Ricardo Araújo Pereira
Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.
O líder desaprova quem prefere cães e gatos, mas coabita com o Espírito Santo que, ao que tudo indica, é uma pomba
Acho que é no livro "Requiem por um Camponês Espanhol" que Ramón J. Sender escreve que os padres são as únicas pessoas a quem todos chamam pai —menos os filhos, que lhes chamam tio. É uma observação interessante, mas é preciso reconhecer que a maioria dos padres, de fato, não tem filhos. Mesmo apesar de chamarem filho a todo o mundo.
Por isso, quando li que o papa Francisco tinha criticado as pessoas que não querem ter filhos e os substituem por cães e gatos, não pude deixar de me sobressaltar. As pessoas que optaram por um modelo de vida que não inclui filhos estavam a ser criticadas por uma pessoa que optou por um modelo de vida que não inclui filhos. É uma coisa que não se vê todos os dias.
Se alguém censurar os apreciadores de feijoada enquanto come uma feijoada, em princípio a gente ri. Mas aos padres, ao que parece, tudo se perdoa.
Nas cerimônias de casamento, eles costumam tecer longos elogios às vantagens do matrimônio. Evidentemente, porque nunca foram casados. Se experimentassem, durante um período que não precisava ser superior a 15 dias, creio que as homilias seriam ligeiramente diferentes.
Se eu, que nunca fui à guerra, explicar a quem acabou de ser notificado para ir para o Afeganistão que está prestes a embarcar numa experiência maravilhosa, serei corrido à pedrada. Aos padres, ninguém incomoda.
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Já em 2015, o papa tinha lamentado que certas pessoas considerassem as crianças uma fonte de preocupação. "Certas pessoas", Francisco? Essas pessoas têm um nome. Chamam-se "pais". Claro que as crianças são fonte de preocupação. Se não forem, não estamos a fazer o nosso trabalho direito.
Neste caso concreto, é ainda mais grave. O papa vai ao ponto de lamentar que as pessoas, além de não terem filhos, os substituam por cães e gatos.
Não sei se estão a ver onde quero chegar. Estamos a falar de um homem que coabita com o Espírito Santo —que, ao que tudo indica, é uma pomba. A desfaçatez, meu Deus.
Além disso, e sem querer ser má-língua, parece-me que há aqui um
problema de, digamos, decoro. Talvez não seja a melhor ideia que o líder
de uma organização que tem tido tantos problemas com casos de pedofilia
venha a público pedir às pessoas que produzam mais crianças.
Convenhamos que não soa muito bem.
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