O hábito da leitura forma cidadãos mais críticos e conscientes e isso precisa começar na infância
Claudia Calais*
O mês de outubro guarda uma daquelas coincidências carregadas de simbolismo. O Dia das Crianças e a data nacional dedicada à celebração da Leitura. A sobreposição dessas duas comemorações parece querer enfatizar a importância da alfabetização e do contato com a literatura para uma infância plena.
Estudiosos são unânimes em apontar as vantagens da leitura para o desenvolvimento das habilidades cognitivas das crianças. Pelas letras, os pequenos melhoram sua capacidade de se comunicar, fortalecem o raciocínio lógico e ampliam o vocabulário. A literatura, afinal, é um excelente veículo para que as crianças assimilem, de forma mais espontânea e cativante, sem grandes imposições, a gramática da norma padrão do idioma. Sem contar, é claro, que ela é o primeiro passo para o desenvolvimento da escrita, da habilidade de expressar com clareza nossos pensamentos e sentimentos.
A leitura estimula ainda a criatividade e apura o senso crítico, duas habilidades que, para além de tornarem nossa experiência do mundo mais rica, são cada vez mais valorizadas pelo mercado de trabalho. A capacidade de se posicionar e de encontrar soluções inovadoras para problemas complexos é justamente o que as empresas mais buscam. Dito de outro modo, o contato com as letras é imprescindível para formar profissionais à altura dos desafios que este século nos reserva.
Assista ao Papo de Mãe sobre literatura infantil com Ruth Rocha
Ler também é entretenimento. Individualmente, reduz a ansiedade e o estresse – em tempos de pandemia e isolamento social, a companhia diária dos livros fez enorme diferença para a saúde mental de tantos. Coletivamente, a leitura ajuda a fortalecer laços familiares e a desenvolver o afeto. Crianças que leem ou que ouvem estórias lidas por seus pais aprendem mais rápido a sentir compaixão, carinho, medo, tristeza e alegria – desenvolvem, no contato com personagens fictícios, o repertório emocional que as acompanhará por toda a vida adulta.
A leitura, portanto, ajuda a construir empatia e, consequentemente, prepara as crianças para o pleno exercício da cidadania. Alfabetizar não significa apenas introduzir o indivíduo ao mundo letrado – imprescindível, como sabemos, para o acesso a tantos outros direitos. A leitura, especialmente quando estimulada desde a infância, ajuda a construir os valores caros a uma sociedade livre, democrática e tolerante.
Livros também podem ser uma ferramenta de promoção da diversidade. Por muito tempo, a literatura infantil em circulação no Brasil falhou em refletir a riqueza étnica e cultural de nossa população. Eram raras, por exemplo, as histórias protagonizadas por personagens negras ou indígenas, narradas a partir do ponto de vista dessas populações.
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Felizmente, esse cenário vem se transformando, e o mercado editorial infantil conta hoje com vozes bem mais diversas. A mudança contribui para a formação de uma sociedade mais igualitária e empática, como assinalamos, mas, muito especialmente, traz benefícios para a autoestima de crianças oriundas de grupos socialmente minoritários.
A infância, particularmente o período que vai até os seis anos, é decisivo para a conformação das identidades. É nessa fase que a criança tem contato com referenciais éticos e estéticos que, em alguma medida, irão moldar sua personalidade. É imprescindível, portanto, que essas meninas e meninos encontrem nas páginas dos livros, das revistas, dos materiais didáticos ou das histórias em quadrinhos personagens que se pareçam com eles e que reflitam suas vivências e experiências culturais. Uma literatura infantil plural tem o poder revelar para as crianças a riqueza de suas próprias raízes étnicas e culturais.
Essa é a constatação que inspira a edição deste ano do Programa Semear Leitores, da Fundação Bunge. No aniversário de dez anos do programa, selecionamos como tema a Presença Negra na Literatura Infantojuvenil, privilegiando títulos que revelam uma contribuição cultural que vai muito além do passado de escravidão e resistência. São obras que revelam mitos e contos fantásticos, cenários, sabores, cheiros, sons e afetos que caracterizam a presença negra na formação social e cultural de nosso país.
A temática deste ano consolida uma tendência de valorização da diversidade na literatura infantil. Os temas escolhidos para as duas últimas edições foram, respectivamente, a literatura indígena e o multiculturalismo.
O Programa Semear Leitores conta hoje com mais de 30 espaços de leitura espalhados por nove estados, além de um time de dezenas de mediadores que viabilizam a descoberta da leitura para milhares de crianças e jovens.
O Brasil ainda tem muito a melhorar. Somos um país que lê pouco, e nossa enorme desigualdade social torna o acesso à leitura ainda mais restrito para amplos setores da população. Para garantir que as novas gerações leiam mais e, com isso, exercitem plenamente sua cidadania, é preciso transformar a união entre criança e leitura, já implícita em nosso calendário de outubro, em realidade prática.
*Claudia Calais é Diretora-Executiva da Fundação Bunge.
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