Consumir por consumir sai de moda, morar perto do trabalho, atuar mais no coletivo com colegas de empresas, ou vizinhos do bairro. A Covid-19 vai rever valores e mudar hábitos da sociedade
Clayton Melo
A Covid-19
mudou nossas vidas. Não estou falando aqui simplesmente da alteração da
rotina nesses dias de isolamento, em que não podemos mais fazer
caminhadas no Minhocão ou ir aos nossos bares e restaurantes preferidos.
Sim, tudo isso mudou nosso cotidiano —e muito. Mas o meu convite para
você é para pensarmos nas mudanças mais profundas, naquelas
transformações que devem moldar a realidade à nossa volta e, claro, as
nossas vidas depois que o novo coronavírus baixar a bola. Por isso
talvez seja melhor mudar o tempo verbal da frase que abre este texto e
dizer que o coronavírus vai mudar as nossas vidas. Mas como? Que
cenários prováveis já começam a emergir e devem se impor no mundo
pós-pandemia?
O mundo pós-pandemia será diferente
Entender
que mundo novo é esse é importante para nos prepararmos para o que vem
por aí. Porque uma coisa é certa: o mundo não será como antes, conforme
nos alertou o biólogo Átila Iamarino.
“O
mundo mudou, e aquele mundo (de antes do coronavírus) não existe mais. A
nossa vida vai mudar muito daqui para a frente, e alguém que tenta
manter o status quo de 2019 é alguém que ainda não aceitou essa nova realidade”, disse nesta entrevista para a BBC Brasil
Átila, que é doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo e
pós-doutor pela Universidade Yale. “Mudanças que o mundo levaria décadas
para passar, que a gente levaria muito tempo para implementar
voluntariamente, a gente está tendo que implementar no susto, em questão
de meses’, diz ele.
Pandemia marca o fim do século 20
Ainda
nessa linha, havia uma visão entre especialistas de que faltava um
símbolo para o fim do século 20, uma época altamente marcada pela
tecnologia. E esse marco é a pandemia do coronavírus, segundo a
historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e de Princeton, nos EUA, em entrevista ao Universa. “[O historiador britânico Eric] Hobsbawm disse que o longo século 19 só terminou depois da Primeira Guerra Mundial
[1914-1918]. Nós usamos o marcador de tempo: virou o século, tudo
mudou. Mas não funciona assim, a experiência humana é que constrói o
tempo. Ele tem razão, o longo século 19 terminou com a Primeira Guerra,
com mortes, com a experiência do luto, mas também o que significou sobre
a capacidade destrutiva. Acho que essa nossa pandemia marca o final do
século 20, que foi o século da tecnologia. Nós tivemos um grande
desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites”,
diz Lilia.
Coronavírus, um acelerador de futuros
Vários
futuristas internacionais dizem que o coronavírus funciona como um
acelerador de futuros. A pandemia antecipa mudanças que já estavam em
curso, como o trabalho remoto, a educação a distância, a busca por
sustentabilidade e a cobrança, por parte da sociedade, para que as empresas sejam mais responsáveis do ponto de vista social.
Outras
mudanças estavam mais embrionárias e talvez não fossem tão perceptíveis
ainda, mas agora ganham novo sentido diante da revisão de valores
provocada por uma crise sanitária sem precedentes para a nossa geração.
Como exemplos, podemos citar o fortalecimento de valores como
solidariedade e empatia, assim como o questionamento do modelo de
sociedade baseado no consumismo e no lucro a qualquer custo.
“A vida depois do vírus será diferente”, disse ao site Newsday a futurista Amy Webb,
professora da Escola de Negócios da Universidade de Nova York. “Temos
uma escolha a fazer: queremos confrontar crenças e fazer mudanças
significativas para o futuro ou simplesmente preservar o status quo?”
Efeitos do coronavírus devem durar quase dois anos
As
transformações são inúmeras e passam pela política, economia, modelos
de negócios, relações sociais, cultura, psicologia social e a relação
com a cidade e o espaço público, entre outras coisas.
O ponto de partida é ter consciência de que os efeitos da pandemia devem durar quase dois anos, pois a Organização Mundial de Saúde
calcula que sejam necessários pelo menos 18 meses para haver uma vacina
contra o novo. Isso significa que os países devem alternar períodos de
abertura e isolamento durante esse período.
Diante dessa
perspectiva, como ficam as atividades de lazer, cultura, gastronomia e
entretenimento no centro e em toda a cidade durante esse período? O que
mudará depois desse período? São questões ainda em aberto, mas há sinais
que nos permitem algumas reflexões.
Para entender essas e
outras questões e identificar os prováveis cenários, procurei saber que
tendências os futuristas, pesquisadores e bureaus de pesquisas
nacionais e internacionais estão traçando para o mundo pós-pandêmico. A
partir dessas leituras e também de um olhar para as questões que dizem
respeito ao centro de São Paulo e à vida urbana em geral, fiz uma lista
com algumas dessas tendências, que você pode ler a seguir.
Confira as 10 tendências para o mundo pós-pandemia
1. Revisão de crenças e valores
A crise de saúde pública
é definida por alguns pesquisadores como um reset, uma espécie de um
divisor de águas capaz de provocar mudanças profundas no comportamento
das pessoas. “Uma crise como essa pode mudar valores”, diz Pete Lunn,
chefe da unidade de pesquisa comportamental da Trinity College Dublin,
em entrevista ao Newsday.
“As
crises obrigam as comunidades a se unirem e trabalharem mais como
equipes, seja nos bairros, entre funcionários de empresas, seja o que
for... E isso pode afetar os valores daqueles que vivem nesse período
—assim como ocorre com as gerações que viveram guerras”.
Já estamos começando a ver esses sinais no Brasil —e no centro de São Paulo, com vários exemplos de pessoas que se unem para ajudar idosos, por exemplo.
2. Menos é mais
A crise financeira decorrente da pandemia por si só será um motivo para que as pessoas economizem mais e revejam seus hábitos de consumo. Como diz o Copenhagen Institute for Futures Studies, a ideia de “menos é mais” vai guiar os consumidores daqui para frente.
Mas
a falta de dinheiro no momento não será o único motivo. As pessoas
devem rever sua relação com o consumo, reforçando um movimento que já
vinha acontecendo. “Consumir por consumir saiu de ‘moda’”, escreve no
site O Futuro das Coisas Sabina Deweik, mestre em comunicação semiótica pela PUC e pesquisadora de comportamento e tendências.
O outro lado desse processo é um questionamento maior do modelo de capitalismo
baseado pura e simplesmente na maximização dos lucros para os
acionistas. “O coronavírus trouxe para o contexto dos negócios e para o
contexto pessoal a necessidade de revisitar as prioridades. O que antes
em uma organização gerava resultados financeiros, persuadindo,
incentivando o consumo, aumentando a produção e as vendas, hoje não
funciona mais”, diz Sabina.
“Hoje, faz-se necessário
pensar no valor concedido às pessoas, no impacto ambiental, na geração
de um impacto positivo na sociedade ou no engajamento com uma causa.
Faz-se necessário olhar definitivamente com confiança para os
colaboradores já que o home office deixou de ser uma alternativa
para ser uma necessidade. Faz-se necessário repensar a sociedade do
consumo e refletir o que é essencial.”
3. Reconfiguração dos espaços do comércio
A pandemia vai acentuar o medo e a ansiedade
das pessoas e estimular novos hábitos. Assim, os cuidados com a saúde e
o bem-estar, que estarão em alta, devem se estender aos locais
públicos, especialmente os fechados, pois o receio de locais com
aglomeração deve permanecer.
“Quando as pessoas voltarem a
frequentar espaços públicos, depois do fim das restrições, as empresas
devem investir em estratégias para engajar os consumidores de modo
profundo, criando locais que tragam a eles a sensação de estar em casa”,
diz um relatório da WGSN, um dos maiores bureaus de pesquisas de tendências do mundo.
Eis
um ponto de atenção para bares, restaurantes, cafeterias, academias e
coworkings, que devem redesenhar seus espaços para reduzir a aglomeração
e facilitar o acesso a produtos de higiene, como álcool gel. Os espaços
compartilhados, como coworkings, têm um grande desafio nesse novo
cenário.
4. Novos modelos de negócios para restaurantes
Uma das dez tendências apontadas pelo futurista Rohit Bhatgava é
o que ele chama de “restaurantes fantasmas”, termo usado para descrever
os estabelecimentos que funcionam só com delivery. Como a possibilidade
de novas ondas da pandemia num futuro próximo, o setor de restaurantes
deve ficar atento a mudanças no seu modelo de negócios, e o serviço de
entrega vai continuar em alta e pode se tornar a principal fonte de
receita em muitos casos.
5. Experiências culturais imersivas
Como resposta ao isolamento social, os artistas e produtores culturais passaram a apostar em shows e espetáculos online, assim como os tours virtuais a museus
ganharam mais destaque. Esse comportamento deve evoluir para o que se
pode chamar de experiências culturais imersivas, que tentam conectar o
real com o virtual a partir do uso de tecnologias que já estão por aí,
mas que devem se disseminar, como a realidade aumentada e virtual,
assistentes virtuais e máquinas inteligentes.
De acordo
com o estudo Hype Cycle, da consultoria internacional Gartner, as
experiências imersivas são uma das três grandes tendências da
tecnologia. Destacamos aqui a área cultural, mas isso também se estende a
outros setores, como esportes, viagens a varejo, conforme indica o
relatório A Post-Corona World, produzido pela Trend Watching, plataforma global de tendências.
6. Trabalho remoto
O home office
já era uma realidade para muita gente, de freelancers e profissionais
liberais a funcionários de companhias que já adotavam o modelo. Mas essa
modalidade vai crescer ainda mais. Com a pandemia, mais empresas —de
diferentes portes— passaram a se organizar para trabalhar com esse
modelo. Além disso, o trabalho remoto evita a necessidade de estar em
espaços com grande aglomeração, como ônibus e metrôs, especialmente em
horários de pico.
7. Morar perto do trabalho
Essa
já era uma tendência, e morar no centro de São Paulo se tornou um
objeto de desejo para muitas pessoas justamente por conta disso, entre
outros motivos. Mas, com o receio de novas ondas de contágio, morar
perto do trabalho, a ponto de ir a pé e não usar transporte público,
deve se tornar um ativo ainda mais valorizado.
8. Shopstreaming
Com o isolamento social, as lives explodiram,
principalmente no Instagram. As vendas pela internet também, passando a
ser uma opção também para lojas que até então se valiam apenas do local
físico. Pois pense na junção das coisas: o shopstreaming é isso. Uma
versão Instagram do antigo ShopTime.
9. Busca por novos conhecimentos
Num
mundo em constante e rápida transformação, atualizar seus conhecimentos
é questão de sobrevivência no mercado (além de ser um prazer, né?). Mas
a era de incertezas aberta pela pandemia aguçou esse sentimento nas
pessoas, que passam, nesse primeiro momento, a ter mais contato com
cursos online com o objetivo de aprender coisas novas, se divertir e/ou
se preparar para o mundo pós-pandemia. Afinal, muitos empregos estão
sendo fechados, algumas atividades perdem espaço enquanto outros
serviços ganham mercado.
10. Educação a distância
Se a busca por conhecimentos está em alta, o canal para isso daqui para frente será a educação a distância, cuja expansão vai se acelerar. Neste contexto, uma nova figura deve entrar em cena: os mentores virtuais. A Trend Watching
aposta que devem surgir novas plataformas ou serviços que conectam
mentores e professores a pessoas que querem aprender sobre diferentes
assuntos.
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