O Brasil é o quinto país do mundo onde mais se assassinam mulheres. Na maioria das vezes, o crime é cometido por um conhecido, vizinho ou familiar. O feminicídio, dizem especialistas, é previsível - e há como evitá-lo.
Dos 179 feminicídios ocorridos em janeiro de 2019, 71% tiveram como agressor o atual ou o ex-companheiro da vítima; em 9% o assassino era um conhecido, vizinho ou familiar. Somente em 2% dos casos o agressor era desconhecido da vítima. O levantamento feito pelo pesquisador da USP Jefferson Nascimento demonstra que a principal característica do crime de feminicídio no Brasil é ser cometido por alguém do círculo social da vítima.
Outro padrão é o local onde ele ocorre: oito em cada dez mulheres foram assassinadas dentro da própria casa no estado de São Paulo em 2019, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública. O feminicídio, dizem especialistas, é previsível – e por isso pode ser evitado.
"Em geral, o feminicídio é premeditado pelo agressor, que persegue a vítima em locais íntimos, como a casa ou o trabalho, e mostra-se interessado em conversar, mas o que deseja, na realidade, é matar a mulher", explica a professora do Programa de Mestrado em Segurança Pública e da graduação em Direito da Universidade de Vila Velha, Espírito Santo, Carmen Hein de Campos.
Apesar disso, o crime é frequente: uma mulher é morta de maneira violenta a cada duas horas no país, segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a taxa de assassinatos de 4,8 para cada 100 mil mulheres faz do Brasil o quinto país no mundo em ocorrência de feminicídio.
O feminicídio é um homicídio qualificado, tipificado pelo Código Penal brasileiro desde 2015, quando a Lei 13.104, conhecida como Lei do Feminicídio, foi promulgada pela então presidente Dilma Rousseff. É um crime considerado hediondo, com pena prevista de entre 12 a 30 anos de prisão.
Denúncia e proteção
A defensora pública do estado de São Paulo Nalida Coelho Monte, coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM), destaca o Ligue 180 como uma política pública bem-sucedida no combate à violência de gênero por "prestar atendimento capacitado e dar orientações às vítimas de forma segura e anônima".
O Ligue 180 é uma central de atendimento telefônico gratuito do governo federal que registra a denúncia da vítima e concede informações sobre seus direitos, fornecendo endereço e telefone da delegacia da mulher mais próxima. A vítima pode ligar para o 180 a qualquer hora e dia da semana.
Somente nos dois primeiros meses de 2019, o Ligue 180 recebeu 17.836 ligações, número cerca de 36% maior do que no mesmo período do ano passado, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Durante todo 2018, a central recebeu 92.323 denúncias, contra 73.669 casos registrados em 2017.
No âmbito jurídico, Monte destaca as medidas protetivas de urgência. "As medidas protetivas têm por objetivo central a proteção da mulher em situação de violência doméstica e familiar em caso de risco iminente de sua integridade física e/ou psicológica. Voltadas a providências de urgência, podem evitar que o pior aconteça", afirma.
Uma pesquisa da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal divulgada no começo do ano mostrou que 72,1% das vítimas de feminicídio assassinadas no DF entre março de 2015 a março de 2019 não tinham medidas protetivas contra seus agressores.
A juíza Teresa Cristina Cabral Santana, integrante da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo (COMESP), explica que medidas protetivas de urgência são importantes porque deixam de tratar como natural a violência sofrida pela mulher.
"A concessão das medidas protetivas de urgência torna clara a falta de naturalidade da conduta violenta do agressor”, explica Santana, afirmando que quando não se faz nada diante da violência de gênero, o agressor se sente encorajado a agir contra a mulher.
Porém, a juíza defende que somente as medidas protetivas isoladamente não bastam para prevenir o feminicidio: "Há casos em que a severidade da violência é tão intensa que há a necessidade de outros instrumentos de contenção do agressor".
Desde 2016, circula projeto na Câmara que prevê aumento do tempo da pena de prisão de um terço se o crime de feminicídio for praticado em descumprimento de medida protetiva de urgência. O projeto já foi aprovado pelos deputados em novembro de 2018 e, desde então, aguarda sansão presidencial para entrar em vigor.
A Patrulha Maria da Penha
A professora Campos defende que Estado e sociedade criem uma rede de assistência, acolhimento e fiscalização a favor da vida da vítima de violência de gênero.
"No âmbito civil, destaco o projeto Promotoras Legais Populares, que fortalece as mulheres e cria uma rede de apoio e solidariedade, acolhendo vítimas de violência, ajudando-as a denunciar e a retirá-las da comunidade onde sofreram a violência", afirma Campos.
O Promotoras Legais Populares (PLP) é um programa de formação sem fins lucrativos criado em 1993 pela ONG Thêmis, no Rio Grande do Sul, que capacita mulheres a atuarem nas suas próprias comunidades contra a violência sexual, reprodutiva e doméstica.
Após frequentarem cursos ministrados por especialistas voluntários de diversas áreas do conhecimento, as PLP vão até vítimas de violência e as orientam com informações jurídicas, assim como se disponibilizam a acompanhá-las nas delegacias de polícia, no Instituto Médico Legal ou nos organismos de assistência jurídica ou de assistência social. O projeto já existe em 12 estados brasileiros.
Em fase de implementação nos municípios desde 2017, o Projeto Patrulha Maria da Penha permite que mulheres com medidas protetivas de urgência acionem policiais 24 horas por dia em qualquer lugar que se sintam ameaçadas pelo agressor.
Responsabilização dos homens
O sociólogo Sérgio Barbosa, coordenador de grupos reflexivos para Homens Autores de Violência Contra a Mulher, destaca que não há como falar em prevenção de feminicídio sem olhar para o próprio agressor.
"Em 2006, eu estava conduzindo uma dinâmica num grupo de homens autores na cidade de São Caetano do Sul (SP) e um homem tirou da bolsa um revólver e falou: ‘vocês fizeram com que eu desistisse de matar a minha ex-esposa'. Esta fala foi extremamente importante para que pudéssemos entender que era este o caminho", conta Barbosa.
Atualmente, Barbosa coordena o Projeto Tempo de Despertar, curso de reflexão para homens que estão em processo de julgamento dentro da Lei Maria da Penha, desenvolvido em cidades paulistas junto com o Ministério Público de São Paulo. "O objetivo é que esses homens não cometam mais nenhum crime de gênero contra qualquer mulher", conta.
Iniciado em Taboão da Serra, o Projeto Tempo de Despertar reduziu de 65% para 2% a reincidência dos agressores em violência doméstica na cidade entre 2014 e 2016.
"Salvar a vida de mulheres é necessariamente falar com homens, envolver homens na temática, debater, refletir, provocar mudanças nos agressores", defende o sociólogo.
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