terça-feira, 23 de março de 2021

Uso do "kit COVID" aumenta risco de morte, dizem médicos

Felipe Demartini
 

Chefes de UTIs brasileiras e médicos intensivistas voltaram a se posicionar contra a utilização do “kit COVID” no chamado tratamento precoce contra contaminações pelo novo coronavírus. De acordo com os profissionais, ouvidos em reportagem da BBC Brasil, os medicamentos que não possuem eficácia comprovada não apenas são incapazes de ajudar a prevenir casos graves da doença como chegam a dificultar o atendimento hospitalar, quando necessário.

O médico intensivista Ederlon Rezende, coordenador da UTI do Hospital do Servidor Público do Estado, em São Paulo (SP), cita números que explicam a ideia ventilada pelos apoiadores dos medicamentos, quanto a seu funcionamento, e que também exibem a maior dificuldade nos tratamentos quando o “kit COVID” não é eficaz. De acordo com ele, de 80% a 85% dos pacientes contaminados com o coronavírus não desenvolvem a forma mais grave da doença e, neles, o uso do chamado tratamento precoce não terá efeito algum, benéfico ou prejudicial, desde que doses excessivas não sejam administradas ou inexistam condições que possam ser agravadas pelo uso.

O problema, porém, está no restante, de 15% a 20% dos contaminados. Os efeitos colaterais de medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina podem envolver hepatite, problemas renais, infecções, gastrite e diarreias. De acordo com Rezende, tais condições podem ter impacto nos tratamentos intensivos contra o COVID-19, além de retardarem a busca dos pacientes por tratamento médico, com muitos chegando aos hospitais com os pulmões já amplamente comprometidos pela doença.

Um dos principais reflexos negativos do uso do “kit COVID” está relacionado ao coração — a hidroxicloroquina pode causar arritmia cardíaca como efeito colateral, enquanto o coronavírus pode gerar inflamações no coração e trombose. Combinados, tais efeitos dificultam o atendimento e a recuperação, com mais efeitos adversos, como delírios, também sendo relatados por pacientes que abusaram do medicamento de forma desnecessária.

<em>Ivermectina teve aumento de 557% nas vendas ao longo de 2020; associado a um suposto tratamento precoce contra COVID-19, vermífugo não tem eficácia comprovada contra a doença e pode causar efeitos colaterais (Imagem: Divulgação/Prefeitura de Itajaí)</em>

A ideia geral é que, quanto mais cedo for identificado e tratado o quadro de comprometimento pulmonar por conta do novo coronavírus, maiores as chances de sobrevida a quadros graves da doença. Por outro lado, a divulgação de tratamentos sem comprovação ou eficácia comprovadas contribui para o aumento no número de mortes entre os brasileiros, na visão de Carlos Carvalho, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo (SP).

Os médicos apontam, ainda, os riscos de combinação com outros remédios que as autoridades brasileiras desejam incluir no “kit COVID”. É o caso do Annita (nitazoxanida), um vermífugo que pode intoxicar o organismo se associado à ivermectina, e medicamentos com corticoides e antibióticos, que reduzem a imunidade e a resistência a infecções e bactérias, que também podem acontecer em um ambiente hospitalar durante o tratamento contra os efeitos do coronavírus.

A opinião dos especialistas ouvidos pela BBC é unânime: o uso de remédios sem necessidade piora as condições clínicas dos pacientes graves e pode dificultar a sobrevivência a casos de intubação ou formas mais graves da COVID-19. Os médicos criticam duramente os governos federais, estaduais e municipais que distribuem a cesta de remédios sem eficácia comprovada à população.

Transplantes e mais mortes

Uma segunda reportagem publicada nesta semana, desta vez pelo Estadão, associou o uso do “kit COVID” à morte de pelo menos três pacientes em São Paulo (SP). Todos estavam na fila de transplante de fígado e confirmaram terem usado a cesta de medicamentos como uma forma de prevenir a COVID-19, conforme prescrito por médicos, e chegaram ao Hospital das Clínicas com um quadro de hepatite medicamentosa associado ao abuso dos remédios.

A morte, afirmam os médicos, ocorreram devido à doença aguda do fígado, e não quadros associados à contaminação pelo novo coronavírus. Em alguns casos, as enzimas do fígado apresentaram alterações de 30 a 40 vezes maiores que o ideal, indicando diretamente um quadro de hepatite medicamentosa causada pelo uso indiscriminado de medicamentos.

A ivermectina é um vermífugo, usado no combate a carrapatos, piolhos e vermes — suas vendas, segundo o Conselho Federal de Farmácia, subiram 557% em 2020 e houve, inclusive, escassez do medicamento nas prateleiras, prejudicando o tratamento de quem efetivamente precisa dele. O mesmo também vale para a azitromicina, um antibiótico que só deveria ser utilizado em casos de infecção bacteriana, e a hidroxicloroquina, usada em pacientes com lúpus, malária, artrite reumatoide e doenças fotossensíveis.

Fonte: Canaltech

 

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