segunda-feira, 30 de agosto de 2021

The Economist: Mudanças climáticas vão trocar cultivos de lugar no mundo

Isso resultará em ganhos para algumas pessoas, mas em perdas para a maioria; alguns países, como a Rússia, já se mostram dispostos a capitalizar em cima do aquecimento global

The Economist

30 de agosto de 2021 | 11h00

Tom Eisenhauer recorda-se de dirigir por Manitoba, uma província no centro do Canadá, mais de uma década atrás, cercado por cultivos peculiares de regiões frias, como trigo, ervilha e canola (colza). Os densos campos de alimentos como milho e soja, que são mais lucrativos, eram poucos e dispersos. Essa paisagem está muito diferente agora. Mais de 5,3 mil quilômetros quadrados da região foram semeados com soja e outros cerca de 1,5 mil, com milho.

A empresa de Eisenhauer, a Bonnefield Financial, espera se beneficiar das maneiras como as mudanças climáticas estão transformando a agricultura canadense. A empresa compra terras e arrenda as propriedades para agricultores, em Manitoba e outras regiões do país. Sua aposta é que o clima mais quente elevará constantemente o valor das terras, ao permitir que agricultores dos lugares onde investe cultivem produtos mais valiosos do que os preferidos tradicionalmente. 

Ela está longe de ser a única empresa apostando nisso. As mudanças climáticas poderiam produzir uma cornucópia de possibilidades em terras anteriormente congeladas em improdutivas. E também poderia prejudicar enormemente regiões que produzem alimentos para milhões de pessoas.

Trigo / Canadá
Colheita de trigo na província de Manitoba, na região central do Canadá. Foto: Shannon VanRaes/Reuters - 28/8/2020

A quantidade de espaço usado para produção agrícola tem aumentado ao longo dos séculos. Desde 1700, áreas cobertas por cultivos e pastagens aumentaram em cinco vezes. A maior parte do crescimento ocorreu na primeira metade do século 20. A partir da década de 1960, o uso indiscriminado de fertilizantes químicos, o desenvolvimento de variedades mais produtivas de grãos e arroz, juntamente com acesso mais fácil a irrigação, pesticidas e maquinário, possibilitaram que agricultores aproveitassem muito mais os campos que já possuíam. Em décadas recentes, tecnologias como edição genética e melhorias em processamento de dados ajudaram a aumentar ainda mais as colheitas.

A elevação global das temperaturas que começou perto do fim do século 20 diminuiu os aumentos de produtividade, mas não os impediu. Um estudo recente de pesquisadores da Universidade Cornell calcula que, desde 1971, as mudanças climáticas ocasionadas pela atividade humana desaceleraram em cerca de um quinto o aumento da produtividade agrícola.

O “contravento" causado pelas mudanças climáticas soprará com cada vez mais força, afirma Ariel Ortiz-Bobea, um dos autores do estudo. Sua pesquisa constatou que a vulnerabilidade da produtividade agrícola aumenta à mesma medida que a temperatura do planeta. Em outras palavras, cada fração adicional de grau à temperatura será mais prejudicial à produção de alimentos do que a elevação anterior. 

Isso é má notícia especialmente para produtores de alimentos de lugares como os trópicos, que já são quentes. Outro estudo prevê que, a cada grau de aumento na temperatura global, a produção de milho cai 7,4%, a de trigo, 6%, e a de arroz, 3,2%. Esses três alimentos fornecem cerca de dois terços de todas as calorias que os humanos consomem.

Nas próximas décadas, haverá mais bocas para alimentar. O Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde, um grupo americano de pesquisas, prevê que a população mundial crescerá de atuais 7,8 bilhões de pessoas para 9,7 bilhões em 2064 (depois disso, deverá cair). Crescentes classes médias em muitos países em desenvolvimento estão exigindo variedade cada vez maior de alimentos, e mais quantidade.

Daí a importância das mudanças que o aquecimento global leva às áreas agricultáveis. A expansão da zona tropical alterará os padrões de chuvas nas zona subtropicais. O derretimento especialmente rápido das regiões polares está abrindo ao mesmo passo novas terras em latitudes altas. Regiões do norte da América e da China estão se aquecendo pelo menos duas vezes mais rapidamente do que a média global. E, como a experiência de Eisenhauer em Manitoba pode atestar, os cultivos já estão se aproximando dos polos, como resposta.

Um estudo publicado por pesquisadores da Universidade Estadual do Colorado na revista Nature, em 2020, constatou alterações notáveis na distribuição de vários cultivos que dependem de chuva entre 1973 e 2012, enquanto agricultores começavam a tomar decisões diferentes a respeito de que cultivos deveriam ser plantados em cada lugar. A produção de milho, por exemplo, se espalhou do sudeste dos EUA para o norte do meio-oeste do país. O trigo se deslocou tão substancialmente para o norte, com a ajuda de métodos de irrigação, que ultrapassou essa tendência causada pelo aquecimento: os lugares mais quentes onde o trigo é cultivado hoje são mais frios do que os lugares mais quentes que era cultivado em 1975.

Grãos de soja fornecem 65% de toda proteína consumida pelas criações de animais. O cultivo desses grãos-maravilha avançou tanto para o norte quanto para o sul, enquanto novas variedades e outros avanços permitiram que se expandisse em regiões tropicais. As regiões produtoras de arroz na China têm se expandido para o norte desde 1949. Cultivos de uvas vinícolas e outras frutas também migraram para o norte.

Eisenhauer afirma que investidores estão se voltando cada vez mais para terras canadenses como uma proteção contra riscos climáticos que eles encontram em outros lugares. Martin Davies, da Westchester, uma grande firma de investimentos agrícolas, afirma que tem visto tendências similares em muitas partes do mundo.

Manitoba, Canadá
A província de Manitoba, no Canadá, está passando por uma mudança no perfil das lavouras por causa do aquecimento global. Foto: Shannon VanRaes/Reuters - 20/8/2020

Um banquete itinerante?

Investidores mais corajosos enxergam oportunidades em terras que atualmente não sustentam nenhum tipo de agricultura. No momento, somente cerca de um terço das regiões boreais do globo - um bioma caracterizado por florestas de coníferas que cobrem vastas faixas de terra ao sul do Círculo Polar Ártico - atingem temperaturas quentes o suficiente para cultivos de cereais dos mais robustos, como aveia e cevada. Essa dimensão pode se expandir para três quartos até 2099, de acordo com um estudo publicado em 2018 na revista Scientific Reports. A faixa de terras boreais capazes de sustentar agricultura poderia aumentar de 8% para 41% na Suécia - e de 51% para 83% na Finlândia.

Esforços para cultivar essas regiões deixarão alarmadas pessoas que valorizam as florestas boreais intocadas. E derrubar essas florestas e arar o solo que jaz abaixo delas emitirá carbono. Mas os efeitos climáticos são mais complexos do que podem parecer. Florestas boreais absorvem mais calor do sol do que campos de cultivos, porque terras cobertas de neve refletem a luz de volta ao espaço (nas florestas, a neve fica sob as árvores e não recebe tanta luz). O fato de que derrubar florestas boreais pode não agravar as mudanças climáticas, porém, não diz nada a respeito da medida em que isso pode afetar a biodiversidade, serviços ecossistêmicos ou as vidas de pessoas que vivem nas florestas, especialmente indígenas.

Alguns países já se mostram dispostos a capitalizar em cima das mudanças climáticas. O governo da Rússia qualifica a elevação das temperaturas como um trunfo há muito tempo. O presidente Vladimir Putin gabou-se em certa oportunidade a respeito do aquecimento possibilitar aos russos gastar menos dinheiro em casacos de pele e cultivar mais grãos. Em 2020, um “plano de ação nacional” a respeito de mudanças climáticas delineou as maneiras que o país poderia “se valer das vantagens” do fenômeno, incluindo na expansão da agricultura. A Rússia é o maior produtor mundial de trigo desde 2015, principalmente em razão da elevação nas temperaturas.

O governo da Rússia começou a arrendar milhares de quilômetros quadrados de terra no extremo leste do país para investidores chineses, sul-coreanos e japoneses. Grande parte dessas terras, improdutivas anteriormente, agora é usada para cultivar soja. A maior parte da produção é importada pela China, o que ajuda o país a reduzir sua dependência de importações dos EUA. Sergei Levin, vice-ministro russo da Agricultura, previu que as exportações de soja produzida nas terras do extremo leste de seu país alcançarão US$ 600 milhões até 2024. Isso representaria quase cinco vezes o valor de 2017. O governo de Terra Nova e Labrador, uma província no nordeste do Canadá, também está tentando promover a expansão da agricultura a regiões cobertas por florestas.

Há outra maneira, além das altas temperaturas, pela qual as mudanças provocadas pela humanidade na atmosfera poderiam ajudar projetos desse tipo avançar. O dióxido de carbono não é apenas um gás de efeito estufa; é também a matéria-prima da fotossíntese que alimenta e faz crescer as plantas. Para a maioria dos vegetais, se tudo mais for constante, mais dióxido de carbono significa maior crescimento. O acúmulo de dióxido de carbono ao longo do século passado ocasionou um “esverdeamento global” claramente mensurável, enquanto as plantas que mais se beneficiam de níveis maiores de dióxido de carbono se proliferaram. Esse efeito pode ajudar a aumentar o rendimento de cultivos. Mas não é puramente benéfico. Colheitas maiores podem ser menos nutritivas.

Além disso, as mudanças climáticas alterarão os padrões de chuva. Isso não beneficiará necessariamente o aumento dos cultivos em regiões boreais. Muitas áreas cujo clima está ficando ameno o suficiente para a agricultura podem acabar sem água suficiente, pelo menos para a irrigação intensiva. Outras podem acabar com água demais. Os produtos agrícolas não são os únicos organismos cujo alcance se expande com o aumento das temperaturas: pestes e patógenos, que com frequência são eliminados por invernos frios, também se espalham. O solo também é um fator importante. Os de melhor qualidade ocorrem mais comumente em latitudes mais baixas, não no extremo norte.

Conforto frio

Algumas das novas terras agricultáveis emergem próximo a sistemas agrícolas já estabelecidos. Mas, por exemplo, transformar regiões remotas da Sibéria - onde grande parte da infraestrutura está afundando ou foi arruinada em razão do derretimento do permafrost - será um processo lento e caro. Fazendas na nova fronteira agrícola também terão de atrair e acomodar muitos trabalhadores. Os empreendimentos terão de depender cada vez mais de migrantes estrangeiros, uma ideia que desagrada eleitores em muitos países ricos.

No conjunto, a expansão boreal das terras agricultáveis não avançará muito na direção de mitigar os danos que as mudanças climáticas poderão provocar na agricultura. As sociedades que se beneficiarão disso já são ricas, em sua maioria. Países pobres, muito mais dependentes do lucro das exportações agrícolas, sofrerão.

Uma gama muito mais abrangente de adaptações será necessária para que os alimentos continuem tão abundantes, variados e acessíveis como hoje. Isso incluirá esforços para ajudar os cultivos a suportar temperaturas mais altas, por exemplo por meio de cruzamentos genéticos inteligentes e avanços em irrigação e na proteção contra mau tempo. Países ricos e pobres deveriam priorizar políticas para diminuir o desperdício de comida (a Agência da ONU para a Alimentação e a Agricultura estima que mais de um terço de todos alimentos produzidos é desperdiçado). A alternativa a isso é um mundo com mais fome e mais desigual do que no momento - e do que poderia ser no futuro. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

 

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