sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Ao contrário do que quer Bolsonaro, segurança pública não pode ser delegada à sociedade

Uso das armas de fogo deve ser muito restrito e bem controlado. Não existe isso de fazer justiça com as próprias mãos

Elena Landau*, O Estado de S.Paulo

15 de outubro de 2021 | 04h00

Adoro um filme de faroeste. Nos bangue-bangues, o monopólio da força na mão do Estado aparece como avanço civilizatório. Nas telas, cidadãos de lugares sem lei, perdidos no meio do fogo cruzado entre bandidos e milícias, respiram aliviados com a chegada de um xerife. Gary Cooper, em High Noon, é a imagem mais forte desse desejo de ordem.

O crescimento da violência no País aumentou a demanda por armamento. Ilusório pensar que essa é uma solução. Segurança é obrigação do Estado. Não pode ser delegada à sociedade, como quer Bolsonaro. Seria a própria negação de uma política de segurança pública.

Para ele, armar a população virou uma obsessão. Deixou bem explícita sua intenção na famosa reunião de 22 de abril: montar uma milícia civil para apoiar atos de desobediência civil. Sua defesa política e financeira às corporações policiais e militares não vem por acaso.

O presidente não perde a oportunidade de postar fotos com crianças com armas de brinquedo, inclusive, réplicas de fuzis. A arminha com os dedos virou marca do seu governo, tendo sido utilizada até pelo ministro das Relações Exteriores contra os manifestantes em Nova York.

Bolsonaro arma mão
A arminha com os dedos virou marca do governo Bolsonaro e já foi usada até em fotos com crianças. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Há quem tente revestir essa postura belicista em um debate sobre liberdade: o direito individual à vida. Mas não há nada filosófico ou moral por trás disso. É pura incitação à violência. É também um biombo para o comércio ilícito e porte ilegal. O que é vendido legalmente é uma pequena parte do que circula nas mãos de milícias, garimpeiros, madeireiros e crime organizado.

No Código Penal, já está prevista a legítima defesa como excludente de ilicitude, exatamente para garantir o direito de reação ao perigo iminente. Mas há condicionantes. A reação deve ser proporcional à agressão sofrida. Não é qualquer ameaça que pode ser respondida à bala, como querem muitos.

Uma interpretação livre da Segunda Emenda à Constituição americana também é comumente usada para defender o acesso ilimitado a armas de fogo como um direito natural. Tiram do contexto em que foi criada – uma economia rural e a ausência de um poder centralizado para exercer o monopólio da força. O nosso Estatuto do Desarmamento já prevê regras diferenciadas para as zonas rurais, onde residências isoladas não têm a mesma possibilidade de proteção estatal do que nas cidades.

A Suprema Corte americana enfrentou o tema em 2008 e, com placar muito apertado, decidiu pelo direito do indivíduo à autodefesa. No mesmo julgamento, o falecido Antonin Scalia, um dos juízes mais conservadores da Corte, ressaltou que não se trata de direito ilimitado, tendo o governo o direito, e dever, de regular o uso de armas.

É disso que trata o julgamento do decreto de armas no STF. O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o entendimento de Rosa Weber e Edson Fachin, ambos contrários à flexibilização no acesso a armas de fogo e munições. Moraes questiona também a constitucionalidade do uso de decretos para legislar sobre controle de material bélico.

Pelo governo, a Advocacia-Geral da União (AGU) argumenta que se trata de simples desburocratização do processo de aquisição de artefatos. Os decretos vão muito além disso. Enfraquecem a fiscalização e a possibilidade de rastreamento, ao mesmo tempo que aumentam significativamente o acesso a armas de todos os portes, como fuzis e pistolas de grosso calibre. Até mesmo o controle pelo Exército foi afastado.

Os números explodiram. Em 2020, foram quase 180 mil novos registros. As estatísticas estão disponíveis para quem quiser ver. O número de homicídios por arma de fogo subiu também.

A derrota de Bolsonaro parecia inevitável quando o ministro Nunes Marques pediu vistas. Assim, os decretos continuam em vigor, até que se conclua o julgamento.

Armas de fogo têm uma função: tirar a vida de alguém. Seu uso deve ser muito restrito e bem controlado. Está com o STF a responsabilidade de evitar o retrocesso à barbárie. Não existe isso de fazer justiça com as próprias mãos.

  • O veto de Bolsonaro ao projeto de pobreza menstrual foi um tiro no pé. Ainda bem. Nunca se falou tanto de absorventes. É educação, saúde e dignidade. Coisa rara neste governo.
*ECONOMISTA E ADVOGADA

 

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