Quatro décadas após o primeiro caso no país, acesso universal e gratuito a medicamentos é diferencial do programa de HIV/aids brasileiro. Mas retrocesso na conscientização e alta de casos entre jovens preocupam.
Acredita-se que o primeiro caso de aids no Brasil tenha ocorrido em São Paulo há exatos 40 anos, em 1980 – mas o diagnóstico da doença só foi confirmado dois anos mais tarde.
Quando o HIV surgiu, pessoas portadoras do vírus eram fortemente estigmatizadas. Conforme uma linha do tempo organizada pela Fundação Oswaldo Cruz para mostrar a evolução da questão no Brasil, em 1982 a aids chegou a ser chamada de "doença dos 5H", em alusão a homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos — usuários de heroína injetável — e hookers — profissionais do sexo. Jornais da época chamavam a doença de "peste gay" e de "câncer gay'.
De lá para cá, muita coisa mudou: a aids deixou de ser um mal desconhecido, os tratamentos avançaram e, de incurável e letal, passou a ser tratada como uma doença crônica, que demanda tratamento ao longo de toda a vida.
No entanto, embora hoje haja um protocolo avançado de tratamento que permite que pessoas diagnosticadas com o vírus HIV levem uma vida normal no Brasil, o descuido tem levado a um aumento no número de casos.
De acordo o relatório publicado em julho pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), houve um aumento de 21% dos casos de HIV na América Latina de 2010 para cá. E o Brasil tem peso grande nessa cifra. Calcula-se que 920 mil pessoas vivam com HIV no Brasil atualmente – e que 135 mil pessoas ainda não saibam que têm o vírus. De acordo com o último boletim divulgado pelo Ministério da Saúde sobre o assunto, em 2019, o número de casos novos é de quase 40 mil por ano. Foram 37.161 novos diagnosticados em 2018, por exemplo, o balanço mais recente da pasta.
Reconhecimento internacional
O Programa Nacional de DST e Aids foi criado pelo Ministério da Saúde em 1986. Ao longo das últimas décadas, o Brasil passou a ser visto como exemplo internacional no combate à aids. Em 2003, a Fundação Bill & Melinda Gates reconheceu a qualidade e a importância do trabalho, dando ao programa um prêmio de 1 milhão de dólares.
Em 1991, quando o Brasil contabilizava 11.805 casos notificados, o Ministério da Saúde deu início à distribuição gratuita de antirretrovirais. Em 1994, graças a um acordo com o Banco Mundial, as ações de controle e prevenção à aids no país aumentaram. Dois anos mais tarde, uma lei foi aprovada garantindo distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do vírus.
"Desde o início da epidemia, há 40 anos, o Brasil agiu de forma muito efetiva e adotou desde muito cedo políticas públicas sobre HIV. Fomos um dos primeiros países a ter tratamento e plano estratégico para a resposta ao HIV, por isso temos muita experiência em relação a isso", diz à DW Brasil Claudia Velasquez, diretora e representante do Unaids Brasil.
Segundo Velasquez, um esforço coletivo de diversos setores, governo, ONGs e comunidades, vem garantindo o acesso ao tratamento. "Os medicamentos estão disponíveis, temos uma mandala de prevenção combinada com diferentes métodos, mas o que faz o combate ao HIV ser efetivo e evitar a progressão para a Aids é esse trabalho conjunto para garantir que todas as pessoas tenham acesso a tratamento."
Além da existência de uma legislação específica para proteger pessoas que vivem com HIV e aids e garantir seus direitos no Brasil, Velasquez destaca o papel do Sistema Único de Saúde (SUS).
"O SUS disponibiliza preservativos, testagem, exame de carga viral e medicamentos antirretrovirais à população de forma gratuita", prossegue. "Desde 2018, o SUS também disponibiliza a profilaxia pré-exposição (PrEP), o que é um avanço em relação à prevenção do HIV. Na América Latina, o Brasil é o único país que distribui PrEP de forma gratuita."
Alta entre jovens
No entanto, de acordo com especialistas, depois de todos os avanços ocorridos sobretudo nos anos 1990, com novos tratamentos – e a política de acesso universal e gratuita a eles – e campanhas de conscientização, vê-se um aumento na incidência dos casos sobretudo entre jovens de 14 a 39 anos.
"Isso se dá pela banalização da doença frente ao tratamento bem sucedido, pela facilidade em se ter novos parceiros graças à tecnologia, pela falta de conhecimento sobre a doença e sua gravidade, falta de campanhas que estimulem o uso de preservativos e também para a prevenção de outras infecções sexualmente transmissíveis que facilitem a infecção pelo HIV", considera Gisele Cristina Gosuen, infectologista responsável pelo ambulatório de HIV da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Para o sociólogo Alexandre Grangeiro, pesquisador de saúde pública na Universidade de São Paulo (USP), uma "sinergia de questões" explica a alta das infecções entre jovens.
"Os jovens, ao longo da epidemia, têm sido os mais afetados dadas as suas próprias características — maior número de parceiros, menos experiência para lidar com saúde e prevenção, etc.", aponta.
"Porém, as novas gerações trazem um aspecto novo: parte dos jovens tem promovido uma importante 'revolução sexual', que a aids havia interrompido nos anos 1980 e 1990. Esse movimento tem sido marcado por reafirmação de uma multiplicidade de gêneros, novos arranjos afetivos e intensificado as experiências sexuais. Isso tem levado a um aumento do número de relações e de parcerias, ampliando redes sexuais que facilitam a circulação do HIV."
Segundo o sociólogo, tal cenário tem feito com que as "gerações nascidas após os anos de 1990 apresentem taxas de HIV maiores do que as gerações que as antecederam".
"Um novo valor sexual não seria um problema em si, se junto com ele estivessem associadas práticas preventivas", pondera "O problema é que a resposta brasileira ao HIV nos últimos anos tem experimentado um forte estreitamento, com importantes setores da sociedade tendo deixado de atuar, parte por uma desmobilização, e, especialmente, por uma onda conservadora e reacionária a novos padrões", considera.
Falta de campanhas
A falta de campanhas constantes de prevenção à aids é apontada pelos especialistas ouvidos pela DW Brasil como um problema da gestão atual do Ministério da Saúde.
"Há uma proibição institucional, não dita, de desenvolver ações que abordam as principais causas de infecção e morte por HIV. Isso ocorre como reflexo de uma política conservadora, que se distancia dos valores básicos do direito", analisa Grangeiro.
"A questão do HIV e da aids no Brasil foi abandonada [pelo governo federal]. Para você ter uma ideia, a gente não tem nenhum boletim e nenhuma informação a respeito de 2020", comenta à DW Brasil o médico infectologista Jamal Suleiman, que trabalha com o assunto no Instituto de Infectologia Emílio Ribas.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde limitou-se a enviar o relatório de 2019. E informou que a pasta deve "lançar campanha de combate à aids, em alusão ao Dezembro Vermelho" — mês do Dia Mundial de Combate à Aids, celebrado nesta terça-feira (1º /12). "Ainda não há data definida", pontuou, em e-mail enviado pela assessoria.
Gosuen acredita que a falta de campanhas constantes, "e não só em datas específicas como Carnaval e Dia Mundial de Luta contra a aids" é um obstáculo para a eficácia do programa brasileiro. Ela também defende ações específicas para populações mais vulneráveis, "como pessoas em situação de rua, profissionais do sexo, travestis e transexuais e idosos que não têm a cultura do uso do preservativo".
Grangeiro aponta que escolas reduziram seus programas de educação sexual e de prevenção ao HIV. "Com isso, tem diminuído paulatinamente o número de jovens que relatam ter tido acesso a programas de educação sexual, à prevenção do HIV e aos métodos de prevenção."
Também para Gosuen, a conscientização nas escolas é fundamental. "É preciso alertar, desde muito cedo, sobre a importância de se prevenir as infecções sexualmente transmissíveis, uma vez que a vida sexual tem se iniciado cada vez mais cedo", considera.
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