terça-feira, 14 de abril de 2020

Como será a economia após o coronavírus?

Crise causada pela Covid-19 prevê novas regras nas relações comerciais, nos hábitos de consumo e no peso do Estado frente ao mercado

Linha de produção de luvas de vinil descartáveis em uma fábrica na China.
Linha de produção de luvas de vinil descartáveis em uma fábrica na China.WAN SC / Barcroft Media via Getty Images
O ser humano e os povos estão atravessados por cicatrizes e memória. Ambos constroem o que serão e o que foram. A hiperinflação da República de Weimar ainda pesa nas políticas alemãs e sua austeridade; a Grande Depressão deixou nos norte-americanos um sentimento de “não desperdiçar” (waste not, want not); e a crise de 2008 e seu legado de precariedade e iniquidade ainda empobrecem a vida de milhões de pessoas em muitas democracias ocidentais. Mas todo desastre é diferente. O crash de 1929 e a Segunda Guerra Mundial definiram as bases do moderno Estado de bem-estar, e a epidemia de gripe de 1918 ajudou a criar os sistemas nacionais de saúde em muitos países europeus.
Por isso, cada choque econômico deixa uma herança de recordações e feridas. Também de mudanças. É impossível pensar que essa inimaginável experiência de máscaras, distanciamento social, perdas humanas e cancelamento da vida não trará consequências após o final da pandemia. É cedo para saber exatamente quais. Quanto mais tempo durar a crise, maior será o dano econômico e social. Os analistas podem demorar anos e até décadas para explicar todas as implicações do que se vive nesses dias. O paradoxal, ou não, é que esse vírus explora as características da vida que nós mesmos nos demos. Superpopulação, turismo maciço, cidades imensas, viagens aéreas constantes, redes de fornecimento a milhares de quilômetros e uma extrema desigualdade na divisão da riqueza e nos sistemas de saúde públicos.
Tudo isso deixou exposta a fragilidade do homem. Essa foi a autêntica placa de Petri da Covid-19. O que virá quando passar? “A epidemia traz uma mentalidade de tempos de guerra, mas uma mentalidade que une todo o planeta do mesmo lado. Os anos de guerra são períodos de uma grande coesão interior dos países e da preocupação pelos outros”, diz Robert J. Shiller, prêmio Nobel de Economia em 2013. E acrescenta. “Um efeito a longo prazo dessa experiência pode ser instituições econômicas e políticas mais redistributivas: dos ricos aos pobres, e com maior preocupação pelos marginalizados sociais e idosos”.

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É uma esperança. Evidentemente, a crise atual não é tão catastrófica como uma guerra mundial e a devastação que nossos avós vivenciaram na Guerra Civil espanhola, mas seus efeitos econômicos serão enormes. Não tem precedentes em tempos de paz. O acontecimento mais parecido com o qual podemos compará-la, o crash financeiro de 2008, gestou uma mudança intensa na economia do planeta. Fomos de um crescimento relativamente alto e uma inflação moderada a outro anêmico e com deflação. Mas o mundo nunca mais voltou a ser igual ao que havia sido antes desse ano. “O coronavírus provocará uma recessão muito superior à de 2008-2009, já que a dívida atual da Grécia é de 175,2% de seu PIB, e em níveis igualmente altos, que se aproximam de 100% do PIB, estão a Itália, França e a Espanha”, alerta o economista Guillermo de la Dehesa.
Evidentemente, causará dor durante muito tempo. “Provavelmente a maioria das economias demorará de dois a três anos para voltar aos níveis de produção que tinha antes da epidemia”, diz a consultoria IHS Markit. Ainda que existam outros números mais importantes. O epidemiologista da Universidade de Harvard, Marc Lipsitch, disse ao The Wall Street Journal que prevê o contágio de 40% a 70% da população adulta em um ano.
A verdade econômica se rege sob suas próprias leis da atração. Mudanças chegam. As grandes empresas terão que repensar onde e como produzem. Muitas moléculas são fabricadas na China, refinadas na Índia e, após uma longa viagem, terminam nas farmácias e hospitais europeus. “Quando a crise passar ocorrerá uma reindustrialização da Europa e dos Estados Unidos, pelos problemas nas redes de abastecimento que muitas empresas estão sofrendo nesses momentos”, prevê César Sánchez-Grande, diretor de análise e estratégia da Ahorro Corporación Financiera.
As empresas perceberam o perigo que significa somar dependência e distância. Mas é certo que as redes de produção nacionais também se paralisam no caso de uma pandemia. Dá no mesmo. Através do planeta circula uma corrente de desconexão. “Até mesmo antes da crise muitas multinacionais com sede nos Estados Unidos já estavam reconsiderando sua dependência da China. Primeiro pelos custos, mas além disso pela guerra comercial e os impostos”, diz Karen Harris, diretora geral da consultoria Bain & Company´s. Não é que a globalização se reverterá. “É uma realidade que não volta atrás”, afirma José María Carulla, diretor do serviço de estudos da consultoria de riscos Marsh. Mas terá fraturas. O capitalismo também? Porque sua essência é o movimento constante de pessoas e mercadorias. As bases, certamente, de toda a pandemia. E como responderá uma geração, especialmente jovem, cuja única vivência do capitalismo é uma crise? Sairá às ruas?
Ainda é cedo para saber. Os paralelos e os meridianos do mundo, entretanto, aparentemente formarão uma trama mais fina e menos resistente. A conjunção do Brexit, a epidemia e a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos pressagiam anos complicados à aldeia global. “O bem-estar mundial será muito maior se os países optarem pela cooperação, a ajuda e a solidariedade em momentos de crise, e por compartilhar informação e avanços científicos em vez de fazê-lo pela autarquia e o confronto”, diz Rafael Doménech, responsável de análises econômicas do BBVA Research.

Eleições nos EUA

Uma das grandes mudanças pode chegar em novembro na Casa Branca. As crises não reelegem os presidentes. Ford perdeu contra Carter após a crise do petróleo de 1973, Carter perdeu contra Reagan na segunda crise do petróleo de 1979 e Bush perdeu contra Clinton após a invasão do Kuwait. O economista Nouriel Roubini lembrou desses fatos por esses dias ―ele previu o crash de 2008― na revista Der Spiegel. Essas cicatrizes e essa memória deixam a sensação de que os Estados Unidos já não serão o líder do mundo. “Pela primeira vez em sua história, a maior potência do planeta renunciou à liderança da luta sanitária e econômica enquanto a China responde com uma campanha muito agressiva para melhorar sua imagem pública”, diz Federico Steinberg, analista principal do Real Instituto Elcano.
Onde está a força das listras e o brilho das estrelas? “Washington falhou no teste da liderança e o mundo está pior por isso”, se lamenta no Foreign Policy Kori Schake, diretora de estudos de política exterior e defesa do American Enterprise Institute. Mas a Europa também não está imune a essa atração do egoísmo. A UE deve proteger seus 500 milhões de habitantes ou muitos governos podem exigir o retorno de certos poderes. É impossível descartar, vimos, que os próximos meses tragam um maciço repúdio político. “Dependerá”, diz Kathryn Judge, professora na Escola de Leis da Universidade de Columbia, “de até que ponto o preço é alto em termos de sofrimento humano, vidas perdidas e a inevitável destruição econômica [o centro de estudos Brookings Institution fala de um custo global de 2,3 trilhões de dólares (12 trilhões de reais)] que virá. Porque o auge do populismo que varreu o planeta após 2008 revela a maneira profunda com que a indignação pública pode mudar o mundo”.
A história alerta que os desastres incendeiam a xenofobia e o racismo. E é cada vez mais comum encontrar avisos dessa rachadura. Até mesmo no Velho Continente já prospera o relato do “norte industrioso” e do “sul preguiçoso”. Especialmente pela dificuldade que a Europa mostra para organizar uma resposta coordenada. “A pandemia está evidenciando, mais uma vez, a disfunção do euro, que coloca os países membros em uma camisa de força macroeconômica. A menos que a União Europeia possa reunir a vontade de se transformar em uma verdadeira união fiscal e política, a zona do euro começará a se separar”, prevê Paul Sheard, especialista principal do Centro de Negócios e Governo Mossavar-Rahmani na Escola Kennedy da Universidade Harvard.

Sistemas de saúde

Nessas semanas proliferam inúmeros intérpretes da tragédia, adivinhadores do drama, quiromantes do descontentamento e até os que também, como o político democrata norte-americano Bernie Sanders, são capazes de revelar tudo em seis palavras: “Healthcare is a basic human right”. “O sistema de saúde é um direito fundamental do ser humano”. Esse é um legado do vírus. Existem muitos outros. Mais trabalho em casa, auge dos pagamentos eletrônicos, maiores controles nas fronteiras, seguros caros e complexos, educação e medicina à distância, e menos viagens transoceânicas e convenções. “Precisamos pensar como tornar mais eficiente o sistema de saúde, porque ao fazê-lo se torna mais econômico, viável e universal”, propõe Carsten Menke, responsável pela área de next generation research do banco privado Julius Baer. Sua narrativa inclui telemedicina, monitoramento do paciente em casa após uma cirurgia e medicamentos personalizados que evitem os desperdícios de remédios.
Nada muito revolucionário, tudo muito urgente. Porque a novidade é que a higiene cresce como prioridade nas agendas de empresas e Governos. Singapura já está planejando regras de limpeza obrigatórias. Regras mais rígidas podem impulsionar as compras online de uma maneira semelhante à como a epidemia de síndrome respiratória aguda (SARS, na sigla em inglês) de 2003 fez com que as pessoas evitassem os centros comerciais.
Os Governos vão gastar mais para cuidar da saúde de sua população e evitar os enormes custos das pandemias. Só o SARS tirou ―de acordo com a Universidade Nacional da Austrália― 40 bilhões de dólares (204 bilhões de reais) da economia do planeta. “Para mim é uma chamada de atenção, já que a Covid-19 não é tão mortal como o ebola. As Administrações, pelo menos assim espero, se organizarão e estarão preparadas para a próxima”, diz Gael Combes, analista da gestora Unigestion. E continua. “Em um sentido mais econômico é pouco provável que mude nosso desejo de consumir e viajar. Talvez os grandes cruzeiros saiam de moda por um tempo, mas as pessoas não renunciarão, se puderem pagar, a um longo final de semana em Barcelona”.
Essa mesma fé na recuperação do consumo é demonstrada por Daniel Galván, diretor da GBS Finance. “Voltará com força à medida que a situação se normalizar”. Veremos. Porque o homem utiliza o “costume” como uma barreira contra a noite mais escura. O ser humano procura refúgios nas tempestades. “Estaremos mais atentos ao nosso, do público e do que nos protege, e crescerá a porcentagem das pessoas partidárias de aumentar (ainda que precisem pagar mais impostos) o gasto público em saúde”, diz Carlos Cruzado, presidente do Gestha, o sindicado dos técnicos da Fazenda da Espanha.

Enorme gasto público

Ninguém quer retornar a um novo período de austeridade como o que surgiu pela crise da dívida de 2011. Mas a trama dos dias de hoje é semelhante. Um enorme gasto público e a queda dos rendimentos tributários. “Se a crise acabar impactando de maneira assimétrica na Europa, menos no norte e mais no sul, porque os nortistas tiveram mais tempo para se preparar e cortar a cadeia internacional de fornecimentos sanitários dando prioridade a seu autoabastecimento, o calvinismo voltará a se impor: ‘Os pecadores merecem pagar por seus pecados”, critica Carlos Martín, responsável do gabinete econômico das CC OO (Comissões Operárias da Espanha). “Essa moral já se impôs durante a crise anterior: os sulistas gastaram em ‘mulheres e vinho’ [como disse em 2017 Jeroen Dijssel­bloem, à época ministro das Finanças holandês]. E o mais chocante é que alguns Governos do Sul compraram essa reprovação: ‘Vivemos acima de nossas possibilidades".
Agora podem raciocinar da mesma forma: os sulistas querem nos repassar, novamente, o custo de sua incapacidade e desorganização. Mas a economia após o coronavírus traz, em princípio, o requisito da solidariedade. É evidente que as medidas fiscais lançadas pelo Executivo para deter a pandemia deixarão um legado de maior déficit e dívida pública. “Esses aumentos devem ser financiados a longo prazo, até mesmo décadas. Com qualquer uma das soluções que serão por fim tomadas (emissão de dívida pública nacional, coronabônus europeus e outras), o BCE (Banco Central Europeu) terá um grande protagonismo no financiamento dos mercados secundários de dívida”, diz Rafael Doménech.
Por enquanto, a pandemia vive no presente. Acertar o futuro da economia soa complexo. Porque ninguém sabe qual será seu custo humano e econômico final. Ainda que sempre existam otimistas. “Acho que a maioria dos negócios, e evidentemente os gigantes norte-americanos e de outros países, não fracassarão no retorno a sua atividade empresarial [quando a crise passar]”, observa na agência Bloomberg Edmund Phelps, prêmio Nobel de Economia. Outras vozes dizem o mesmo. “Superaremos isso e estaremos melhor dentro de 24 meses”, calcula, em uma nota, Rob Lovelace, vice-presidente da gestora Capital Group. Mas dois anos é uma espera inimaginável em milhões de lares. Ainda que nesse período, talvez, algumas percepções deverão ter mudado para sempre. O preceito de “segurança nacional” incluirá a redistribuição da riqueza, uma fiscalidade mais justa e reforçar o Estado de bem-estar. A sociedade também deverá apreciar o valor de trabalhos até agora desprezados. Babás, assistentes sociais, faxineiras, cuidadores de idosos. Algumas das contribuições mais subvalorizadas pedem uma consideração bem diferente. Talvez o novo tempo proponha a lição de que os professores e as enfermeiras são muito mais valiosos do que os banqueiros de investimento e os gestores de fundos especulativos.
Uma dessas vozes cheias de dinheiro é a de Larry Fink. A pessoa mais poderosa dos mercados. Administra sete trilhões de dólares (35 trilhões de reais) pelo BlackRock, a maior gestora de fundos do planeta. Confinado em sua casa, escreveu uma carta de 11 páginas aos seus clientes, acionistas e funcionários. Defende ―claro― o brilho do capital. “Existem enormes oportunidades no mercado”, afirma. E imagina um futuro diferente. “Quando sairmos da crise, o mundo será diferente. A psicologia do investidor mudará. Os negócios mudarão. O consumo mudará”, talvez as pessoas evitem os lugares cheios como shows e restaurantes. “Então só sobreviverão as grandes redes e os pedidos online”, se pergunta Giles Alston, especialista da Oxford Analytica. Parece improvável. Mas as camisetas terão estampadas a palavra “resiliência” e em suas etiquetas deveríamos ler fabricado em “decência”, “generosidade”, “honestidade”, “beleza”, “coragem”.
Pouco a pouco, o futuro econômico se filtra da mesma forma que a luz por uma fresta. “As políticas monetárias perpetuam o tipo de dinheiro a partir do zero porque a inflação deixou de ser um problema”, prevê Roberto Scholtes, diretor de estratégia da UBS. A economia terá que responder a novas exigências sociais. Políticas fiscais mais expansivas, maior pressão por redistribuir a riqueza e será preciso projetar divisões de gastos extraordinárias diante de novas epidemias e a crise climática.
“As grandes crises econômicas da história desde a Segunda Guerra Mundial ocorreram com talento político questionável nas superpotências”, diz Emilio Ontiveros, presidente da Analistas Financeiros Internacionais (AFI). E vai além. “Chega uma quarta fase da globalização e precisamos de uma coordenação multilateral maior. O BID, o Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano), o G20 e o Eurogrupo precisam agir com maior ambição. Porque, do contrário, sumirão as economias das pessoas, as aposentadorias, o bem-estar. E a sociedade e a economia sairão mais empobrecidas após a crise”. É preciso uma renda básica e qualquer sistema de distribuição semelhante que dê proteção às pessoas em tempos de emergência e de calma. Principalmente após o inevitável aumento do desemprego que o fim do enclausuramento econômico deixará. A UBS estima uma destruição (temporária) de dois milhões de empregos na Espanha, e o Goldman Sachs acha que o PIB do mundo cairá 1% neste ano.
Nesse momento, a psicologia do investidor, presa no paradoxo, será ao mesmo tempo igual e diferente. “Como em outras situações que combinam incerteza e volatilidade elevada, existe um grande apetite pela liquidez e a possibilidade de que os poupadores optem por depósitos frente a outros investimentos”, diz Francisco Uría, sócio responsável do setor financeiro da KPMG. Mas a nova linha do horizonte será desenhada pelos fundos cotizados (ETF) e a sustentabilidade nas carteiras. E o que será do setor imobiliário, que também criou bolhas, contradizendo ao poeta, nada leves e sutis? Irá se voltar à tecnologia. As imobiliárias se tornarão digitais. Até onde for possível. Ninguém compra uma casa sem vê-la fisicamente. “Mas a curto prazo, o impacto é duro. As pessoas devem solucionar primeiro outros problemas imediatos, depois voltarão a comprar moradias”, prevê Carlos Smerdou, executivo-chefe da Foro Consultores Imobiliários.

Emergência climática

Porque nesse anoitecer da Terra, somente a emergência climática e a natureza parecem se beneficiar. O respiro que demos à atmosfera é a única luz branca que cai sobre uma obscura pandemia. Na China, onde a poluição causa mais de 1,6 milhão de mortes prematuras, o confinamento, de acordo com o cientista da Universidade de Stanford Marshall Burke, salvou a vida de pelo menos 1.400 crianças menores de 5 anos e 51.700 adultos de mais de 70 anos.
Mudamos nossa existência e nossa forma de trabalhar em um respiro. Não podemos em outro modificar a maneira como habitamos o planeta? “As escolhas que os bancos centrais, o Governos e as instituições financeiras fizerem hoje moldarão nossas sociedades nos próximos anos. É tempo de mobilizar recursos para colocar a saúde e o trabalhos das pessoas em primeiro lugar. Por isso, as Administrações devem investir em afastar nossas economias da dependência dos combustíveis fósseis e o crescimento infinito que continua alimentando o desastre”, pede May Boeve, diretora da ONG 350.org.

“Vamos a uma recessão não vista desde a Grande Depressão”

Kenneth Rogoff, economista e professor em Harvard, acha que o vigor da saída da crise depende da resposta sanitária.
Kenneth Rogoff, em foto de 2018.
Kenneth Rogoff, em foto de 2018.Jason Alden / Bloomberg
Rogoff, um dos grandes economistas do século XXI, tem o prestígio de não escrever linhas torcidas. Em 2009 publicou, com sua colega no centro norte-americano Carmen Reinhart um livro cujo título é uma reimpressão dos dias em que transitamos. This is Different: Eight Centuries of Financial Folly (Isso é diferente: Oito séculos de necessidade financeira). Hoje, enquanto conversa com o EL PAÍS através de um questionário enviado por e-mail, essa frase tem o mesmo peso de um céu de chumbo. “O impacto potencial na política econômica é profundo. Mas pode ir em diferentes direções”, afirma Rogoff. “O sistema autoritário da China será visto como a solução ou a causa da crise? O inepto manejo da pandemia pelos Estados Unidos, tanto em suas primeiras etapas (falta de testes) como em suas últimas (carência de uma política nacional unificada), assinalará o começo do fim do domínio norte-americano ou, em última instância, mostrará a criatividade e a resiliência do país e do dólar? Será preciso ter muita força.
Os meses chegam descontando um calendário de dias desolados. “Parece que nos dirigimos a uma profunda recessão global, com um tamanho nunca visto desde a Grande Depressão”, prevê o economista. “Esperemos que seja muito mais curta. Ainda que a rapidez da saída dependa de como o vírus se desenvolva e a resposta do sistema de saúde. Mas, até mesmo no melhor dos casos, a situação é terrível aos mercados emergentes. Antes da crise já tinham uma dívida externa altíssima [entre hoje e o final do próximo ano, os países em desenvolvimento devem lidar, de acordo com a ONU, com o pagamento de 2,7 trilhões de dólares (13 trilhões de reais) em dívida] e um crescimento em queda. Isso provocará o colapso de muitas nações. Carmen Reinhart e eu propomos uma moratória do pagamento aos países mais afetados”, diz Rogoff.

Depressão social e liberdade

A pandemia passará e será preciso pensar por quais ruas e cidade caminharemos. Porque a Terra corre o risco de cair em uma espécie de depressão social causada por esse tempo de distanciamento. “Um colapso pessoal que será muito duro com a população mais isolada e solitária, como os idosos”, alerta o colunista Ezra Klein. É o resultado de um confinamento imposto, mas também voluntário. Já existe uma cacofônica palavra que o define: co­cooning. “É a tendência a estar mais tempo em casa, socializar menos fora e fazer de teu lar uma fortaleza”, diz Patricia Daimiel, diretora-geral da consultoria Nielsen. É o que queremos? Nos sentir seguros e isolados? “Provavelmente descobriremos (outra vez!) que existem muitos trabalhos que podem ser feitos em casa, economizando combustível em deslocamentos e tempo de espera em antessalas. O problema, entretanto, é que queremos estender esse privilégio a atividades muito importantes como a educação e o amor, que não podem deixar de ser presenciais: exigem o corpo a corpo”, reflete o filósofo Fernando Savater. Sem dúvida, a imensa urgência do presente nos impede de avaliar qual horizonte o futuro deixará.
O escritor israelense Noah Harari contou no ‘The Financial Times’ que nestes tempos de crise a sociedade precisa escolher entre “vigilância totalitária e empoderamento cidadão”. As pessoas enfrentarão dilemas. “E no momento de escolher as respostas deveríamos avaliar as alternativas e as implicações a longo prazo. As novas tecnologias são uma excelente ferramenta para prevenir e evitar os contágios e organizar nossas vidas (pensemos na compra ‘online’) e a atividade econômica (teletrabalho). Mas é preciso encontrar um equilíbrio entre privacidade e segurança, e evitar cair em um controle que manipule as pessoas e coloque suas liberdades individuais em perigo”, alerta Rafael Doménech, responsável de análise econômica do BBVA Research.
A China lidou com a pandemia, entre outras medidas, monitorando milhões de telefones inteligentes para controlar os contatos e a temperatura corporal de seus donos. E no espaço de duas semanas, os primeiros-ministros de Israel e Hungria se outorgaram a possibilidade de governar por decreto, sem interferências do Parlamento e dos tribunais. Mas as emergências e os desastres também são uma fenda a uma nova normalidade. Através dela vemos a possibilidade de outros mundos e outra sociedade. Há perdas, há ganhos; o ar e a vida se filtram.
“Precisamos de uma nova economia dos cuidados que integre os sistemas nacionais de saúde públicos e privados como fizemos com os sistemas bancários”, diz Carlos Martín, responsável do gabinete econômico das CC OO (Comissões Operárias da Espanha). E aprofunda. “Minha proposta é um eurosistema de saúde que seria financiado com o primeiro imposto em escala europeia e comunitária. Uma taxação progressiva sobre o patrimônio das pessoas, cujos excedentes seriam utilizados em ir somando aos países com menos recursos de fora da UE, até cobrir todo o planeta...”.

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