Guaporé, em Rondônia

A líder comunitária Mafalda Gomes em sua casa na comunidade quilombola Santa Fé, no vale do rio Guaporé, em Rondônia Lalo de Almeida/Folhapress

Décadas mais tarde, a presença portuguesa foi reforçada com a construção do imponente Real Forte Príncipe da Beira, inaugurado em 1783, após sete anos de obras, tocadas por escravizados e trabalhadores livres. Com um perímetro de cerca de 900 metros, é a maior edificação colonial na Amazônia e está a centenas de quilômetros ao norte de Vila Bela.

Teixeira calcula que 10 mil africanos tenham sido levados ao Guaporé ao longo de 50 anos. Logo, se tornaram a imensa maioria da população não indígena local. Segundo o historiador, as péssimas condições de trabalho na região provocaram grande mortalidade _em média, um escravizado que não fugisse morria após seis meses da chegada.

Na Amazônia, o principal porto de entrada dos africanos escravizados foi Belém –o Pará é o estado com mais comunidades quilombolas do Norte. Segundo a Fundação Palmares, a região abriga 369 comunidades, 11% das reconhecidas do país.

Morador da comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira, no vale do rio Guaporé, em Rondônia, passa de bicicleta em frente a fortaleza militar construída no século 18

Morador da comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira, no vale do rio Guaporé, em Rondônia, passa de bicicleta em frente a fortaleza militar construída no século 18 Lalo de Almeida/Folhapress

Vigas de madeira escoram as ruínas no interior do Real Forte Príncipe da Beira

Vigas de madeira escoram as ruínas no interior do Real Forte Príncipe da Beira Lalo de Almeida/Folhapress

O pico do tráfico para a Amazônia ocorreu entre 1800 e 1810, com o desembarque de 10.927 escravizados, segundo o livro "The People of the River" (o povo do rio), do historiador Oscar de la Torre, da Universidade da Carolina do Norte.

"Vendeu-se por muito tempo a narrativa que na Amazônia não tem negro nem teve escravidão", afirma Givânia Maria da Silva, da Conaq (Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas).

Segundo ela, a escravidão no Norte criou modelos diferentes aos do Nordeste e Sudeste. Em consequência, as comunidades quilombolas locais trazem características comuns ao povoamento tradicional amazônico, como a interação com os rios e o usufruto de grandes áreas.

Cicero Xavier da Paz, funcionário da Funasa, espalha fumacê contra mosquito transmissor da malária pelas ruas da comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira

Cicero Xavier da Paz, funcionário da Funasa, espalha fumacê contra mosquito transmissor da malária pelas ruas da comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira Lalo de Almeida/Folhapress

Crianças da comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira assistem a um jogo de futebol em frente à antiga sede da associação da comunidade

Crianças da comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira assistem a um jogo de futebol em frente à antiga sede da associação da comunidade Lalo de Almeida/Folhapress

Após o fim do ouro e o abandono do forte pelos militares, a região perdeu interesse estratégico por décadas, até a chegada do ciclo da borracha, no final do século 19, quando os quilombolas passaram a trabalhar para seringalistas vindos de fora. A borracha amazônica, no entanto, foi perdendo importância econômica após o fim do segundo ciclo, encerrado com a Segunda Guerra (1939-145)

A pressão mais recente ocorreu a partir das décadas de 1960 e 1970, com a chegada de colonos a Rondônia. Disputas territoriais, a decadência da navegação fluvial e a falta de escolas levaram centenas de famílias a deixarem as comunidades quilombolas rumo à cidade.

"Era uma comunidade isolada das estradas, mas não do rio porque o barco passava. A gente sabia o dia, os horários, tinha rádio de comunicação, produzia farinha e borracha", afirma o funcionário público Juracyr Nogueira de Menezes, 55, ex-morador da comunidade Santo Antônio.

"Há falta de assistência. Santo Antônio está sem energia desde novembro. Nessa era em que estamos hoje, é difícil para a pessoa ficar ali. E esse jovem não tem estrutura para ficar na cidade, muitos pegam o caminho da droga, o mais fácil, e acaba morto ou preso."

Moradores da comunidade quilombola de Santo Antonio se reúnem para conversar sob a sombra das árvores

Moradores da comunidade quilombola de Santo Antonio se reúnem para conversar sob a sombra das árvores Lalo de Almeida/Folhapress

Esvaziada, Santo Antônio é uma das seis comunidades à espera de regularização. As poucas famílias que restaram produzem principalmente farinha d"água. Com a falta de energia, a internet não funciona. Para piorar, o telefone público estava quebrado havia dois meses quando a reportagem visitou a comunidade, no final de janeiro.

O imbróglio ali envolve a Reserva Biológica do Guaporé, criada em 1982. A unidade de conservação, que proíbe qualquer tipo de ocupação humana, inclui todo o território quilombola, ignorando os moradores que habitam o local há mais de 200 anos. Via assessoria, o Incra informou que, para regularizar, é necessária a desafetação por meio de um projeto de lei a ser aprovado pelo Congresso, um cenário distante.

Em Pedras Altas, os comunitários afirmam que a falta de titulação dificulta a comercialização formal da castanha-do-Pará. Eles preferem vender para bolivianos, do outro lado do rio, atividade que tem sido alvo de repressão policial. Outra fonte de renda é o turismo de pesca, por meio de pousadas administradas pelos próprios quilombolas. Segundo o Incra, o processo de de regularização está na fase de publicação da portaria de reconhecimento, sem data para conclusão.

Na comunidade Forte Príncipe da Beira, a 25 km em estrada de terra de Costa Marques (RO), o conflito territorial é com o 1º Pelotão Especial de Fronteira (PEF), do Exército. Vizinhos da construção histórica e do quartel, os moradores dizem que os militares passaram a perseguir a comunidade após a decisão de regulamentar a área como território quilombola, no início deste século.

Placa ao lado do Real Forte Príncipe da Beira sinaliza a presença de um pelotão do Exerército ao lado da construção histórica

Placa ao lado do Real Forte Príncipe da Beira sinaliza a presença de um pelotão do Exerército ao lado da construção histórica Lalo de Almeida/Folhapress

Ao longo dos últimos anos, foram inúmeros incidentes, desde proibição para abrir roça até impedir a venda de castanha-do-Pará para compradores bolivianos. A convivência melhorou após 2019, com a assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) intermediado pela Justiça e pelo Ministério Público Federal, mas a titulação continua incerta.

"A região é de fronteira e de extremo interesse para as atividades militares, a fim de garantir a integridade do território nacional. O Exército não se opõe à regularização da situação dos ocupantes da área. Porém, por se tratar de local de fronteira, é preciso harmonizar os interesses de defesa territorial brasileira com a necessidade de regularização em questão", afirmou a força armada.

O Incra informou que o RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) foi concluído no final de 2020 e está sendo analisado pela procuradoria jurídica do órgão.

"Nós somos tolerados hoje pelo pelotão. Não é que somos aceitos nem que eles são bonzinhos", afirma o presidente da associação quilombola, Elvis Pessoa, 42, filho de brasileiro com boliviana, arranjo comum na região. "Tem um decreto assinado pela equipe deles que diz que tem de ser assim."

Colaborou Monica Prestes, de Manaus.

Casa abandonada na comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira

Casa abandonada na comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira Lalo de Almeida/Folhapress

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