Kelli Kadanus - Brasília [01/05/2019]
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Carro com cigarros contrabandeados do Paraguai capotou após perseguição policial em uma estrada rural no Oeste do Paraná. Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
Que vender produtos piratas e fruto do contrabando é crime, todo mundo no Brasil sabe. Mas o que poucas pessoas percebem é que, ao comprar produtos contrabandeados – aqueles que geralmente são mais baratos –, ajudam a financiar facções criminosas, contribuem para a piora da segurança pública no país e podem, ainda, financiar o terrorismo.
Em todo o país é possível encontrar produtos trazidos de forma ilegal do Paraguai, por exemplo, para venda no Brasil. As mercadorias variam, de roupas a cosméticos, de cigarros a brinquedos. Como esses produtos não são importados legalmente, acabam livres de impostos, o que os torna mais baratos e mais atrativos para o consumidor final, que muitas vezes não percebe o tamanho do problema que isso gera para a segurança pública. Nesse cenário, o contrabando de cigarros é uma das “estrelas” entre os produtos vendidos ilegalmente no país.
“O cigarro contrabandeado já corresponde a mais de 50% do comércio [no Brasil]. As duas principais marcas são piratas”, confirma o secretário Nacional do Consumidor, Luciano Timm, que atua no Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Segundo a Polícia Federal, o contrabando de cigarros tem sido adotado como negócio por facções criminosas que atuam no Brasil, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho, gerando uma margem de lucro superior à do tráfico de drogas para esses grupos. Estudos internacionais mostram, ainda, que esse tipo de contrabando pode ajudar a financiar organizações terroristas que atuam na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.
“Posso dizer que hoje o meio que permite maior lucro às facções criminosas é o contrabando de cigarros. Mais do que drogas”, afirma o delegado da Polícia Federal Luciano Flores de Lima, atual superintendente da PF no Paraná. “ Isso leva também ao aumento da corrupção de agentes públicos, que são mais suscetíveis a ceder a facilitação do contrabando de cigarros dos que ao tráfico de drogas, por exemplo”, afirma.
Para a população, também é mais fácil conviver com cigarros contrabandeados do que com as drogas, já que as consequências do contrabando não são vistas de forma tão direta quanto as do tráfico. Mas, segundo Lima, o contrabando também aumenta o cenário de violência no Brasil. “Por trás de cada caminhão de cigarro contrabandeado há um crime de corrupção, há um ato de estar colaborando com o fortalecimento de facções criminosas que atuam também praticando crimes violentos, como latrocínios”, resume o delegado.
“A maioria dos caminhões e veículos em geral apreendidos no contrabando de cigarro são decorrentes de crimes de roubo. O proprietário desse veículo provavelmente morreu em virtude de um assalto ou teve um prejuízo com aquele veículo furtado que está hoje servindo para o transporte de cigarros contrabandeados”, acrescenta Lima.
Timm ressalta que ao comprar produtos do contrabando, o consumir acaba alimentando uma cadeia complexa de crimes – que podem ser violentos, muitas vezes. “Hoje a atividade criminosa envolve a prática de uma série de atos, não tem só o assaltante de banco. Muitas vezes o sujeito assalta um banco para financiar outra prática de um crime. Ele não rouba um carro só por roubar um carro, ele rouba um carro para fazer um assalto a banco. Assaltando o banco, ele tem um recurso para importar ou produzir no exterior e distribuir [produtos contrabandeados] aqui”, diz o secretário Nacional do Consumidor.
“Quando compramos um produto contrabandeado, nós estamos investindo no crime, estamos financiando o crime”, ressalta Edson Vismona, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP).
Segundo Vismona, mais da metade do mercado brasileiro de cigarros é dominado por marcas ilegais. “Se você pegar o consumo de cigarro no Brasil, está estável. Mas se você pegar na margem dos produtos mais baratos, o crescimento do ilegal é brutal, eles lideram 54% do mercado brasileiro”, diz.
Ainda de acordo com Vismona, o comércio ilícito brasileiro gera um prejuízo de US$ 50 bilhões por ano, entre perdas dos setores e evasão fiscal – o imposto que deixa de ser arrecadado no Brasil. Só o contrabando de cigarros corresponde a US$ 3 bilhões em prejuízo por ano para o país.
Os líderes do mercado ilegal de cigarros são as marcas Eight e Gift, segundo Vismona. Esses cigarros são produzidos no Paraguai especialmente para o mercado brasileiro e não são vendidos no país vizinho. O mercado de cigarros ilegais é tão lucrativo que gera até situações bizarras. “Tem uma situação muito irônica. Marcas fabricadas no Brasil, por empresas que não têm nem autorização da Anvisa, estão falsificando o Eight e o Gift. Ou seja, há uma concorrência entre criminosos”, conta Vismona.
Um relatório produzido no ano passado pela consultora Vanessa Neumann sobre o contrabando na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai chegou a conclusões parecidas sobre os impactos do contrabando. “O comércio ilegal de produtos de tabaco na área da Tríplice Fronteira é o ponto de entrada sutil para um iceberg criminoso muito maior, abaixo da linha de água e que tem sério impacto na governança política, segurança dos cidadãos e desenvolvimento econômico na região, com ramificações profundas no resto do mundo”, diz um trecho do relatório.
Lavagem de dinheiro
Além de ser uma atividade lucrativa, o contrabando de produtos também é uma atividade meio para lavagem de dinheiro de organizações criminosas, que praticam outros tipos de crimes, como tráfico de drogas. “As organizações criminosas que atuam no ramo do tráfico de drogas ou armas também podem atuar utilizando o produto do crime desses outros crimes para aumentar os lucros com contrabando de cigarro”, explica Lima. Ou seja, as organizações criminosas usam o lucro do tráfico de drogas na compra de produtos que podem ser contrabandeados – gerando um lucro ainda maior.
Segundo o membro da Fundação para Defesa das Democracias (FDD), Emanuele Ottolenghi, o comércio é uma das maneiras encontradas por organizações criminosas – e terroristas – para movimentar valores e lavar dinheiro – ou seja, tornar o dinheiro que é produto do crime, lícito de novo.
“Se você precisa pagar R$ 40 mil pelo produto que está comprando, mas seu vendedor diz que é R$ 100 mil na declaração, a diferença de R$ 60 mil é dinheiro sujo. Uma vez que o dinheiro passa pelo pagamento, está limpo”, explica Ottolenghi.
Dinheiro pode alimentar organizações terroristas
O lucro da venda de produtos, principalmente cigarros contrabandeados, pode, inclusive, acabar financiando grupos terroristas que atuam na tríplice fronteira. “O que os estudiosos mostram, que [facções criminosas e organizações terroristas] já estão trabalhando juntos na logística e na distribuição de produtos ilegais. Ou seja, se paga uma comissão para organizações terroristas, que facilitam pelo conhecimento logístico, levar produtos e trazer produtos do Oriente Médio e da Europa”, diz Vismona.
“Há essa relação que se estabeleceu mostrando essa utilização da logística que essas organizações terroristas têm em benefício das organizações criminosas”, completa o presidente da ETCO.
Segundo o relatório produzido por Neumann, estima-se que a tríplice fronteira gere US$ 35 bilhões por ano – valor que está aumentando. Parte desse dinheiro é ilícito e acaba nas mãos de organizações como o Hezbollah, grupo islâmico xiita. O relatório também aponta para a atuação de outros grupos terroristas na região de fronteira, como Hamas, Jihad Islâmica e Al Qaeda.
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Segundo Neumann, ainda, na década de 1990, os cigarros ilegais também geravam fundos para a Al Qaeda, organização responsável pelos ataques ao World Trade Center, nos Estados Unidos, no dia 11 de setembro de 2001. Para Lima, não é possível fazer uma afirmação categórica de que organizações terroristas atuem no contrabando na tríplice fronteira. “É difícil fazer essa afirmação. Eu diria que é possível, mas não posso afirmar que isso de fato está acontecendo”, diz o delegado.
A própria Polícia Federal, porém, já apontou para uma ligação entre o PCC e o Hezbollah na região em 2014. Documentos da PF mostram que traficantes libaneses ligados ao Hezbollah ajudaram o PCC a conseguir armamentos em troca de proteção a presos libaneses detidos em presídios brasileiros, dando ao grupo acesso a canais internacionais de contrabando de armas.
Em setembro do ano passado, a PF prendeu comerciante Assad Ahmad Barakat, apontado como operador financeiro do Hezbollah na tríplice fronteira e considerado um dos maiores nomes terrroristas da América do Sul pelos Estados Unidos.
Combate ao contrabando é difícil
Para Ottolenghi, o combate ao contrabando em regiões de fronteira é difícil, principalmente, por duas razões. “Primeiro, a impunidade. Para manter o sistema funcionando, as organizações criminosas e terroristas subornam pessoas. Eles subornam os juízes e procuradores locais, os policiais locais, os políticos locais, eles financiam campanhas políticas”, diz o membro da FDD.
Além disso, segundo Ottolenghi, é difícil produzir provas deste tipo de crime. “Você precisa de mais recursos, de policiais honestos, o que significa que você tem que, no mínimo, pagar um salário mais alto, e você precisa de melhores sistemas de monitoramento, melhor inteligência. Esse é o desafio aqui”, ressalta.
Além disso, para Lima, o combate ao contrabando passa pela conscientização do consumidor final desse tipo de produto. “A gente precisa mostrar para a sociedade que está na hora de cortar o contrabando de cigarros, senão o fortalecimento das organizações que hoje lucram muito com esse tipo de crime vai levar ao aumento de outros crimes, inclusive violentos”, destaca.
“Nós, consumidores, compramos o mais barato, não importa por quê. Mas e se você soubesse que esse dinheiro está financiando organizações criminosas?”, indaga Vismona. “Às vezes as pessoas já sabem disso, mas continuam comprando o mais barato e acho isso incoerente. Eu critico a criminalidade e a corrupção, com razão, e ao mesmo tempo financio a criminalidade, financio a corrupção, porque eu estou dando dinheiro para organizações criminosas”, ressalta.
Para o secretário Nacional do Consumidor, há ainda um componente econômico, que torna a conscientização da sociedade mais difícil nesta questão. “São duas coisas que acabam facilitando esse tipo de comércio ilegal”, diz Timm. “Tem esse componente que pode ser comportamental, sociológico. Mas tem outro que também é de renda. Em um país que passou por uma crise econômica muito grande, um país de renda média [como o Brasil]. Quando você é um país de renda média, os consumidores têm menos dinheiro e são mais sensíveis a redução de preços”, explica.
Combate passa por discussão sobre tributos
No caso dos cigarros, Lima ressalta que a redução do contrabando passa também por uma discussão sobre o imposto cobrado pelo produto nacional. “Antigamente era muito comum as apreensões de descaminho de produtos eletrônicos. Depois, houve uma mudança na política tributária fazendo com que produtos fabricados ou comercializados no Brasil tivessem preços reduzidos e, consequentemente, o consumo aumentasse dos produtos brasileiros”, exemplifica o delegado. “Isso fez com que o descaminho de produtos eletrônicos diminuísse e aumentasse ainda mais o contrabando de cigarros, porque a mesma política não foi aplicada ao contrabando de cigarros”, completa.
No mês passado, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, criou um grupo de trabalho para “avaliar a conveniência e oportunidade de redução da tributação de cigarros fabricados no Brasil”. A medida foi elogiada por Vismona. “A proposta que queremos defender nesse grupo é de manter a carga tributária, mas diminuir o imposto entre marcas, para que a gente possa ter um tributo maior para as marcas mais caras – porque a pessoa que compra uma marca mais cara não vai comprar um produto ilegal –, mas oferecer produtos legais a um preço mais compatível com o contrabando. Ou seja, diminuir a carga tributária das marcas mais populares e aumentar das marcas mais caras. Com isso, ampliar a arrecadação”, defende o presidente da ETCO.
O objetivo do grupo criado por Moro, segundo consta no Diário Oficial da União (DOU), é “diminuir o consumo de cigarros estrangeiros de baixa qualidade, o contrabando e os riscos à saúde dele recorrentes”. Atualmente, o preço mínimo para venda de cigarros no Brasil é de R$ 5. O cigarro contrabandeado, porém, chega ao consumidor final por até R$ 1,50, segundo Vismona.
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Entidades antitabagistas criticaram a possibilidade de redução dos impostos sobre cigarros no Brasil, alegando que, com isso, o consumo vai aumentar. Entidades ligadas à saúde também mostraram preocupação com a possibilidade de redução dos impostos.
“Eu não estou falando do tabagismo, eu estou falando do contrabando, que tem impacto no tabagismo. Os mais pobres podem consumir produto contrabandeado? Os mais pobres podem consumir produto que não tem nenhuma regulamentação da Anvisa? Então eu vou fechar os olhos para isso e deixar que os mais pobres continuem comprando produto a R$1,50”, questona Vismona.
Para Lima, a discussão sobre tributação de cigarros é necessária para o combate ao contrabando. “A gente tem que parar de pensar que basta colocar polícia, porque isso não vai acontecer, nós não temos polícia suficiente para combater o contrabando de cigarros. É necessário que a política econômica seja ajustada para que haja um desestímulo ao contrabando de cigarros”, defende.
O delegado aponta, ainda, outro benefício na discussão tributária: ao diminuir o contrabando, que é a maior fonte de lucro das facções criminosas, essas organizações acabam sendo enfraquecidas. “A gente enfraquece a lucratividade delas e consegue combater com maior eficiência o tráfico de drogas. Porque não é qualquer quadrilha que consegue vender drogas em qualquer esquina como hoje acontece com cigarro”, ressalta o delegado.
Para Timm, a discussão é importante e deve ser levada a sério. “Discussão sempre é salutar em uma democracia. O Brasil tem compromissos internacionais com o antitabagismo que o Paraguai e outros países não têm. Os economistas podem contribuir muito. Tem alguns modelos que sugerem esse modelo de tentar combater o tabagismo com carga tributária, chega uma hora que bate no teto e as pessoas vão querer consumir e vão ser sensíveis a preço. Mas a equação aí é complexa justamente por essas obrigações internacionais que o Brasil tem e não está no radar neste momento qualquer alteração em relação a isso”, garante o secretário. "
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