BRASIL
Em meio à expectativa de que Bolsonaro
nomeie filho como embaixador, milhares de brasileiros disputam vagas no curso
para diplomatas do Instituto Rio Branco. Conhecimentos exigidos vão de idiomas
a economia e história.
Em meio à expectativa de que a
polêmica indicação do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para o cargo
de embaixador do Brasil em Washington seja oficializada, cerca de 6.400 pessoas
prestaram no último domingo (08/09) a prova da primeira fase do
Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) de 2019, a concorrida
seleção para o Curso de Formação de Diplomatas do Instituto Rio Branco.
O anúncio do presidente Jair Bolsonaro de que
pretende indicar o filho Eduardo para
o posto diplomático, feito em julho, levantou dúvidas sobre quem pode ocupar
tal cargo e se não seria necessário que esse titular tenha passado pelo
rigoroso curso do Instituto Rio Branco.
Formado em Direito, Eduardo Bolsonaro
foi escrivão da Polícia Federal e, desde 2015, é deputado federal pelo estado
de São Paulo, tendo sido reeleito para um segundo mandato com votação
recorde de 1,8 milhão de votos. Ele não cursou o Instituto Rio Branco, e
sua única experiência política com assuntos externos brasileiros foi na
Comissão de Relações Exteriores da Câmara, na qual foi suplente na legislatura
passada e que preside desde março.
A Consultoria Legislativa do Senado classificou a
indicação para o posto em Washington de nepotismo, e críticos consideram o currículo de Eduardo
inadequado para o cargo de embaixador – chefe de uma embaixada e a
principal autoridade brasileira no país em que está.
Acontece que, diferentemente de
outras funções que um diplomata pode desempenhar, a de embaixador
pode ser ocupada por alguém que pertença ou não ao corpo diplomático formado
pelo Instituto Rio Branco. Cabe ao presidente da República indicar
embaixadores, e qualquer cidadão pode ser nomeado.
"O preenchimento do cargo de
embaixador pode ser político, cabendo ao presidente a indicação, e ao Senado, a
aprovação", explica Pedro Feliú Ribeiro, professor do Instituto de
Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Apesar de legal, são poucos os
casos de indicações políticas à uma embaixada nas últimas décadas, ressalta
Ribeiro, e aspirantes ao cargo continuam brigando por uma vaga no Instituto Rio
Branco.
A seleção do CACD é considerada uma
das mais difíceis e com a maior quantidade de conteúdo exigido entre os
concursos públicos do país. "A média de tempo de estudos até ser aprovado
no concurso é de três a seis anos, podendo chegar a sete ou oito tentativas. É
uma preparação de longo curso", afirma o historiador Rodrigo Goyena
Soares, professor de História de um dos principais cursos preparatórios para o
concurso.
"A rigorosa seleção da prova é
um dos fatores que garante o excelente quadro de profissionais que possui o
Itamaraty. O CACD seleciona candidatos multidisciplinares e poliglotas",
diz.
Com duração de três ou quatro
semestres, o curso para diplomatas do Instituto Rio Branco é oferecido
desde 1946. Em 2019, a concorrência bateu recorde: são 320 candidatos por vaga.
No ano passado, eram 203. O aumento da concorrência é uma das consequências de
uma redução no número de vagas: enquanto em 2017 foram oferecidas 30 vagas, em
2018 foram 26, e, neste ano, são 20.
"Compreensão da realidade de modo
complexo"
Quando se formou em Direito, David
Beltrão sonhava em ser diplomata. Em 2011, se mudou de Recife para São Paulo
para fazer os cursinhos preparatórios para o CACD. Parou de trabalhar para se
dedicar integralmente ao concurso e estudava dez horas por dia, todos os dias.
"O CACD exige compreensão da
atualidade no Brasil e no mundo, assim como todo o conhecimento histórico do
século 18 até os dias de hoje. A quantidade de informação sobre História do
Brasil é absurda e a prova de inglês é uma das mais difíceis", diz.
A primeira de duas fases da prova
conta com 73 questões objetivas de Português, Inglês, História do Brasil e
Mundial, Política Internacional, Geografia, Economia, Direito e Direito
Internacional Público. A segunda fase cobra as mesmas disciplinas, mas de forma
discursiva, além dos idiomas francês e espanhol. Soares afirma que o grau de
exigência do exame supera os níveis de graduação e pós-graduação.
"Em português, exige-se um grau
de controle linguístico que beira o conhecimento de um Evanildo Bechara ou de
um Celso Cunha, nossos principais gramáticos. Na língua inglesa, pede-se
conhecimento nativo: o candidato aprovado poderia escrever um artigo na
revista The Economist, por exemplo", explica o professor.
Em 2015, após cinco anos estudando
para o Instituto Rio Branco, David decidiu voltar para Recife e seguir carreira
acadêmica. "Desisti da carreira de diplomata porque o número de vagas
diminuiu ao longo dos anos, e eu não podia mais me manter em São Paulo
financeiramente." Atualmente, David é doutorando em Ciência Política
na Universidade Federal de Pernambuco.
Apesar da desistência, o pernambucano
não se arrepende de ter estudado para o CACD. "A prova oferece aos
candidatos a compreensão da realidade de modo complexo. É um conteúdo
fantástico e me ajudou muito na vida acadêmica", conta.
"Uma das diplomacias mais
respeitadas no mundo"
A professora do Instituto de Relações
Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Ana Flávia
Barros-Platiau afirma que o Brasil tem "uma das diplomacias mais
respeitadas no mundo, fruto de uma formação intensiva e rigorosa ministrada
pelo Instituto Rio Branco há mais de 70 anos".
Além da fluência em pelo menos três
idiomas, o treinamento de um diplomata envolve conhecimento de relações
internacionais, história, política, direito internacional, comércio, economia e
funcionamento da cooperação internacional.
"Do mesmo modo, o profissional
deve estar a par dos grandes temas da agenda internacional, como direitos
humanos, meio ambiente, mudança do clima, sociedade da informação, requisitos
sanitários e fitossanitários que afetam as exportações agrícolas e pecuárias,
propriedade intelectual, questões de proteção de brasileiros no
exterior etc.", completa Barros-Platiau.
O indicado deve estar apto a negociar
assuntos de diversas áreas de interesse do Brasil junto ao governo do país em
que reside. "Por isso, o embaixador tem de ser capaz de cultivar fontes no
governo e junto à sociedade do país em que está", aponta a professora da
UnB.
"Também deve ter bons contatos
no Brasil, tanto com o governo quanto com a sociedade civil, além de ser capaz
de compreender adequadamente os diferentes temas em jogo do interesse
nacional."
A importância do posto em Washington
Segundo o coordenador do Laboratório
de História Global e das Relações Internacionais do Instituto de Relações
Internacionais da USP, Felipe Pereira Loureiro, das 139 embaixadas do Brasil no
exterior, a mais importante é a de Washington.
"Embaixadores brasileiros em
Washington tiveram papel central nos rumos da história nacional", explica
o professor.
A criação da primeira siderúrgica
brasileira, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), por exemplo, foi
viabilizada por meio de acordos entre o embaixador Carlos Martins Pereira e
Souza e empréstimos do governo dos EUA, em 1946.
"Outros exemplos de embaixadores
brasileiros em Washington de destaque incluem os que atuaram entre os anos 80 e
meados da década de 90", aponta Loureiro. "Esses embaixadores tiveram
um papel fundamental para o processo de renegociação da nossa dívida externa
junto a bancos privados americanos, culminando na adesão do Brasil às
diretrizes que viabilizariam o processo de contenção da inflação no país, por
meio da implementação do Plano Real, em 1994."
Para o professor da USP, a história
demonstra que além de ter bons contatos na política dos EUA, um embaixador em
Washington precisa ter "sólido conhecimento sobre a sociedade
americana e significativa capilaridade junto a setores sociais, econômicos e
culturais do país".
Para que a indicação de
Eduardo seja oficializada, o presidente Bolsonaro precisa enviar o nome do
filho para o Senado, que vai decidir se o aprova ou não para o cargo de
embaixador nos EUA. Em meados de agosto, o presidente chegou a admitir a possibilidade de rever a indicação do
filho, para logo depois afirmar que não
iria recuar.
______________
A Deutsche Welle é a emissora internacional da
Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. Siga-nos no Facebook | Twitter | YouTube
Nenhum comentário:
Postar um comentário