O poder que Bolsonaro almeja é aquele exercido sem que tenha de prestar conta às instituições democráticas, como o ditador Hugo Chávez
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
22 de abril de 2020 | 03h00
Em
meio ao repúdio unânime das instituições à sua participação num comício
de caráter golpista em Brasília no domingo passado, o presidente Jair
Bolsonaro defendeu-se dizendo que “falta um pouco de inteligência para
aqueles que me acusam de ser ditatorial”. Segundo Bolsonaro, “o pessoal
geralmente conspira para chegar ao poder”, mas “eu já estou no poder, eu
já sou presidente”. E concluiu: “Então eu estou conspirando contra
quem, meu Deus do céu?”.
De fato, Bolsonaro já está no poder,
conferido a ele pelos eleitores no pleito de 2018. A questão é que esse
poder Bolsonaro não quer, não só porque, no fundo, sabe que não tem a
menor ideia de como exercê-lo, tamanho é seu despreparo, mas
principalmente porque é um poder regulado pela Constituição e limitado
pelos freios e contrapesos institucionais. Um presidente “pode muito,
mas não pode tudo”, como disse o ministro do Supremo Tribunal Federal
Celso de Mello, ao criticar a convocação, feita por Bolsonaro, de
protestos contra o Congresso, em fevereiro. Ou seja, já naquela ocasião,
o presidente deixava explícito que não pretendia se submeter aos
controles constitucionais, pois, em sua visão, sua Presidência é “o povo
no poder”, como bradou aos seus seguidores no domingo passado.
Depreende-se que Bolsonaro almeja presidir um regime plebiscitário, em
que a voz do que ele chama de “povo” se impõe como a lei, tendo o
presidente como zeloso intérprete, submetendo todos os demais Poderes a
seu tacão.
Nesse regime dos sonhos bolsonaristas, nem o tal
“povo” nem o presidente da República são responsáveis pelos problemas do
País; estes são sempre fruto das tramoias dos demais Poderes, que se
recusam a satisfazer a vontade do “povo” e são vistos como inimigos que
tramam para usurpar o poder conferido ao presidente nas urnas. Não à
toa, Bolsonaro vive a invocar a possibilidade de sofrer impeachment,
quase como se estivesse a desejá-lo, para servir como “prova” da tal
conspiração.
O poder
que Bolsonaro almeja, portanto, é aquele exercido sem que tenha de
prestar conta às demais instituições democráticas - que permanecem em
funcionamento, mas sem condições objetivas de cumprirem suas funções.
Nem é preciso ir muito longe no tempo para encontrar exemplos desse tipo
de regime - a Venezuela do ditador Hugo Chávez é o caso mais bem
acabado de uma autocracia construída sem a necessidade de um golpe
formal. Não deve ser mero acaso que em 1999 o então deputado Bolsonaro
tenha rasgado elogios ao caudilho venezuelano, dizendo que Chávez, “uma
esperança para a América Latina”, faria “o que os militares fizeram no
Brasil em 1964, com muito mais força”.
Como ensinou Chávez, a
construção do poder discricionário demanda uma democracia de fachada,
com eleições regulares e Parlamento em funcionamento, enquanto as
estruturas democráticas vão sendo carcomidas. A imprensa livre é
sufocada e a oposição é constrangida pela máquina de destruição de
reputações. Já o Judiciário é tomado por governistas, transformando-se
em pesadelo dos dissidentes do regime. Assim, estão dadas as condições
para que a Constituição se torne letra morta.
É evidente que tal
empreendimento deve ser contido já em seus primórdios. O Congresso faz
sua parte quando impede Bolsonaro de aprovar medidas inconstitucionais e
quando investiga a militância virtual bolsonarista que atua febrilmente
para constranger os opositores do presidente.
Do mesmo modo, é
alentador observar que o Supremo Tribunal Federal também está vigilante.
Agora mesmo, por meio do ministro Alexandre de Moraes, atendeu ao
pedido da Procuradoria-Geral da República e mandou abrir inquérito para
saber quem organizou o ato antidemocrático do qual o presidente
Bolsonaro participou animadamente no fim de semana. O ministro teve que
lembrar que a Constituição “não permite o financiamento e a propagação
de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado democrático, nem
tampouco a realização de manifestações visando o rompimento do Estado
de Direito”. Essa investigação deve ir até o fim, dando nome e sobrenome
aos liberticidas - seja qual for o cargo que ocupem ou o poder que
tenham - e estes devem ser punidos de acordo com a lei.
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