Inconstitucional, populista e ineficaz, a “Lei Anticrime” reitera um discurso demagogo de combate ao crime que enfraquece o Estado de Direito em prol dos estados de polícia, naturalizando a violência
Arte: Daniel Caseiro.
Por André Fonseca, Marina Lima e Laura Dimantas
Recentemente apresentado pelo atual ministro da Justiça, Sergio Moro, o projeto de lei denominado “anticrime” apresenta um pacote de medidas que versam sobre os mais diferentes aspectos da nossa legislação penal e processual penal. Tal pacote, contudo, muito antes de se configurar como fórmula mágica para o “combate à criminalidade” – que, vale dizer, não existe na prática –, apresenta-se como a configuração mais atual do direito penal emergencial, ainda que concretamente não seja capaz de surtir quaisquer efeitos protetivos ou preventivos.
O projeto, recheado de ilegalidades, é problemático desde a raiz, a começar pela amplitude de seu objeto: pretender que uma mesma lei estabeleça medidas contra a corrupção, contra o crime organizado e contra os crimes praticados com violência à pessoa é desconhecer a complexidade de questões tão diversas, que não necessariamente radicam das mesmas causas.
Ora, não se pode ser anticrime se não se conhecem os reais fatores que determinam a dinâmica da criminalidade na sua materialização concreta. Discursos penais acríticos e imediatistas, como os refletidos no projeto atacado, não têm o condão de solucionar as graves questões que assolam o nosso sistema de justiça, pois as inúmeras falhas de suas análises levam, obrigatoriamente, à mácula irreversível de seus diagnósticos – incorretos e, no limite, extremamente perigosos. Mais que mera simplificação demagoga de problemas complexos, os pontos destrinchados abaixo são ameaça iminente aos alicerces do Estado Democrático de Direito.
1. Medidas de endurecimento de penas e de seus regimes de cumprimento
Em resumo, estas envolvem não apenas a elevação de penas, mas a imposição de barreiras à progressão de regime e a criação de novos tipos penais, principalmente por meio de qualificadoras. Veja-se, por exemplo, a reformulação do crime de resistência, talvez uma das maiores aberrações dentre as providências sugeridas pelo ministro: o delito tipificado no artigo 329 do Código Penal (CP), hoje com pena cominada em, no máximo, três anos – na modalidade qualificada – poderá se confirmar como um dos mais gravosos crimes de todo o ordenamento. O parágrafo sugerido por Moro (“Se da resistência resulta morte ou risco de morte ao funcionário ou a terceiro”) propõe um incremento absurdamente desproporcional à pena, que passa de seis a exatos trinta anos de reclusão. Mesmo que ninguém saiba ao certo o que será considerado “risco de morte” (o mero porte de arma, talvez?), a reforma deixa transparecer que, para o Estado, colocar a vida de um funcionário público em risco é pior que o homicídio do cidadão comum.
Ademais, ignorando a orientação prevalente de desencarceramento, reforçada pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF), o projeto impõe barreiras à progressão de regime, instituindo em alguns casos a possibilidade de aplicação do regime fechado independentemente da quantidade de pena cominada e, ainda, permitindo que juízes fixem período mínimo de cumprimento de pena neste regime, discricionariedade que contraria os requisitos objetivos da Lei de Execução Penal (LEP), conforme seu art. 112 – o cumprimento de um sexto da pena no regime anterior e que o condenado ostente bom comportamento carcerário.
O texto apresentado pelo ministro não só ignora tais enunciados como inclui elementos subjetivos diversos (o que seria o “mérito” do condenado?), limitando, igualmente, (i) as saídas temporárias, mesmo durante o cumprimento de pena em regime semiaberto, e (ii) a concessão de liberdade provisória para dificultar a soltura de “criminosos habituais”, em retorno claro à etiologia individual – abandonada há quase um século por seus próprios defensores. Aparentemente como uma resposta simplista aos alegados anseios sociais e na contramão da melhor criminologia, o ministro crê que o incremento da resposta penal reprime, de fato, delitos, o que não se prova na realidade. Em verdade, o que ocorre é que esta resposta ou agrava o problema combatido, ou o torna relativamente estável ou, como acontece no mais das vezes, é a ele indiferente.
2. Medidas de flexibilização de garantias legais e constitucionais
Para além do endurecimento de crimes e penas, o projeto apresentado se traduz em um ataque sistemático a garantias legais e constitucionais. Formaliza, a princípio, a execução antecipada da pena, apenas tornando mais visível sua incompatibilidade frente ao texto constitucional, incluindo o art. 617-A no Código de Processo Penal (CPP), que torna mandatória a determinação da execução provisória de pena privativa de liberdade logo após o proferimento de acórdão condenatório. Além disso, reconhece a atual violação aos dispositivos constitucionais por meio da inserção, no art. 283 do CPP, do adendo “Ninguém poderá ser preso senão (…) em virtude de condenação criminal transitada em julgado ou exarada por órgão colegiado”.
E se não bastasse, o desvario se amplia quando a antecipação do cumprimento da pena de prisão atinge, também, o Tribunal do Júri. A partir da redação sugerida para o art. 492, inciso I, e, do CPP, após sentença condenatória proferida pelo Tribunal, será determinada a execução provisória da pena, mesmo antes do julgamento de eventual recurso de apelação interposto pelo réu. Prisão sem duplo-grau de jurisdição, portanto.
Ademais da execução provisória da pena, as medidas anticrime alteram profundamente o instituto da prescrição, uma das garantias do cidadão em face da ineficiência do próprio Estado na gestão de conflitos. Todo indivíduo tem direito de ser julgado em prazo razoável, como assegura o art. 5º, LXXVIII da Constituição da República (CR), como garantia de que suas questões cíveis ou penais sejam resolvidas judicialmente sem dilação indevida (LOPES JR., 2014). O proponente do projeto se esquece desta lição, contudo, ao propor, simplesmente, que a reincidência interrompe o curso prescricional (art. 117, VI, CP). Ora, o inciso tudo permite, apesar de nada dizer: serão considerados imprescritíveis, a revés da Constituição, eventuais crimes cometidos por reincidentes?
Por fim, dentre as mudanças mais preocupantes, se encontram a flexibilização das possibilidades de realização de interrogatório por videoconferência – que alcança, até mesmo, audiências de custódia – e a alteração do regime jurídico dos presídios federais. No que se refere à primeira, a proposta vai de encontro à necessidade de apresentação imediata e pessoal dos presos em flagrante a um juiz (em prol da humanização e da individualização do tratamento dado ao investigado), assim como limita a sua possibilidade de defesa. Afinal, videoconferência não vê tortura.
Quanto à segunda, até mais gritante em sua insensatez, prevê a inclusão em estabelecimentos federais, em regime fechado de segurança máxima, daqueles para quem a medida se justifique pelo interesse da segurança pública. A proposição restringe visitas e dificulta enormemente o atendimento por advogado que, pelo projeto, deve ser previamente agendado. Não contente, fica prevista a possibilidade de gravação dos atendimentos jurídicos, uma afronta não apenas às prerrogativas dos advogados, quanto ao direito à ampla defesa, pilar essencial à perpetuação do Estado Democrático de Direito. Neste contexto, no embate indivíduo versus Estado, as disparidades de força claramente se exacerbam em favor do segundo.
3. Medidas relacionadas à legítima defesa: o populismo do discurso
De todos os pontos analisados, talvez seja este o mais panfletário. Ao bradar pela aplicação da legítima defesa para homicídios cometidos por policiais, o projeto oculta, com ares de inovação, uma constatação demasiadamente simples: esta aplicação já existe, nos exatos termos da lei.
Conforme SANTOS e ZILIO, o instituto da legítima defesa possui duplo fundamento: de um lado, a proteção do indivíduo e, de outro, o prevalecimento do direito. Seus requisitos, por sua vez, são a existência de uma ação humana de agressão, penalmente relevante e contrária ao ordenamento jurídico, que seja de iminência imediata e contra a qual haja resposta idônea – que consiga de fato afastar a agressão – e proporcional – que cause o menor dano possível ao agressor.
Tais importantes enunciados estão recepcionados no art. 25 do CP, que prevê a legítima defesa como excludente de ilicitude de uma determinada ação para “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Prevê, ainda, a punição do excesso, conforme o parágrafo único do art. 23 do mesmo dispositivo.
Dessa maneira, a proposta de criação de novo parágrafo para considerar-se em legítima defesa “o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem” não só se mostra desnecessária como é, também, intrinsecamente populista. Afinal, resta claro que os agentes do Estado, assim como qualquer outra pessoa, podem ser vítimas de agressão e, em face dela, defenderem-se legitimamente. O problema, por outro lado, é a não observância do fato de que tais agentes devem, ao agir em legítima defesa, atuar de forma ainda mais moderada do que o faria um particular, tendo em vista o seu dever legal de proteção a qualquer pessoa. Ora, se o Estado mantém um serviço de segurança, não pode desvirtuá-lo a ponto de violar sua própria finalidade, que é a proteção dos cidadãos (TAVARES, 2018).
Para mais, igualmente problemática a flexibilização da punição do excesso, conforme o art. 23 do CP, ao permitir que o juiz reduza a pena ou deixe de aplicá-la, se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção. Tal proposta, além de trazer à tona elementos subjetivos de difícil aferição real, pode, em um país onde ainda vigem os “autos de resistência”, assegurar cinicamente nossas elevadas taxas de letalidade policial – um grave problema de segurança pública que, apesar de desprezado pelas autoridades brasileiras, não o é pelas Cortes Internacionais. O projeto se esquece, assim, de que o instituto da legítima defesa versa sobre a proteção da liberdade e deve levar, de alguma maneira, à redução da violência – e nunca ao seu fomento ou justificativa.
4. Medidas de introdução de “soluções negociadas”: o direito penal da negociata
O projeto anticrime propõe, ainda, a introdução do instituto norte-americano do Plea Bargaining, que tem por baliza a aplicação de uma pena articulada por acordo entre o acusado, o órgão de defesa e a acusação, sem a necessidade de completude de todo o trâmite processual, desde que reconhecida a culpa. Veja-se: questão central, aqui, não é o incremento de uma lógica consensual ou de cooperação, que pode trazer vantagens virtuais de eliminação de julgamentos, de celeridade e de economia de recursos. O problema reside, na verdade, na disparidade de forças e no prejuízo à legalidade.
Caso aprovado, uma vez estendido o instituto para crimes de maior monta, até investigados inocentes serão impelidos a aquiescer a sua (não) culpa, como forma de se evitar o peso de um processo criminal e o prejuízo irreparável de uma futura condenação, especialmente considerando o endurecimento das penas e de seus regimes de cumprimento, no contexto de um sistema penal já falido, como o brasileiro.
Limitar a aplicação do direito ao mero custo-benefício é expor o processo penal a uma feição mercadológica em que tudo se negocia, em detrimento, por vezes, das próprias chances de defesa do acusado. Dito isso, é preciso que se pense em celeridade sem que isso importe em simplificação desmedida e em coação, levando sempre em consideração direitos fundamentais da parte mais fraca na relação indivíduo-estado: o acusado.
5. Medidas pró-investigação e de restrição de liberdades
As propostas para “aprimorar a investigação de crimes” alteram tanto a LEP quanto a Lei nº 12.037/09 – sobre a identificação criminal do civilmente identificado – e envolvem a criação de um (i) Banco Nacional de Perfil Genético, a submeter obrigatoriamente os condenados por crimes dolosos, mesmo sem trânsito em julgado, à extração de DNA, e de um (ii) Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais, com o objetivo de armazenar dados de registros biométricos, de impressões digitais e, quando possível, de íris, face e voz, para subsidiar investigações criminais, inclusive de presos provisórios, ainda que não tenham sido extraídos por ocasião da identificação criminal.
Tal proposta peca desde o seu tom lombrosiano, altamente estigmatizante, e torna-se ainda mais preocupante no que toca o mero acusado, sobrepesando apenas a sua suposta autoria. Não somente, as referidas medidas avultam em demasia o poder estatal em face dos cidadãos, colocando em risco não somente as garantias constitucionais que consagram a ampla defesa e a presunção de inocência – ao obrigar o indivíduo a fornecer material que o identifique, sem promover qualquer contraditório em face das conclusões de eventual análise –, mas, principalmente, a própria vedação à autoincriminação.
Não pode qualquer sujeito ser compelido a declarar ou a participar de qualquer atividade que possa incriminá-lo ou prejudicar sua defesa – tal como acareações, reconstituições e fornecimento de material genético e demais registros. Por certo, a recusa é um direito, não podendo obviamente causar prejuízo ao imputado (LOPES JR., 2001), e muito menos ser considerada falta grave, como pretende o projeto.
A coleta e o armazenamento de traços biológicos e comportamentais em bancos de dados informatizados, para posterior utilização como amostra comparativa, trazem uma série de riscos típicos à banalização dessas tecnologias como técnica de controle – o problema dos falsos-positivos, a seletividade, a falta de transparência e ponderações quanto à segurança das operações. Sendo assim, apesar do aprimoramento de técnicas investigatórias ser de extrema necessidade, deve-se atentar à existência de limites constitucionais como a dignidade humana e o direito à privacidade, como garantias que corroboram com a legitimidade do processo acusatório. Afinal, a impessoalidade com que se analisam tais amostragens pode levar à instrumentalização estatística do sistema punitivo e à mecanização da violência, frente aos quais o sujeito tem pouca capacidade de resistir. Resta-lhe apenas, aqui, buscar amparo junto aos direitos inerentes à cidadania, que devem ser sempre protegidos, portanto (DIETER, 2012).
Conclusões
A justiça que permite ilegalidades, falseadas como soluções emergenciais, legaliza a injustiça e mascara a imoralidade de ordem legal. O projeto anticrime não possui ordem, clareza ou previsibilidade, aspectos necessários a qualquer dogmática que pretenda ser garantia de liberdade. Do contrário, serve à proliferação de uma prática penal expansiva e antiética, que enfraquece o Estado de Direito em prol dos estados de polícia, bem como reitera um discurso ilusório de combate ao crime, naturalizando a violência e desestimulando a procura por suas reais determinações, em toda a sua complexidade. Inconstitucional, populista e ineficaz: este é o anúncio da proposta que, se aprovada, será um retrocesso tão vasto quanto os danos que trará – e que não deverão ser recobrados.
André Fonseca é sócio conselheiro da área de Penal Empresarial em Felsberg Advogados. LL.M em Common Law Studies pela Georgetown University e especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Bacharel em direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Marina Lima é advogada da área de Penal Empresarial em Felsberg Advogados. Mestranda em Criminologia e Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e bacharela em direito pela mesma instituição. Dupla-graduação em direito pela Université de Lyon, França.
Laura Dimantas é advogada da área de Penal Empresarial em Felsberg Advogados. Bacharela em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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