Para a economista da Universidade Johns Hopkins, ministro Paulo Guedes está preso a dogmas ideológicos e mantém letargia para tomar decisões que afetam quem já está passando fome
“E,
para os defensores da calma e da serenidade, saibam: o momento é de
urgência”, escreve a economista brasileira Monica de Bolle, em mais um
tuíte para cobrar decisões rápidas de autoridades diante do quadro
excepcional pelo qual passa o Brasil e o mundo. Pesquisadora do
Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da
Universidade Johns Hopkins, em Washington, de Bolle tem sido incansável
em defender que é preciso abandonar o teto de gastos para frear a escalada da pandemia de coronavírus e
seus impactos econômicos. “Hoje, dane-se o Estado mínimo, você precisa
gastar e é preciso errar pelo lado do excesso”, afirma a economista, que
sempre pregou austeridade responsável.
Bolle critica a condução do ministro de Economia, o liberal Paulo Guedes,
para enfrentar a crise e avalia que ao invés de tentar acalmar o
mercado financeiro, o chefe da pasta deveria estar solucionando o
problemas dos milhões de brasileiros que já não têm como se sustentar.
Em entrevista ao EL PAÍS, a economista avalia que a posição negacionista de Jair Bolsonaro,
que tenta minimizar a pandemia e quer afrouxar as regras de quarentena,
pode escalar para uma situação “de absoluta instabilidade social e
institucional”.
“Se você não aplicar o isolamento social e
deixar a epidemia correr solta, como já vimos aqui em Nova York, o
sistema de saúde entra em colapso e a economia junto. Não há como evitar
o colapso econômico, ele vem na mesma forma, na verdade vem pior”.
Leia os principais trechos da entrevista:
Pergunta.
O Senado aprovou, na noite desta segunda-feira, o projeto que prevê um
auxílio emergencial de 600 reais para amparar os trabalhadores que
perderam renda com a crise da pandemia de coronavírus. Agora a lei vai
para sanção presidencial. A ajuda é suficiente?
Mais informações
Resposta. O texto aprovado foi tal qual o encaminhado pela Câmara, o que é bom,
porque permite que o pagamento possa ser feito de imediato. Tenho
algumas críticas, acredito que o projeto poderia ter sido aprimorado
antes, mas isso é menos importante, porque o principal é que saia o
pagamento. No entanto, acredito que seja necessário um projeto de lei
complementar a esse, ajustando a cobertura do benefício para contemplar
mais pessoas e não apenas os trabalhadores informais. No Brasil, há uma
quantidade grande de trabalhadores formais cuja a situação é muito
precária.
P. E a duração de três meses do benefício? É suficiente?
R.
São três meses prorrogáveis, mas essa crise não terá acabado em 90
dias. Precisamos estender esse prazo para que as pessoas tenham a
segurança mínima de que essa renda com a qual elas vão poder contar terá
um prazo mais longo. Isso é muito importante para dar um chão às
pessoas. Vários projetos que foram apresentados pela oposição queriam um
prazo maior, mas o Governo resistiu e preferiu ficar só nos três meses.
Jair Bolsonaro resiste em reconhecer que a crise vai ser mais longa do
que três meses, porque isso vai de encontro com a narrativa a que ele se
agarrou de que isso é uma crise de curto prazo, que vai acabar logo.
Mas todo mundo já sabe que ela será mais longa, então é uma postura
anacrônica. Ainda tem uma grande articulação de um PL complementar para
ajustar esses dois parâmetros, mas é preferível aprovar dessa forma para
não atrasar o processo de começar a pagar as pessoas. Mas isso depende
do Governo Federal que tem que implementar a lei e desenhar a logística
para isso. Já deveria ter feito isso na semana passada. Mais uma vez, o
Governo está super atrasado. Alguns projetos de lei sobre medidas de
proteção das empresas estão sendo formulados também. Outra vez, o
Congresso vai propor um texto, que provavelmente será lei. Mas a
implementação sempre é do Executivo. O Congresso vai até onde pode, mas
precisa da perna do Governo para funcionar, se essa perna ficar inerte,
como tocar para frente o que precisa?
P. Nos último dias, o Governo anunciou um pacote de medidas econômicas para amenizar os efeitos da crise, mas a maioria delas ainda estão no papel. O que é mais urgente?
R.
É um caminhão de coisas que estão faltando, porque o Governo não fez
quase nada, está em uma inércia absoluta. O Banco Central tomou ações
importantes nas últimas semanas, todas elas na direção correta, de dar
liquidez para o mercado, indiretamente para as empresas, que precisam
também. O BC tem feito, no entanto, o esforço que pode, já que o
protagonista precisa ser o Ministério da Economia. E o esforço maior que
precisa ser feito é muito grande. Requer o repasse dos recursos ao
Sistema Único de Saúde (SUS), a implantação da renda mínima, as linhas
de crédito que você pode dar para as empresas para garantir empregos.
Não se pode apenas atuar na frente das pessoas vulneráveis, mas também
na manutenção dos empregos formais. E só se consegue isso dando
sustentação para as empresas. É necessário desenhar qual a forma que
você vai fazer isso, e a maneira a ser feita para uma empresa de médio
porte é completamente diferente para um microempresário, ainda mais para
as microempresas que estão muito endividadas e não vão conseguir linha
de crédito dos bancos públicos. Para esses microempresários, é
necessária uma ação parecida com a renda mínima. O Tesouro dá dinheiro
diretamente para essas empresas com uma contrapartida de manutenção de
emprego, dá para monitorar. Além disso, o microempresário muitas vezes é
uma pessoa só, não é questão de manutenção de emprego é de
sobrevivência dessas pessoas.
P. Fica claro que o Governo precisará adotar uma política de gastos fortes, mas tem uma equipe liderada por Paulo Guedes, um liberal que, desde o dia um, prometeu cortes e menos Estado na economia. Como avalia a condução do ministro diante da crise do coronavírus?
R.
O Paulo Guedes está completamente despreparado neste momento para
enfrentar essa crise. A letargia e a inércia já demonstram isso. A
incapacidade de largar os dogmas ideológicos que ele tem, como o Estado
mínimo, o Estado que não pode gastar, é completamente inapropriada para
esse momento. Hoje, dane-se o Estado mínimo, você precisa gastar. É
preciso é errar pelo lado do excesso não para o lado da cautela numa
crise desse tipo.
P. Neste fim de semana, em uma live
com representantes da corretora XP, Guedes afirmou que “é conversa
fiada” os rumores de que ele sairia do cargo. A videoconferência foi
vista como um movimento para acalmar o mercado financeiro.
R.
Isso é mais um despreparo, essa preocupação de passar recado para o
mercado. Ninguém tem que passar recado para o mercado, precisa trabalhar
para as pessoas, são as pessoas que estão morrendo de fome e que já não
têm condições de se sustentar que importam. É incrível essa surdez e
essa cegueira. O mercado tem o auxílio do BC, não é hora do ministro da
Economia ficar falando com o mercado, fazendo live para o
mercado. O que que é isso? Ele deveria estar pensando em como
implementar a renda mínima, como fará a distribuição dos 600 reais para
as pessoas elegíveis a receber. Como ele vai fazer para lidar com as
diferentes áreas de atuação e planos de ação para as empresas e os
planos de manutenção de empregos. Quanto realmente ele vai destinar para
o SUS. A calamidade está decretada. A lei de responsabilidade já dá a
flexibilidade necessária. Ele já tem tudo que precisa para agir, ele não
precisa de mais nada, precisa de agir, mas perde tempo com o mercado
fazendo conferência, numa situação de absoluta emergência onde as ações
são necessárias para ontem.
P. Uma das primeiras medidas anunciadas pelo ministério da Economia, que precisou recuar,
mirou o lado das empresas — que poderiam suspender os contratos de
trabalho —, mas não contemplou, em um primeiro momento, como o empregado
iria sobreviver. Como resolver a questão dos empregados e empregadores?
R.
É uma falta de entendimento total. Se você não estiver dando apoio para
os trabalhadores de todos os tipos, informais, formais, autônomos, se
não der sustentação para as pessoas, você também não está dando
sustentação para as empresas. Tem que ser uma ação coordenada para as
pessoas e empresas, para que você não tenha um desemprego em massa no
país, porque isso também vai quebrar as empresas. Não vai ter gente para
consumir. É uma absoluta falta de compreensão da gravidade do momento e
da urgência das medidas, de sentar e trabalhar. Se não tem capacidade
de fazer isso, pede ajuda. Há muitas pessoas dando ideias e tentando
formular propostas que possam ser levadas para frente. Por que o
ministro precisa ser tão turrão a ponto de não escutar?
P.
A postura do presidente Jair Bolsonaro de minimizar a pandemia de
coronavírus pode de fato afetar as decisões do ministério da Saúde e
outras autoridades do país? Induzir a própria população a tomar um
caminho contrário ao determinado pela OMS?
R. Em
tese sim, mas na prática eu estou achando que não. Mesmo Santa Catarina
que tem um governador [Comandante Moisés (PSL)] mais alinhado com
Bolsonaro, que já estava cedendo às pressões do comércio e de alguns
empresários local para abandonar as medidas de quarentena, voltou atrás.
A manifestação da epidemia, que nas próximas duas semanas vai ser
absurdamente dramática no país, vai impedir que as pessoas sigam essa
linha. A população de modo geral está muito assustada com o que está
acontecendo. A postura de Bolsonaro vai afetar em alguma medida, mas não
de forma generalizada. Não acredito que governadores e prefeitos voltem
atrás. Bolsonaro induz, no entanto, algumas pessoas, principalmente as
mais vulneráveis — que vivem de pequenos comércios, biroscas, ou que são
ambulantes — a se sentirem mais autorizadas a irem para rua. Essas
pessoas sabem o risco que estão correndo, mas nessa situação a pessoa
escolhe entre ficar em casa e não ter o que comer ou sair para conseguir
dinheiro. Mas é terrível, porque coloca a vida da pessoa em risco com
uma desinformação tremenda. É criminoso. É algo completamente criminoso,
é de uma indigência absoluta. É surreal.
P. Ao
combater as regras de quarentena, Bolsonaro se isola até mesmo de
aliados políticos que têm grande peso em suas decisões, como o presidente Donald Trump, que chegou a adotar essa linha negacionista da doença, mas já voltou atrás…
R.
A reviravolta do Trump é impressionante. Ele começou falando no início
que era apenas uma gripe, um resfriado, nessa linha do Bolsonaro, que as
pessoas morrem todo ano de gripe. Estava completamente embarcado nesse
discurso. As pessoas ao redor dele conseguiram, no entanto, mudar seu
alinhamento para algo mais pé no chão. Mesmo assim, ele titubeou quando
afirmou que as pessoas poderiam sair do isolamento até o dia 12 de
abril, mas neste domingo anunciou que a quarentena vai até o dia 30 de
abril. O que mais mexe com Trump é a eleição. Ele percebeu, ao contrário
do nosso presidente tupiniquim, que está entre a cruz e espada. Se ele
deixar a epidemia correr solta, as mortes vão cair no colo dele. E se
ele adotar as medidas de quarentena necessárias, a economia vai sofrer
um baque, mas o Governo está fazendo as medidas para amenizar, estão
passando os pacotes, o Fed [ Banco Central dos EUA] está atuante. O
cálculo político de Trump é que ao dar voz aos médicos e
infectologistas, apesar da economia parada e do desemprego, sua
aprovação está crescendo. Seria um risco muito maior para a
sobrevivência política dele manter essa linha de reabrir o comércio.
Bolsonaro não tem uma eleição imediata em vista, no entanto, ele deveria
fazer algum cálculo político, porque é óbvio que ele será culpado pelas
mortes e pela sobrecarga no sistema de saúde. Os cientistas estão muito
na linha de frente nos EUA, enquanto no Brasil, Bolsonaro desmente
todas as pessoas que estão falando da gravidade da doença.
P. Bolsonaro tem criado ruído inclusive com o próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
R.
Exatamente. Cria uma fissura entre ele e o Mandetta, tira dele a
capacidade do que ele precisa fazer, o ministro fica desautorizado e é a
pior sinalização, pior maneira de enfrentar a crise.
P.
Quais medidas outros países estão implementando que deveriam ser
exportadas aqui no Brasil para amenizar os efeitos da pandemia?
R.
Acho que há um consenso de alguns pilares. É preciso dinheiro para o
SUS a quantidade que for, pelo menos uns 50 bilhões de reais. Verbas
para as micro e pequenas empresas no esquema de renda mínima, onde você
tem como contrapartida não demitir funcionários. Eu calculei 30 bilhões
de reais. Renda mínima para os 77 milhões do cadastro único com o
esforço de recadastramento para alcançar umas 100 milhões de pessoas, já
que sabemos que atualmente temos cerca de 50% a 60% da população em
situação de vulnerabilidade. Quarto pilar, a proposta do Armínio Fraga
[economista e ex-presidente do Banco Central] para empresas de maior
porte que poderiam receber recursos de bancos públicos, onde o crédito
está atrelado à manutenção do emprego. E um plano de reconversão
industrial, que poderia ser viabilizado via BNDES, que consiste em um
crédito para fazer a produção de equipamentos hospitalares. Converter
suas plantas de produção em fábricas para equipamentos de saúde, toda
parte de proteção, máscara e vestimentas. É isso que vejo os países
fazendo de acordo com as necessidades específicas de cada país.
P.
Alguns deputados e entidades começam a falar na contribuição dos mais
ricos para ajudar amenizar essa crise, sugerindo a volta do debate de um
aumento de impostos para grandes fortunas e patrimônios. Paulo Guedes
já afirmou que descarta um plano de tributos nesse momento. Qual a sua
opinião?
R. Acho que a discussão sobre o tema é
válida, mas não neste momento. O mais importante é tomar as medidas de
emergência, emitindo dívida e acabou. Mais para frente, como essas
medidas vão ser mais permanentes que temporárias, você começa a ver como
vamos fazer para financiar a médio prazo isso tudo. Aí sim tem que
entrar a discussão sobre imposto sobre grandes fortunas, sobre
patrimônio, um imposto progressivo de renda. Mas não é a reforma
tributária que estava sendo discutida de unificar e simplificar imposto.
Não. É uma reforma para inverter a pirâmide tributária no Brasil. Para
que as pessoas de maior renda e patrimônio arquem com o custo de ter que
fazer essa redistribuição para ajudar os mais vulneráveis. Mas não é a
discussão a ser feita na hora da emergência. Este momento é de emitir
dívida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário