Não é uma escolha entre vidas e economia
Mais cedo ou mais tarde, a crise econômica virá de qualquer forma, a questão é que quanto mais mortes, mais difícil será a recuperação
Uma das maiores tragédias de nossos tempos é a incessante
polarização política de discussões técnicas. No caso do combate ao
coronavirus, o adjetivo “trágico” é literal. O fato é que, desde o
discurso de Bolsonaro em rede nacional na última terça-feira, o debate
público se reduziu a um dilema estéril e abstrato: devemos salvar as
vidas ou a economia?
Concretamente falando, o dilema não existe: a crise econômica virá.
Ela pode vir algumas semanas antes, caso pratiquemos o confinamento
preventivamente – o que reduzirá consumo e produção – ou algumas semanas
depois, caso deixemos a doença se alastrar, as milhares de mortes
diárias chegarem e o pânico tomar conta. A diferença é que, neste
segundo caso, o número de mortes será muito maior e a recuperação muito
mais lenta.
Para reduzir os danos econômicos do confinamento, o Estado tem que
intervir de forma decisiva na economia, tendo três objetivos: garantir a
subsistência de todo mundo que precise; preservar empregos na medida do
possível, subsidiando a folha de pagamento de empresas que precisem
suspender seus trabalhadores; prover capital de giro para as empresas.
Essas medidas contribuem para que a recuperação econômica, ao fim da
crise, seja rápida: as pessoas e os bens de capital estarão em seu
lugar, os trabalhadores apenas voltam para seus postos. É muito mais
fácil do que reorganizar uma terra arrasada do zero.
Desde o discurso do presidente, contudo, uma parte relevante da
opinião pública tem defendido o fim de qualquer política de
confinamento, aconselhando apenas que idosos fiquem em casa.
É preciso frisar, aqui, o quanto o debate brasileiro está distante do
resto do mundo. Ao pedir que as pessoas fora do grupo de risco voltem
às ruas e que as escolas voltem a ter aulas, Bolsonaro nos coloca em uma
posição de permissividade mais extrema que a do Japão, o país que menos
medidas restritivas tomou até agora (nesta semana, os novos casos em
Tóquio subiram de forma preocupante; por isso a governadora regional já
avisou que um lockdown pode estar a caminho). Mesmo lá, contudo, as
escolas foram fechadas.
Nos EUA, Trump tem adotado uma posição similar à de Bolsonaro:
protesta, em nome da economia, contra as medidas de isolamento social.
No entanto, mesmo em seu discurso temerário o fim das restrições deve
começar, gradualmente, apenas na Páscoa: ou seja, dia 12 de abril. A
quarentena de SP, contra a qual Bolsonaro protesta veementemente, está
programada para ir até o dia 07 de abril. Mesmo os exemplos mais
permissivos do resto do mundo, portanto, são tratados como uma restrição
intolerável pelo discurso de Bolsonaro e seus seguidores nas redes, que
não se baseia em nenhum tipo de estudo ou modelo.
Por fim, cabe lembrar qual foi o país que adotou a mesma linha
pregada agora por Bolsonaro: a de que a epidemia é um alarmismo
midiático e que a economia não pode parar: a Itália. Em fins de
fevereiro, a cidade de Milão adotou a campanha “Milano non si ferma”
(“Milão não para”), iniciada em fins de fevereiro em Milão. Desde então,
Milão se tornou o grande foco na doença na Itália, e hoje morrem
diariamente mais de 700 pessoas no país. O prefeito de Milão já pediu
desculpas públicas pela campanha. As desculpas, contudo, não trarão uma
vida sequer de volta.
Ninguém deseja estender o isolamento social mais do que o necessário.
Ao mesmo tempo, há evidências de que este seja o melhor jeito de
reduzir a taxa de novos contágios. É o que os números vêm mostrando em
SP: nos últimos dias os novos casos parecem estar desacelerando. O custo
econômico, evidentemente, é alto. Felizmente, com a aprovação da renda
básica de R$600 pelo Congresso (provavelmente precisaremos de medidas
adicionais para chegar a todos) e a linha de crédito especial do Banco
Central para financiar a folha de pagamento de pequenas e médias
empresas, esse custo será amenizado.
A estratégia, a partir de agora, deve se focar nos gastos da Saúde:
aumentar a capacidade do SUS para tratar novos casos (leitos e
respiradores), compras massivas de testes para a população e
investimento na produção de ítens de proteção individual, como máscaras.
Com essa agenda avançada, e a curva um pouco achatada, será possível
reduzir a restrição, liberando pessoas não-infectadas, identificando
rapidamente novos focos e isolando todos os que tiverem contato, além do
confinamento dos grupos de risco.
Sem essas providências, toda promessa de “isolamento parcial” não
passa de engodo; é jogar a população num “salve-se quem puder”,
aumentando drasticamente o contágio e, muito em breve, produzindo pânico
social e uma crise econômica muito pior. Ou alguém acha que os
consumidores irão felizes às compras se cenas de corpos empilhados
diariamente às portas dos hospitais se tornarem normais?
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