quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O livre comércio é livre mesmo?

Recentemente, circulou a informação de que as três maiores companhias aéreas dos EUA (American, United e Delta) estão protestando contra o direito das três principais companhias aéreas do Golfo Pérsico de voarem no mercado americano. As companhias americanas dizem que as empresas do Golfo (Qatar Airways, Emirates e Etihad) receberam US$ 42 bilhões em subsídios dos seus governos ao longo dos últimos anos, o que resultaria em vantagens comerciais injustas permitindo-lhes oferecer um serviço melhor a um custo menor.
A controvérsia não surpreende Reuben Abraham, CEO e pesquisador sênior do Instituto IDFC (think tank de Mumbai) e membro do Conselho do Fórum Econômico Mundial de Multinacionais Emergentes. “Não há dúvida: as companhias aéreas do Golfo, ou [por exemplo] as estatais chinesas ? todas têm algum nível de subsídio concedido pelo Estado. Contudo, não devemos nos esquecer de que há também subsídios embutidos em produtos do outro lado do mundo.”
Ele cita como exemplo o iPhone. “A maior parte da tecnologia dentro de um iPhone,  em um ou outro momento, foi subsidiada pelo governo americano […] As baterias de íon de lítio foram fruto direto de pesquisa do [Departamento de Energia]”, diz ele, citando uma série de outras invenções essenciais ? telas de cristal líquido, microdiscos rígidos, microprocessadores e click wheels [anel sensível ao toque que se usa para navegar por todos os menus do iPod e controlar seus recursos] ? que, segundo Abraham, se encaixam na categoria de produtos subsidiados pelo governo. Esse argumento foi apresentado pela economista Mariana Mazzucato em seu livro de 2013, “O Estado empreendedor” [The Entrepreneurial State].
“Agora, querem igualdade de condições para que o iPhone possa competir com os livres mercados na Índia, por exemplo”, diz Abraham. “Contudo, se eu estivesse na Índia e fosse fabricar, digamos, um smartphone, seria um pouco difícil para mim competir com alguém que tem subsídio do Estado.”
O protecionismo não desapareceu, só está encoberto
Em 2009, os líderes da reunião de cúpula do G20 em Londres ? um grupo que representa tanto os mercados desenvolvidos quanto os mercados em desenvolvimento e que responde por 85% da economia mundial ? se comprometeram a “não repetir os erros históricos do protecionismo de eras anteriores”. Mais de uma década antes, em 1995, a Organização Mundial do Comércio (OMC) era criada para promover o livre comércio e reduzir as barreiras comerciais entre as nações. Hoje a organização conta com 162 países-membros.
Contudo, parece que o protecionismo não é, de modo algum, de acordo com Abraham e com Ann Harrison, professora de administração da Wharton, e Tarun Khanna, professor na Escola de Negócios de Harvard e colega de Abraham no Conselho do Fórum Econômico Mundial sobre Multinacionais Emergentes. Eles dizem que o protecionismo, certamente não de forma tão aberta quanto há 50 ou 60 anos, ainda existe de formas sutis e variadas.
“Não é mais uma coisa bem definida”, diz Khanna. O protecionismo do passado era explícito, diz ? como, por exemplo, o pagamento de tarifas de 40%, 50% ou até mesmo 80% sobre carros importados. “Nos velhos tempos, havia tarifas na Índia e em muitos países da África.” O resultado óbvio, diz ele, era que “os fornecedores domésticos de itens como carros, por exemplo, eram integralmente protegidos, por isso continuavam a produzir carros terríveis”.
Harrison caracteriza as políticas atuais de antidumping e de direitos compensatórios como forma comum de protecionismo usada pela maior parte dos países, inclusive pelos EUA, UE, China e México, embora, disse ela, as políticas sejam, às vezes, apresentadas como forma de obrigar a prática do comércio justo. Em cenários assim, uma empresa estrangeira introduz um produto de baixo custo em um país industrializado como os EUA. Se os EUA acreditarem que a empresa recebe vantagens injustas do seu governo, haverá imposição de tarifas. “O suco de laranja brasileiro, os tomates mexicanos […] a lista prossegue”, diz Harrison, acrescentando que as tarifas podem ser bastante elevadas. “Quando a China foi acusada de praticar dumping com o alho, a tarifa imposta foi de 300%.”
Abraham cita os subsídios agrícolas como outra forma de protecionismo. “Protege-se basicamente a indústria agrícola doméstica por motivos políticos.” Khanna concorda: “Vê-se muito protecionismo desse tipo no Japão […] no Meio-Oeste dos EUA etc.”
Pode haver também “protecionismo disfarçado” sob a forma de exigências de saúde e de segurança, diz Harrison. É o caso, por exemplo, de um país que bloqueia uma importação alegando tratar-se de item perigoso para seus consumidores. O protecionismo pode até mesmo veicular uma mensagem de marketing. Harrison cita a campanha feita pelos EUA, “Buy American” [Compre produtos americanos].
Khanna identificou o predomínio do que ele chama de “pacote de negócios”, algo do tipo “sim, você pode fazer isso, mas só se fizer aquilo”, o que, segundo ele, é difícil caracterizar como protecionismo puro. Ele diz que na China, por exemplo, verificou-se a tendência nos últimos sete ou oito anos de negócios em que as empresas estrangeiras que quisessem construir no país teriam de proporcionar, em troca, transferência parcial de propriedade intelectual para os fabricantes locais. “É uma espécie de política industrial. Não é rigorosamente protecionismo no sentido de impor barreiras tarifárias […] Faz parte do poder de barganha do país.”
O protecionismo não se limita à movimentação de bens, diz Abraham. Outro aspecto, segundo ele, diz respeito à mão de obra, e aqui há um “tipo estranho de hipocrisia” no mundo desenvolvido. “De modo geral, no Ocidente, quando se fala em livre comércio, fala-se de capital e de bens de capital ? porque é aí que o Ocidente é competitivo. Contudo […] um mercado emergente é, na verdade, competitivo em relação à mão de obra.” Ele acrescenta que da perspectiva da Índia, por exemplo, “minha vantagem competitiva não é o iPhone […] é o meu técnico”.
Para Abraham, o visto ? e cotas de visto ? é uma “barreira não tarifária. É muito difícil um homem de negócios indiano conseguir um visto americano.” Ele acrescenta que se um profissional indiano quiser participar de diversos congressos na Europa, por exemplo, as políticas em vigor exigem que o participante se candidate a vários vistos de curto prazo que lhe garantem apenas uns poucos dias de estada em cada evento. “O ocidental médio não tem a menor ideia do que seja isso”, disse.
Mercados emergentes: alvos do protecionismo?
Os especialistas concordam que, de modo geral, um ambiente comercial mais livre, em vez de protecionista, é melhor para a economia mundial. Khanna diz que com o protecionismo, “você impede o livre fluxo de coisas que talvez você quisesse comprar, ou de dinheiro, que você e eu gostaríamos de investir, ou de talento que talvez tenhamos e que precisa ser canalizado para o melhor uso possível”.
Harrison diz que os mercados emergentes talvez tenham alguma justificativa para serem protecionistas, uma vez que suas economias enfrentam dificuldades para se estabelecer. Por outro lado, ela destaca que isso nem sempre funciona muito bem na prática. “Muitos países tentaram usar o protecionismo para alimentar suas indústrias domésticas ? mas, embora isso faça sentido na teoria, muitos deles fracassaram em 75% das vezes.”
Ela cita a Índia como exemplo dizendo que, no passado, houve a tentativa de usar o protecionismo para promover sua indústria nascente, mas que o país só se tornou realmente bem-sucedido e apresentou rápido crescimento depois que liberalizou sua economia em princípio dos anos 90.
Os países em desenvolvimento seriam um alvo específico de protecionismo por parte das nações desenvolvidas, conforme dizem alguns? Harrison diz que não. “Não creio que as multinacionais dos mercados emergentes estejam sendo visadas de algum modo especial. Acho que os países de origem das empresas querem apenas proteger seus mercados e promover suas indústrias, por isso não creio que façam discriminação agindo dessa maneira.”
Por exemplo, os franceses estão “realmente se esforçando para preservar sua herança cultural”, diz Harrison. Se analisarmos o comportamento da indústria de entretenimento francesa, veremos que ela “está tentando se manter o mais francesa possível”, e “não se importa de onde venham as companhias estrangeiras ? se de mercados emergentes ou dos EUA”. Ela cita um exemplo semelhante do mundo em desenvolvimento. “Atualmente, a Índia protege seu setor de varejo, e não se importa se se trata do Walmart, Carrefour ou de um varejista chinês. A Índia quer apenas preservar o pequeno comércio familiar local.
Abraham, por um lado, não descarta a possibilidade de que o racismo seja um dos elementos do protecionismo. Ele cita a aquisição bastante comentada da Arcelor, siderúrgica produtora de aço francesa, pela Mittal, empresa de origem indiana. De acordo com o New York Times, o CEO da Arcelor na ocasião, Guy Dollé, havia feito comentários em que se referia aos produtos da Mittal como “água de colônia” barata em comparação com o “perfume” produzido por sua empresa. Mas o comentário de Dollé que “deixou realmente exposto o racismo”, na opinião de Abraham e de outros, foi quando ele, ao se referir ao dinheiro da Mitall, teve a petulância de dizer que se tratava de ‘dinheiro de macaco'”.
Abraham disse ainda que a Arcelor tentou um acordo com uma siderúrgica russa, cujo dono, segundo Dollé, era um “verdadeiro europeu”.
Para Khanna, o nível de protecionismo dos países pode acompanhar as variações do clima político. Os interesses das empresas estrangeiras podem se tornar alvo da política. “Se você é político e as coisas não estão indo bem economicamente e você quer ser reeleito, um grupo fácil de demonizar são os estrangeiros. Eles não votam.” Isso acontece por toda parte, acrescentou, tanto nos mercados emergentes quanto no mundo desenvolvido.
Nesse sentido, Abraham se referiu ao filme norte-americano de 1993, “Sol nascente” [Rising Sun], que, segundo ele, mexeu com os sentimentos populares da época ao retratar de que modo os interesses das empresas japonesas foram se “apropriando dos EUA […] Tudo depende do alvo do momento, que podem ser os japoneses, ou os chineses, ou os indianos. São ciclos”.
Ao analisar as tendências atuais, Khanna diz que o protecionismo “corre o risco muito grande de recrudescer”, e se refere a ele como “uma dessas coisas insidiosas para a quais temos de estar atentos o tempo todo”. Ele cita vários possíveis fatores que contribuem para isso, inclusive o domínio crescente dos partidos de extrema direita e de centro-direita na Europa, um grande número de “localidades em crise política e econômica” no mundo e a retração geral da economia. Isso pode levar a uma situação, disse ele, em que os países “tendem a favorecer o que é local e a se preparar para tempos difíceis”.
O perigo dos blocos
Tanto Harrison quanto Abraham observam uma tendência que favorece os blocos comerciais preferenciais ou regionais, em vez do livre comércio multilateral mundial. A previsão de ambos é que essa tendência prossiga. Harrison diz que o mundo está “se deslocando claramente em direção a […] três blocos gigantescos: Américas, Europa e Ásia”. Ela observa que essa tendência beneficia países com os EUA, porém países de renda muito baixa ? aqueles que “não são grandes o bastante para ter lugar à mesa” ? costumam ser deixados de fora.

Ela acrescenta que a Parceria Transpacífico  (TPP, na sigla em inglês) é um exemplo de acordo de comércio regional e é “efetivamente uma forma de manter alguns países dentro e outros fora ? por exemplo, a China”. É um exemplo de “protecionismo que continua vivo e ativo”. Abraham concorda e diz: “Os EUA querem escrever as regras desse acordo para mais tarde convidar a China a participar dele […] Mas, e se a China, Índia e alguns outros países fizerem seu acordo preferencial próprio e deixarem os EUA de fora? À medida que a influência desses países aumenta, é possível que vejamos mais coisas desse tipo.”

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