Uso das armas de fogo deve ser muito restrito e bem controlado. Não existe isso de fazer justiça com as próprias mãos
15 de outubro de 2021 | 04h00
Adoro um filme de faroeste. Nos bangue-bangues, o monopólio da força na mão do Estado aparece como avanço civilizatório. Nas telas, cidadãos de lugares sem lei, perdidos no meio do fogo cruzado entre bandidos e milícias, respiram aliviados com a chegada de um xerife. Gary Cooper, em High Noon, é a imagem mais forte desse desejo de ordem.
O crescimento da violência no País aumentou a demanda por armamento. Ilusório pensar que essa é uma solução. Segurança é obrigação do Estado. Não pode ser delegada à sociedade, como quer Bolsonaro. Seria a própria negação de uma política de segurança pública.
Para ele, armar a população virou uma obsessão. Deixou bem explícita sua intenção na famosa reunião de 22 de abril: montar uma milícia civil para apoiar atos de desobediência civil. Sua defesa política e financeira às corporações policiais e militares não vem por acaso.
O presidente não perde a oportunidade de postar fotos com crianças com armas de brinquedo, inclusive, réplicas de fuzis. A arminha com os dedos virou marca do seu governo, tendo sido utilizada até pelo ministro das Relações Exteriores contra os manifestantes em Nova York.
Há quem tente revestir essa postura belicista em um debate sobre liberdade: o direito individual à vida. Mas não há nada filosófico ou moral por trás disso. É pura incitação à violência. É também um biombo para o comércio ilícito e porte ilegal. O que é vendido legalmente é uma pequena parte do que circula nas mãos de milícias, garimpeiros, madeireiros e crime organizado.
No Código Penal, já está prevista a legítima defesa como excludente de ilicitude, exatamente para garantir o direito de reação ao perigo iminente. Mas há condicionantes. A reação deve ser proporcional à agressão sofrida. Não é qualquer ameaça que pode ser respondida à bala, como querem muitos.
Uma interpretação livre da Segunda Emenda à Constituição americana também é comumente usada para defender o acesso ilimitado a armas de fogo como um direito natural. Tiram do contexto em que foi criada – uma economia rural e a ausência de um poder centralizado para exercer o monopólio da força. O nosso Estatuto do Desarmamento já prevê regras diferenciadas para as zonas rurais, onde residências isoladas não têm a mesma possibilidade de proteção estatal do que nas cidades.
A Suprema Corte americana enfrentou o tema em 2008 e, com placar muito apertado, decidiu pelo direito do indivíduo à autodefesa. No mesmo julgamento, o falecido Antonin Scalia, um dos juízes mais conservadores da Corte, ressaltou que não se trata de direito ilimitado, tendo o governo o direito, e dever, de regular o uso de armas.
É disso que trata o julgamento do decreto de armas no STF. O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o entendimento de Rosa Weber e Edson Fachin, ambos contrários à flexibilização no acesso a armas de fogo e munições. Moraes questiona também a constitucionalidade do uso de decretos para legislar sobre controle de material bélico.
Pelo governo, a Advocacia-Geral da União (AGU) argumenta que se trata de simples desburocratização do processo de aquisição de artefatos. Os decretos vão muito além disso. Enfraquecem a fiscalização e a possibilidade de rastreamento, ao mesmo tempo que aumentam significativamente o acesso a armas de todos os portes, como fuzis e pistolas de grosso calibre. Até mesmo o controle pelo Exército foi afastado.
Os números explodiram. Em 2020, foram quase 180 mil novos registros. As estatísticas estão disponíveis para quem quiser ver. O número de homicídios por arma de fogo subiu também.
A derrota de Bolsonaro parecia inevitável quando o ministro Nunes Marques pediu vistas. Assim, os decretos continuam em vigor, até que se conclua o julgamento.
Armas de fogo têm uma função: tirar a vida de alguém. Seu uso deve ser muito restrito e bem controlado. Está com o STF a responsabilidade de evitar o retrocesso à barbárie. Não existe isso de fazer justiça com as próprias mãos.
- O veto de Bolsonaro ao projeto de pobreza menstrual foi um tiro no pé. Ainda bem. Nunca se falou tanto de absorventes. É educação, saúde e dignidade. Coisa rara neste governo.
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