terça-feira, 20 de julho de 2021

A China e nossos ideais de felicidade

Dificilmente superaremos o paradoxo felicidade-riqueza em um país cujo Congresso atua primordialmente em causa própria


O jornal Le Monde publicou, no último dia 10, brilhante artigo do economista francês Thomas Piketty, no qual conseguiu, em curto espaço de linhas, apontar importantes consequências das diferenças entre os regimes político-econômicos do Ocidente e da China, a estrutura de suas finanças públicas, os impactos da arrogância ocidental dos países desenvolvidos ao (des)tratar a questão do clima e a possibilidade de sustentabilidade de suas economias.

O recado do economista é bem claro: o Ocidente que se cuide e comece a se preparar para nova forma de governo, por ele proposto como “socialismo democrático e participativo”, conforme aponta o título de seu artigo, “Frente ao regime chinês, a boa resposta passa por uma nova forma de socialismo democrático participativo” – traduzido para o português. 

No artigo do jornal francês, Piketty discorre sobre aspectos divergentes entre os países desenvolvidos ocidentais e a China, dentre os quais chamo atenção de dois: primeiro, do lado ocidental, o elevado endividamento público e a concentração dos ativos nas mãos do setor privado, ante uma China, de outro, detentora de 10% do setor imobiliário e de 50% das empresas do país, sendo capaz de impulsionar investimentos essenciais em educação, saúde, meio ambiente e desenvolvimento.

O economista reforça que os países ricos tornaram-se Estados pobres e dependem do setor privado para se financiarem. O segundo aspecto é sobre a responsabilidade pelo desequilíbrio ambiental. As enchentes nos verões de 2002 e 2021, na Europa, já vêm mostrando que a conta está chegando e que não cairá no colo da China. 

É bom lembrar que os dados da atividade econômica chinesa, no segundo trimestre de 2021, indicam desaceleração do ritmo de sua expansão. Fica a dúvida se a desaceleração cabe mais à demanda interna ou externa. Hoje a China é o grande termômetro do mundo, e nesta pandemia tem funcionado como indicador antecedente para a maioria das grandes economias. Resta aguardarmos mais um pouco para entendermos se o consumo internacional também não tem dado sinais de retomada como esperado. Os países ricos têm se endividado ainda mais para manter a recuperação da atividade econômica, muito embora o resultado recente da China ponha em xeque o êxito de tal ação.

Há 50 anos que o mundo deu início às tratativas formais para discutir os impactos da atividade econômica sobre o meio ambiente, com seleto grupo de economistas reunidos no vilarejo de Founix, em junho de 1971. De lá que surgiram os preparativos para o evento de Estocolmo, em 1972, marcado como o grande primeiro encontro sobre o tema. O segundo grande evento coube à Organização das Nações Unidas (ONU) e se deu na cidade do Rio de Janeiro – a famosa Rio-92. De lá em diante, pode-se afirmar que o passo mais expressivo da ONU foi a criação da Agenda 2030, pactuada apenas 23 anos depois - em 2015. 

No entanto, os mais recentes encontros do World Economic Forum e do G-20 têm ganhado mais envergadura, muito embora, pelo andar da carruagem, ainda seja notório o descompasso entre discurso e ações em relação ao meio ambiente. Na semana passada, decisão robusta tomada praticamente ao mesmo tempo pelos Estados Unidos e pela União Europeia chamou atenção do mundo: a definição de que serão criados tributos sobre importação de produtos oriundos de países que não adotem políticas agressivas contra emissões de carbono. 

Mas nem tudo distingue os países ocidentais ricos da China. Entre os modelos neoliberais ocidentais e o capitalismo autoritário e opressor da China reside um denominador comum: o paradoxo entre felicidade e renda. Em todos esses, as pesquisas que “medem” a sensação de felicidade indicam que ela não caminha com a emancipação da renda. Segundo o economista Richard Easterlin, em entrevista concedida ao Jornal Valor Econômico no último dia 10 – coincidentemente o mesmo dia em que foi publicado o artigo do Piketty -, é possível medir a felicidade e os governos deveriam se preocupar em fazê-lo. 

Estudioso do paradoxo entre felicidade e renda desde 1974, Easterlin argumenta que os países ricos promoveram, durante muitos anos, aumento na renda de seus cidadãos não acompanhado pela sensação de maior felicidade. Esse antagonismo se faz presente quando avaliado por períodos longos de tempo. Na mesma linha, China e India, países que tiveram grandes ganhos de renda per capita durante as últimas três décadas, também não conseguiram gerar aumentos de felicidade em suas populações. 


Curiosidades bem interessantes das evidências dos estudos de Easterlin são, por exemplo, que:
- homens e mulheres só são igualmente felizes nos Estados Unidos, mas em outros 73 países onde se fez o mesmo estudo, as mulheres eram mais felizes que os homens e, em ambos casos, o tempo de durabilidade da felicidade das mulheres era superior ao dos homens;
- casamento traz felicidade e separação, o contrário, mas o importante não é necessariamente o casar, mas sim ter um(a) companheiro(a); e
- catástrofes e tragédias têm impacto por tempo muito mais duradouro que eventos festivos pontuais como Copa do Mundo – no último, geralmente, a sensação de alegria dura apenas 4 dias, enquanto no primeiro é revivido por muitos anos.

Nesse sentido, a proposta de Piketty de caminhar na promoção de novo modelo econômico (socialismo democrático e participativo) capaz de promover o compartilhamento do saber e de buscar caminhos mais equânimes de distribuição de riqueza pode soar como possível quebra do paradoxo entre riqueza e felicidade. Semana retrasada o G-20 deu primeiro passo nesse sentido, com a definição da nova tributação sobre as multinacionais, restando saber se os paraísos fiscais não vão continuar limitando a felicidade para poucos detentores do capital.

Por aqui, ainda seguimos achando que o modelo neoliberal e as privatizações a qualquer preço são o único caminho para se tirar das mãos do Estado (ineficiente) a condução da construção da sociedade. Dificilmente superaremos o paradoxo felicidade-riqueza em um país cujo Congresso Nacional aprova orçamento em que se autoconcede aumento de R$2 bilhões para R$5,7 bilhões de recursos destinados aos fundos partidários para as eleições de 2022, além de não prever nem ganhos reais para a camada mais baixa da sociedade – vide a correção do salário-mínimo - nem recursos para investimento. 

Veja como votaram os parlamentares mineiros no projeto do fundo partidário

Se o mundo ocidental mais próspero economicamente ainda segue lento em seus desenhos de modelo de política e sociedade capazes de permitir que felicidade e riqueza caminhem na mesma direção, o que dizer de um país cujo Congresso Nacional ainda atua primordialmente em causa própria(?!). Nessas horas, o contingente de 90 milhões de integrantes do Partido Comunista Chinês voltado para construir uma nação cada vez mais forte economicamente, com planejamento de longo prazo que visa romper desafios históricos de sustentabilidade e desigualdade de educação e renda, faz inveja em qualquer país.

 

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