Cartilha liberal admirada por Paulo Guedes rendeu altas taxas de crescimento ao país e garantiu estabilidade, mas gerou concentração de riqueza
Em recente reunião com autoridades do Mercosul, o ministro da Economia, Paulo Guedes, reiterou sua defesa do modelo econômico chileno como exemplo a seguir na região. Poucos dias depois, a eleição no fim de semana passado dos integrantes da Assembleia Constituinte, encarregada de enterrar definitivamente a Carta Magna herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), confirmou que o modelo admirado por Guedes se esgotou. O baixo desempenho dos partidos tradicionais de direita e centro-esquerda e e eleição de 48 constituintes independentes, de um total de 155, são consequências do que Rossana Castiglioni, decana da Faculdade de Ciências Sociais e História da Universidade Diego Portales, chama de “tempestade perfeita”.
Muitos elementos explicam essa tempestade e o basta dado por amplos setores da sociedade chilena a um modelo que rendeu altas taxas de crescimento (sobretudo na década de 1990), reduziu a pobreza de 68% para 8,6% entre 1990 e 2020, garantiu estabilidade macroeconômica e política a todos os governos pós-redemocratização, mas é excludente e desigual.
De acordo com estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) intitulado “Desiguais”, 33% da renda gerada por uma economia essencialmente primária e exportadora de commodities ficam em mãos de 1% dos chilenos mais ricos. A macroeconomia chilena elogiada por Guedes está sob controle, mas abaixo dela milhões de pessoas até agora ignoradas pelo poder político e econômico — de direita, centro e esquerda — vivem endividadas e insatisfeitas. Essas camadas da sociedade são, nas palavras de Castiglioni, como um vulcão que entrou lentamente em erupção.
— Hoje, 43% da população chilena pertencem a uma classe média baixa, que ganha apenas entre uma e meia e três vezes mais do que os que vivem abaixo da linha da pobreza. Isso num país que tem um PIB per capita de US$ 22 mil, muito acima da média regional. São milhões de chilenos que se cansaram de ouvir falar de um milagre econômico que favoreceu apenas as elites — explica a especialista.
Castiglioni estuda há vários anos a realidade desses subsetores de uma classe média vulnerável, na qual basta uma doença grave para colocar uma família abaixo da linha da pobreza.
— O Chile é o terceiro país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) onde as pessoas mais gastam em despesas médicas não cobertas pelos planos públicos e particulares. Isso explica, em parte, por que 66% das famílias estão endividadas e 33% são inadimplentes — amplia Rossana.
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O suposto milagre chileno não significou acesso igualitário a saúde, educação, habitação e qualidade de vida. Mais do que cidadãos, afirma Sergio Toro, professor da Universidade de Concepción, o modelo deixado pela ditadura formou consumidores. E hoje esses consumidores estão asfixiados por dívidas que não podem pagar e frustrados por terem ficado de fora de um projeto político e econômico pensado para poucos.
Expectativas crescentes
Um dos pensadores que mais têm sido mencionados por acadêmicos chilenos nos últimos anos é o americano Daniel Lerner, que em seus estudos sobre modernização descreve o que chama de revolução das expectativas crescentes. O Chile é um claro exemplo desse tipo de revolução social, promovida por setores médios precários, cansados de não serem representados nem protegidos pelos que estão no poder.
Dados de recente pesquisa do Centro de Estudos Públicos (CEP) de Santiago mostraram que hoje o índice de confiança no Congresso nacional é de apenas 8% e nos partidos políticos 2%.
— A institucionalidade chilena nunca esteve preparada para crises. A única válvula de escape são as ruas — afirma David Altman, professor da Universidade Católica.
Ele acredita que as revoltas dos últimos anos não são do povo contra a oligarquia, e sim de muitos povos contra muitas elites. A conformação da Assembleia Constituinte, ampla, “é um espelho mais nítido da sociedade chilena. O espelho de um país fragmentado”.
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Qual será o novo modelo chileno é uma pergunta que especialistas locais não se atrevem a responder. O que acontecerá com um país hoje aberto ao mundo e exportador de matérias primas, que, como explica Daniel Titelman, economista da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), não conseguiu ter uma economia diversificada e sustentável, base para uma sociedade menos desigual.
— O país apostou em reformas de mercado, por exemplo, em matéria de previdência e saúde. A grande lição é que não se pode privatizar a proteção social, temos de buscar um modelo de desenvolvimento socialmente inclusivo — enfatiza o economista.
A economia pujante que beneficiou poucos perdeu sua sustentabilidade política. A onda de manifestações sociais de 2019 foi o golpe final, após várias revoltas sociais prévias, muitas lideradas por movimentos estudantis. Essas sucessivas reações sociais, afirma Juan Pablo Luna, professor da Universidade Católica, foram minando as instituições que protegiam o modelo e deslegitimando suas regras básicas.
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— Do modelo neoliberal que viveu seu auge na década de 1990 só deverá restar a autonomia do Banco Central. A ideia de que o Estado só entra em campo quando o mercado falha está desaparecendo. Crescemos, sim, mas distribuímos muito mal — frisou Luna.
É preciso mudar, aponta Toro, a forma com que se olha a pobreza. O professor da Universidade de Concepción inclui na lista de erros cometidos pelos sucessivos governos democráticos pós-ditadura a violência exercida contra setores populares.
Um dos exemplos mais claros desta violência, comenta o especialista, foi o escândalo envolvendo o Serviço Nacional de Menores (Sename), acusado em 2018 de gravíssimos abusos contra crianças carentes — incluindo agressões sexuais — que estavam sob tutela do Estado.
O relatório do Pnud sobre a desigualdade chilena mostra em detalhe o que significa nascer no Chile e não pertencer a uma família beneficiada pelo modelo hoje em processo de desconstrução. Ao analisar a situação social de oito milhões de adultos nascidos entre 1940 e 1970, a pesquisa constatou que pessoas com sobrenomes nobres da sociedade chilena, como Etcheverry ou Irarrazábal, seguiram carreiras bem-sucedidas. Em contraste, foram analisados 50 sobrenomes, entre eles Huenchu, Neculpan, Huaiquipane e Cumian, muitos de origem indígena, e não se encontrou nem sequer um “profissional de prestígio”.
— Na classe média baixa precarizada, temos um enorme número de mulheres chefes de família, todas com menos de 9 anos de educação. Era uma revolta anunciada — concluiu Castiglioni.
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