sábado, 27 de agosto de 2016

A ERA DE FRANKENSTEIN - EDUARDO GALEANO - BIOÉTICA BURRA X BIOÉTICA INTELIGENTE

A ERA DE FRANKENSTEIN - Eduardo Galeano

TEATRO DO BEM E DO MAL 


Em seu romance Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley profetizou a fabricação em série de seres humanos. Em tubos de laboratório, os embriões se desenvolveriam conforme suas futuras funções na escala social, desde os alfas, destinados ao mando, até os ipsilones, produzidos para a servidão.
Setenta anos depois, a biogenética nos promete, como brinde do nascente milênio, uma nova raça humana. Mudando o código genético das gerações vindouras, a ciência produzirá seres inteligentes, belos, sãos e talvez imortais, de acordo com o preço que cada família possa pagar.
James Watson, prêmio Nobel, descobridor da estrutura do DNA e chefe do Projeto Genoma Humano, prega o despotismo científico. Watson não aceita nenhum limite à manipulação das células humanas reprodutivas: nenhum limite à investigação nem ao negócio. Sem papas na língua, proclama: “Devemos nos manter a margem das normas e das leis”.
Gregory Pence, que leciona Ética Médica na Universidade de Alabama, reivindica o direito dos pais de escolher o filho que terão “do mesmo modo que os canicultores fazem cruzamentos para obter o cão mais adequado a uma família”.
E o economista Lester Thurow, do Massachusetts Institute of Technology, exitoso teórico do êxito, pergunta-se quem poderia negar-se a programar um filho com maior coeficiente intelectual. “Se você não o fizer”, adverte, “seus vizinhos o farão, e seu filho será o mais estúpido do bairro”.
Se a sorte nos acompanhar, os viveiros do futuro haverão de gerar superbebês parecidos com estes gênios. O aperfeiçoamento da espécie já não requererá os fornos de gás onde a Alemanha purificou a raça, nem a cirurgia que os Estados Unidos, a Suécia e outros países aplicaram para evitar a reprodução de produtos humanos de má qualidade. O mundo fabricará pessoas geneticamente modificadas, como fabrica, atualmente, alimentos geneticamente modificados.



2001, uma odisséia no espaço: já estamos em 2001 e já comemos comida química, como havia anunciado, há mais de trinta anos, a película de Stanley Kubrick. Agora, os gigantes da indústria química nos dão de comer. Questão de siglas: depois do DDT e do PCB, que por fim foram proibidos, embora já se soubesse, há muitos anos, que davam mais mortalidade do que felicidade, chegou a vez dos GM, os alimentos geneticamente modificados. Desde os Estados Unidos, Argentina e Canadá, os GM invadem o mundo inteiro, e todos somos cobaias dessas experiências gastronômicas dos grandes laboratórios. 
Na verdade, nem sequer sabemos o que comemos. Com escassas exceções, os invólucros não nos informam se o produto contém ingredientes que sofreram manipulação de um ou vários genes. A empresa Monsanto, a principal provedora, não faz constar este dado em suas etiquetas de origem, nem sequer no caso de leite proveniente de vacas tratadas com hormônios transgênicos de crescimento. Esses hormônios artificiais favorecem o câncer de próstata e de seio, segundo várias investigações publicadas em The Lancet, Science, The International Journal of Health Services e outras revistas científicas, mas a Food and Drug Administration dos Estados Unidos autorizou a venda do leite sem menção nas etiquetas, porque ao fim e ao cabo os hormônios apressam o crescimento e aumentam o rendimento, e portanto também aumentam a rentabilidade.

O primeiro é o primeiro, e o primeiro é a saúde da economia. De qualquer modo, quando a Monsanto vê-se obrigada a confessar o que vende, como nos caso dos herbicidas, a coisa não muda muito. Há um par de anos, a empresa teve de pagar uma multa por “75 menções inexatas” nos recipientes do venenoso herbicida Roundup. Fizeram-lhe um precinho camarada. Pagou três mil dólares por cada mentira.
Alguns países se defendem, ou ao menos tentam defender-se. Na Europa, a importação de produtos da engenharia genética está proibida em alguns casos, e em outros submetida a controle. Desde 1998, por exemplo, a União Européia exige etiquetas claras para a soja geneticamente modificada, mas torna-se muito difícil levar à prática esta boa intenção. O rastro se perde nas múltiplas combinações: segundo o Greenpeace, a soja GM está presente em 60% de toda a comida processada que é oferecida nos supermercados do mundo.
Nas manifestações ecológicas, um grande peixe levanta um cartaz:Não se metem com meus genes. Ao lado, um tomate gigante exige o mesmo. Em todo o mundo, multiplicam-se as vozes de protesto. A atitude européia é um resultado da pressão da opinião pública. Quando os granjeiros franceses incendiaram os silos cheios de milho transgênico, por causa dos danos notórios que fazia ao ecossistema, o agitador camponês José Bové se converteu em herói nacional, um novo Asterix que alegou, em sua defesa:
            - Nós, os granjeiros e os consumidores, quando fomos consultados sobre isso? Nunca. 
O governo francês, que o prendera, desautorizou os cultivos do milho inventado pela biotecnologia. Algum tempo depois, a empresa norte-americana Kraft Foods devolveu milhões de tortas de milho transgênico, incomodada com as queixas dos consumidores que tinham sofrido reações alérgicas. Enquanto isso, a chanceler Madeleine Albright dizia e repetia na Europa, porque isso é obrigação prioritária da diplomacia norte-americana: “Não há nenhuma prova de que os alimentos geneticamente modificados sejam prejudiciais à saúde ou ao ambiente”.
Os europeus têm concretos motivos para desconfiar das piruetas tecnocráticas na mesa da copa. Estão ressabiados por sua recente experiência com as vacas loucas. Enquanto comiam pasto e alfafa, durante milhares de anos, as vacas se comportaram com uma Gordura exemplar e aceitaram, resignadas, seu destino. Assim foi, até que o louco sistema que nos rege decidiu obrigá-las ao canibalismo. As vacas comeram vacas, engordaram mais, deram à humanidade mais carne e mais leite, foram felicitadas por seus donos e aplaudidas pelo mercado -  e acabaram loucas. O assunto deu origem a muitas piadas, até que começou a morrer gente. Um morto, dez, vinte, cem... 
Em 1996, o ministério britânico da Agricultura havia informado à população que a ração de sangue, sebo e gelatina de origem animal era um alimento seguro para o gado e inofensivo para a saúde humana. 
Eduardo Galeano, nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1940. É autor de vários livros, traduzidos em mais  de vinte países, e de uma vasta obra jornalística.
           
Sempre cheio de verve e de compaixão, Galeano esmiúça a evolução e a história humana, mostrando por que é considerado um dos mais importantes e originais pensadores da atualidade. 

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