Especialista em crimes sexuais, Luiza Eluf defende independência financeira contra submissão feminina
A advogada Luiza Nagib Eluf, 66, não vê outra solução. “No dia que a mulher tiver dinheiro, vai transar com o homem que ela quiser”, diz a defensora de mulheres que acusam o médium João de Deus e o cardiologista Nabil Ghorayeb de crimes sexuais negados pelos dois.
Hoje ex-promotora, ela ingressou no Ministério Público em 1983, décadas antes de o Brasil ganhar as leis Maria da Penha e do Feminicídio. Especializou-se no tema, como brinca, antes de virar modinha, escrevendo livros como “Crimes contra os Costumes e Assédio Sexual” (1999).
Para Eluf, depender financeiramente de um homem é o pior que pode acontecer com a outra metade da população. “É preciso tomar cuidado para não acreditar no ‘eu a sustento, querida’. Mulher tem que ganhar bem, tem que ganhar muito. Não pode se satisfazer com o dinheiro que paga a manicure.”
Em entrevista à Folha, a advogada fala sobre o impacto do #MeToo Brasil, versão nacional do movimento que expôs assediadores mundo afora, sobre crimes envolvendo nomes célebres, como o de Roger Abdelmassih, especialista em reprodução humana condenado por ter estuprado pacientes. Seu caso, segundo ela, ajudou o Judiciário a acordar para o tema.
Temos visto chegarem às manchetes assédios cometidos por homens ricos e influentes. Por quê? Eles estão sendo mais denunciados. Antigamente, a mulher ficava muito intimidada. Se denunciava, sobrava para ela no final da história. Ela sofre o assédio, o estupro, o espancamento e aí, quando vai reportar, a autoridade culpa a vítima pelo que ela sofreu. O patriarcado é assim. Tudo errado é a mulher que faz. São seres, vamos dizer, inferiores. Em São Paulo, começamos mais nitidamente a lutar contra esse tipo de conduta no caso Roger Abdelmassih.
Por que esse foi um divisor de águas? Antes, algumas denúncias não eram consideradas situação que merecesse o acionamento da Justiça. Porque mulher era uma coisa não pensante, um ser completamente retardado mental na visão do patriarcado. Era comum uma moça fazer uma denúncia e isso se voltar contra ela, e não contra o agressor. Foi-se perdendo o ânimo de denunciar. Com o Roger, o Ministério Público resolveu pegar o caso com unhas e dentes.
Havia resistência no próprio Judiciário? Sempre aquela tendência de culpar a mulher pela agressão que sofreu. Vamos falar de outro crime que não seja sexual. Digamos que a mulher foi assaltada. Eu mesma passei por essa situação. Já era promotora e fui trabalhar numa comarca no interior de São Paulo. Naquele tempo eles gostavam de judiar da mulherada porque achavam que era uma coisa que depreciava a carreira. “Se for pondo mulher, daqui a pouco ninguém mais vai levar a sério”, diziam. Eu era obrigada a ouvir essas coisas.
Além de ser mulher, eu ainda cometi o pecado de ter dois filhos para criar. Meu filho [que ficava em São Paulo] começou a ter síndrome de abstinência da mãe. Ele tinha três anos. Tomei um ônibus e voltei com ele. A coisa já pegou mal. “Tá vendo, a gente fala que não é para ter mulher.”
Na volta, meu filho começou a correr dentro do ônibus. Um passageiro espertalhão subtraiu minha bolsa e uma frasqueira —eu tinha ido a um casamento, tinha umas joias nela. O policial falou: “E a senhora larga assim [a frasqueira] e vai atrás do filho?”. Percebi: a culpa é minha. Pratiquei um ato de distração, de idiotismo, porque estava tendo que cuidar do meu filho.
Graças a Deus sempre tive clareza de que isso é montado pelo patriarcado para destruir as mulheres. Quanto mais eles me irritavam com isso, mais eu escrevia.
Muita gente acha que o patriarcado é só um chavão feminista. Pode explicar o termo? É um sistema no qual o homem domina a mulher e faz dela o que ele quer. Não estou lendo no dicionário, estou apenas dizendo o que sinto que é esse patriarcado que a gente vive até hoje. Mas melhorou bastante.
A sra. advoga para mulheres que relataram abusos de João de Deus. Que componente a religião acrescenta na relação entre vítima e criminoso? É uma relação de dominação pelo extrassensorial. Coloca a mulher em posição ainda mais difícil. Além de o sujeito ser mais forte fisicamente, ele ainda é João de Deus. Ou seja, ele se considera Deus. Muitas das pessoas que foram a Abadiânia achavam que ele era um deus, que ele curava, que tinha poderes.
Quantas vítimas foram até a senhora? Por volta de 15 mulheres. Elas se dirigiram ao meu escritório e muitas delas contaram cenas de horror. Choraram demais. Ele abusava de moças que estavam querendo salvar a mãe, o pai. Em geral, as moças que estuprou não estavam lá em busca de socorro para si. Ele se aproveitava disso, era um homem grosseiro. Em alguns casos repetiu o estupro uma, duas, três vezes.
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