Em muitos municípios situação de servidores é precária, dizem especialistas
As remunerações do setor público possuem grande disparidade, mesmo entre pessoas com mesmo nível de escolaridade. Algumas dessas diferenças estão ligadas a fatores como sexo, nível de governo, Poder e tipo de carreira, segundo estudos elaborados por especialistas na área.
Se for considerada apenas a renda do trabalho no mercado formal, a desigualdade na esfera pública tem aumentado e supera a verificada no setor privado.
A desigualdade no setor público só perde para o privado quando se coloca na conta a informalidade e outros tipos de renda.
Atualmente, diversas carreiras protestam contra a decisão do governo federal de dar reajuste somente a policiais, que já tiveram ganhos salariais nos últimos anos.
Um trabalho de referência sobre o serviço público é o Atlas do Estado Brasileiro, elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Entre os dados está a separação dos rendimentos por decis, que dividem o total de remunerações em dez classes com o mesmo número de vínculos de trabalho.
Em praticamente todas as faixas os salários são mais elevados no nível federal, seguido por estados e, depois, municípios. Também são maiores no Judiciário do que no Legislativo, que por sua vez superam os do Executivo.
Em relação à desigualdade, o retrato é outro. A razão entre o primeiro e último decil indica que as maiores diferenças estão nas remunerações nos Legislativos estaduais e federal. Depois, no Executivo federal. No Judiciário, por outro lado, a desigualdade é menor, pois mesmo os salários da base são elevados.
O nono decil do Legislativo estadual, por exemplo, tem remuneração 18 vezes superior ao primeiro decil. No Legislativo federal, são 16 vezes. No Executivo federal, 14 vezes. Nos municípios, considerando Legislativo e Executivo, a diferença é de 5 vezes.
O Atlas do Ipea também permite ver salários mais altos para um mesmo nível de escolaridade entre homens do que entre mulheres, praticamente em todos os Poderes e esferas de governo, como destacado pelo pesquisador Félix Lopez, um dos responsáveis pela publicação.
Essas diferenças são confirmadas por trabalhos que utilizam outras métricas, como índice de Gini, Curva de Lorenz e prêmio salarial.
De acordo com estudo do CLP (Centro de Liderança Pública), a desigualdade entre as remunerações no setor público supera a verificada nos rendimentos do trabalho formal do setor privado em todas as regiões do Brasil, considerando dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais) de 2018, para civis e militares.
O índice de Gini (uma forma de medir a desigualdade) fica em torno de 0,50 em todas as regiões do país no setor público. No privado, é de cerca de 0,40 no Sudeste e aproximadamente 0,35 nos demais estados. Quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade na renda do trabalho formal.
Daniel Duque, gerente da inteligência técnica do CLP, diz que o Gini é pouco afetado pelos raros trabalhadores de altíssima renda do setor privado que recebem esses valores no contrato com carteira assinada. Além disso, a exclusão dos informais torna a desigualdade menor.
Ele afirma que outros estudos mostram que, até os anos 1990, o setor público puxava a desigualdade de renda para baixo. Reajustes concedidos a categorias já com altos salários na primeira década dos anos 2000, nas esferas federal e estadual, mudaram essa tendência.
"Isso fez com que o setor público estivesse puxando a desigualdade para cima. Principalmente por conta de categorias que já estavam em uma posição privilegiada em termos salariais", afirma Duque.
"O único que ficou mais estável em termos de desigualdade e contraste com o setor privado foi o nível municipal, onde estão muitos servidores que atuam na ponta, como professores e médicos de unidade básica."
Servidores protestam por reajuste em frente à sede do Banco Central
De acordo com José Teles Mendes, pesquisador do Departamento de Sociologia da USP que contribui para o projeto junto ao Ipea, mesmo o Gini mais alto do setor público, que é o estadual, é razoavelmente inferior ao do total dos rendimentos da população brasileira.
Outro estudo da instituição ("Heterogeneidade do diferencial salarial público-privado", de 2020) faz a comparação do prêmio salarial entre os setores público e privado, no período 2012-2018, e também dentro do funcionalismo.
Entre servidores com ensino superior, por exemplo, o prêmio em relação ao setor privado é de 103% no nível federal, 55% no estadual e 16% no municipal. Para o ensino fundamental, os números ficam próximos (101%, 49% e 17%). Para o ensino médio, a diferença é um pouco menor, mas ainda relevante, de 101%, 64% e 23%. Ou seja, os prêmios estão mais relacionados ao nível de governo do que à escolaridade.
O estudo também mostra que o prêmio cresceu significativamente desde 2012 para pessoas com ensino superior e médio, mas ficou estável no nível fundamental.
Entre os profissionais de nível médio, os maiores prêmios salariais se concentram nas carreiras jurídicas, nos agentes da administração tributária, nos inspetores de polícia, detetives e policiais. Por outro lado, é bastante reduzido entre profissionais de nível médio da saúde.
No nível superior, o prêmio é de 86% para profissionais do Direito, 37% nas ciências e engenharia e 21% para ciências sociais e culturais. Médicos têm prêmio de 30%, enquanto a remuneração dos demais profissionais de saúde está abaixo da vista no setor privado. A vantagem é de 46% para professores de ensino médio, 34% para universitários e 18% para os outros profissionais do ensino.
"Existe um prêmio salarial por ser homem, um prêmio por estar no Judiciário, um prêmio por estar no nível federal", afirma José Teles Mendes, responsável por diversas análises dos dados do Atlas do Estado.
"Quando você controla essa questão da escolaridade, ainda encontra diferenças que não são explicadas por questões meritocráticas."
O economista José Celso Cardoso Jr., presidente da associação dos funcionários do Ipea e responsável por estudos sobre remunerações no setor público, afirma que há uma disparidade muito grande entre rendimentos de algumas carreiras na esfera federal e nos pequenos municípios do Norte e Nordeste, o que ajuda a explicar a desigualdade apontada nesses trabalhos.
Ele cita ainda distorções como remunerações acima do teto constitucional e a acumulação de salários, por exemplo, por militares de altas patentes que recebem por funções em cargos civis.
Segundo Cardoso, houve aumento da escolaridade no nível municipal nas últimas décadas, mas isso não se refletiu proporcionalmente nos salários, que continuam pautados por questões político-institucionais, capacidade fiscal e política de gestão de pessoas.
"A disparidade no nível municipal é gigante. Não é [escolaridade]", afirma. "A maioria dos municípios não tem carreira estruturada. Há muita precariedade nas relações de trabalho. A pessoa acha que é uma ilha de privilegiados, mas a heterogeneidade e a desigualdade é que são as regras ainda hoje no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário