sábado, 23 de fevereiro de 2019

Reforma da Previdência é anacrônica, afirma o economista Belluzzo


Entre tantas propriedades milagrosas da Reforma, a mais proclamada é a volta do                                                crescimento vigoroso amparada nas expectativas favoráveis dos mercados, embevecidos                                                com a coragem e presteza do novo governo. Finalmente, dizem, um governo empenhado                                                 em exorcizar definitivamente o demônio do desequilíbrio fiscal.



Os desconfiados que ainda deambulam nos vazios das certezas indagam de seu bom 
senso se a badalada Reforma tem mesmo as virtudes apregoadas urbe et orbi. Não há 
como negar os propósitos de maior equidade das reformas propostas, à exceção dos 
golpes assentados nos miseráveis amparados pelos Benefícios de Prestação Continuada 
e nos trabalhadores rurais. 
Os argumentos dos reformistas partem de um fenômeno demográfico, o Brasil envelheceu. 
Uma boa notícia: o IBGE informa que a esperança de vida dos brasileiros e brasileiras 
alcança 74,4 anos. O envelhecimento juntou-se à queda acentuada da taxa de natalidade, 
promovida pela rápida urbanização que acompanhou a industrialização eloquente das 
três primeiras décadas do Pós-Guerra. Se há males que vêm para o bem, há bens que 
vêm para o mal. No regime de repartição, já foi dito, os que trabalham financiam os que
estão aposentados. No galope do tempo, a “nova” dinâmica populacional promete um 
desequilíbrio perverso entre os que trabalham e contribuem com a Previdência e aqueles 
que se aposentam e abocanham os benefícios.
Os estudos sobre as consequências da globalização produtiva e da rápida introdução das 
novas tecnologias vislumbram o crescimento dos trabalhadores ditos independentes, em 
tempo parcial e a título precário, sobretudo nos serviços, e a destruição dos postos de 
trabalho mais qualificados na indústria. O inchaço do subemprego e da precarização não 
só achata, como torna incertos os rendimentos dos trabalhadores, além de desobrigar os 
empregadores de prestar suas contribuições.
Na nova economia “compartilhada”, “do bico”, ou “irregular”, prevalece a incerteza a 
respeito dos rendimentos e das horas de trabalho. Algumas projeções estimam que, nos 
próximos cinco anos, mais de 40% da força de trabalho global estará submetida a um 
emprego precário. Essas transformações nos mercados de trabalho fragilizaram 
inexoravelmente o regime de repartição. A carteira verde-amarela de Paulo Guedes vai 
jogar mais água na fervura.
É uma ilusão imaginar que o regime de capitalização, prometido de forma vaga no texto 
da reforma, possa remediar os riscos embutidos nas transformações em curso nos 
mercados de trabalho. O economista José Roberto Afonso botou o dedo na ferida: “A 
reforma é um ajuste de contas com o passado”. Nos debates que se seguiram à 
apresentação das medidas, não há qualquer menção à imperiosa necessidade de uma 
reforma tributária, imprescindível para acompanhar as intenções de equidade das 
alterações na Previdência.
História antiga. Na década dos 80 do século XIX, Otto von Bismark, o Chanceler de Ferro,
sob o acicate da industrialização e as pressões do movimento socialista alemão, criou a 
Seguridade Social fundada no regime de repartição. Empregados e empregadore
passaram a contribuir para o fundo comum destinado a prover defesas contra os infortúnios 
do mundo do trabalho. O Kaiser anunciou o programa em 1881. O auxílio-doença foi criado 
em 1883, seguro contra acidentes do trabalho em 1882, e o sistema de aposentadorias em 
1889.  Os proventos dos aposentados eram modestos e o período de qualificação muito 
longo.  Nos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt entregou o Social Security Act ao 
povo americano em 1935. Na Inglaterra, na primeira eleição realizada depois de 1945, o 
trabalhista Clement Attlee derrotou o grande liberal Winston Churchill. Acompanhado 
por Aneurin Bevan, seu Ministro da Saúde, pai do National Health Service, Attlee 
desenhou a arquitetura do Estado do Bem-Estar britânico, inspirado no relatório 
preparado por outro liberal, Sir William Beveridge.
Em 1942, na Inglaterra ainda maltratada pela guerra, pelo racionamento e pela debilidade 
econômica, Sir William Beveridge, em seu lendário Relatório, fincou as estacas que iriam 
sustentar as políticas do Estado do Bem-Estar. O Relatório Beveridge recebeu a 
colaboração das concepções da Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda – obra 
magna do liberal, porém iconoclasta, John Maynard Keynes.
Beveridge apontou os “Demônios gigantes da vida moderna” que os governos estavam 
obrigados a enfrentar: Carência, Doença, Ignorância, Miséria e Inatividade. Em seu 
Relatório, proclamou que a ignorância é uma erva daninha que os ditadores cultivam 
entre seus seguidores, mas que a democracia não pode tolerar entre seus cidadãos.
Essa forma de financiamento da seguridade social, o regime de repartição, conheceu 
seu auge e glória na posteridade da Segunda Guerra Mundial, à sombra do Estado do 
Bem-Estar. O pleno emprego foi colocado como uma meta a ser perseguida pelas políticas 
econômicas. Muitas constituições europeias consagraram esse princípio. A nova 
Constituição dizia ser a Itália uma república baseada no direito ao trabalho, assegurado 
a todos os italianos no artigo 1º. Os Estados Unidos promulgaram uma lei. No Pós-Guerra, 
o rápido crescimento das economias capitalistas esteve apoiado numa forte participação 
do Estado, apoiada na elevação da carga tributária abrigada em um sistema tributário 
progressivo, medidas destinadas a impedir flutuações bruscas do nível de atividades e a 
garantir a segurança dos mais fracos diante das incertezas inerentes à lógica do mercado.
O Estado do Bem-Estar estava fundado, sobretudo, na articulação de interesses entre 
trabalhadores e capitalistas, empenhados na construção de instituições destinadas a reduzir 
a angústia de quem se propõe a assumir riscos e enfrentar os azares do mercado. Os 
regimes de Seguridade Social estavam assentados no princípio de solidariedade. Ao 
reduzir a insegurança das famílias assalariadas, esses regimes tiveram papel importante 
na expansão do consumo das classes  menos favorecidas.
As políticas econômicas tinham o propósito de criar empregos e elevar, em termos reais,
os salários e demais remunerações do trabalho. O continuado aumento da renda e do
emprego fazia crescer a receita dos governos. Há quem diga que o Brasil, ao promulgar
a Constituição de 1988, entrou tardia e timidamente no clube dos países que apostaram
na ampliação dos direitos e deveres da cidadania moderna. É um exagero. 

ESCRITO POR 
Economista e professor, consultor editorial de Carta Capital.

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